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Bigamia

A partir do Concílio de Trento (1545-1563), em resposta às disposições reformistas, a Igreja Católica investiu na sacralização do casamento, definindo-o como um vínculo que deveria remediar a lascívia humana, um ato capaz de conferir a graça divina. O matrimônio passaria a seguir uma liturgia que incluía o consentimento mútuo, a celebração da união por meio de um clérigo, a presença de testemunhas, o anúncio da intenção de casamento dos noivos durante três domingos na paróquia local, a verificação quanto aos impeditivos referentes ao parentesco de até quarto grau e uma extensa e detalhada regulamentação sobre as relações sexuais que tinham como único e exclusivo fim a procriação. Decidir sobre a legitimidade de uma união, entre homens e mulheres, passou a ser do âmbito da Igreja, com o apoio dos soberanos que, interessados em concentrar o poder monárquico, percebiam na disciplina moral implícita ao casamento uma possibilidade de assegurar a disciplina política dos súditos. Qualquer união adversa à estabelecida pela instituição passou a ser condenada social e religiosamente. A admissão de um relacionamento concomitante a outro contrato matrimonial podia ser enquadrado como adultério, concubinato ou bigamia. O direito canônico classificava e distinguia o delito de bigamia a partir das seguintes categorias: bigamia simultânea, quando o segundo casamento era realizado por um leigo enquanto o primeiro cônjuge ainda era vivo; bigamia similitudinária, quando um clérigo contraía o sacramento do matrimônio após ter recebido o grau da ordem; e bigamia sucessiva, quando se contraía um segundo matrimônio após a morte do primeiro cônjuge. (ALVES, Mariana Rocha Ramos de Oliveira. Inquisição e bigamia: disciplinamento e transgressões de cristãos velhos portugueses julgados pelo Tribunal do Santo Ofício (Lisboa, século XVII). Dissertação em História, UFRRJ, 2017. p. 75). Considerada, assim, um delito grave, sua punição consistia em pena de morte aos bígamos, que podia, eventualmente e de acordo com a posição social dos infratores, em degredo de cinco a oito anos em alguma das possessões na África ou na América portuguesa, punição com açoites pelas ruas públicas, perda de cargos e ofícios. A jurisdição para julgamento dos casos de bigamia competia tanto à Coroa como à Igreja, o que colocava as relações entre crime e pecado em um terreno difuso. Em Portugal, a bigamia foi intensamente perseguida, seja pelos tribunais civis ou eclesiásticos – sendo punida com severidade principalmente a partir do século XVI, quando passou a ser julgado pelo Santo Ofício. De acordo com Johnatas dos Santos Costa, os bígamos, além de burlar as determinações régias e canônicas, ludibriavam padres e vizinhos e, muitas vezes, os conjugues e seus familiares, fraudando o próprio sacramento do matrimônio. Dessa maneira, esses indivíduos estariam revelando, segundo a percepção inquisitorial, um total desprezo pelo matrimônio, enquanto a Igreja se empenhava na sua propagação e na defesa da sua indissolubilidade diante das críticas realizadas pelos reformadores protestantes (Costa, Johnatas dos Santos. O matrimônio ameaçado: inquisição e bigamia no brasil colonial. Universidade Federal de Sergipe. São Cristovão, 2018. p. 66). Constata-se uma maior incidência de bigamia masculina que pode ser atribuída à alta mobilidade espacial desses homens, vindo, por exemplo, para o Brasil. Mayara Amanda Januario, com base em documentação analisada, registra que os indivíduos processados por bigamia na colônia entre os séculos XVI e XVIII contabilizam quase uma centena (Januario, Mayara Amanda. A bigamia em apropriações da normatividade: o caso da América portuguesa em fins do século XVIII. Temporalidades – Revista de História, Edição 35, v. 13, n. 1 (jan./jun. 2021.). A perseguição á bigamia permaneceu viva até o século XVIII como mecanismo importante de controle social. (Ver também certidão de banhos).