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Congo-Angola

Degredo

Escrito por Super User | Publicado: Quinta, 05 de Outubro de 2017, 18h13 | Última atualização em Terça, 02 de Março de 2021, 22h45

Ofício do Corregedor do Crime da Corte do Rio de Janeiro, José Albano Fragoso, sobre Ana Inácia de Jesus, condenada pelo assassinato do seu marido, Manoel José Espínola, no ano de 1812. A leitura deste documento traz uma ideia das modalidades de crimes e punições no período colonial e revela um outro papel das possessões ultramarinas, como redutos de degredados.

Conjunto documental: Ministério da Justiça
Notação: caixa 774, pct. 04
Datas-limite: 1808-1821
Título do fundo ou coleção: Ministério da Justiça
Código do fundo: 4 V
Argumento de pesquisa: Benguela
Data do documento: 23 de setembro de 1819
Local: Rio de Janeiro
Folha (s): -

“Ana Inácia de Jesus foi condenada por acordo de 28 de Abril de 1818 em três voltas ao redor da forca, açoites[1] pelas ruas, degredo[2] perpétuo para São Tomé[3], duzentos mil réis para os parentes do morto, e cem para as despesas, porque junta com seu genro Fulgêncio Borges, que já foi para Benguela[4] degredado, mataram bárbara e atrozmente ao marido e sogro Manoel Jozé Espínola no ano de 1812 no lugar de São Tiago[5] em sua própria casa, enterrando o cadáver no mato, tendo antes por várias vezes tentado de conseguir dar-lhe a morte, e que só naquela época puderam realizar, e não sofreram a pena última[6] pelo régio perdão[7].
Foi confessa e convicta, e não tem ido para o seu destino por falta de navio, e casou com um soldado que morreu, e de novo tenta casar. Seria proveitosa a comutação[8] para África[9] pela dificuldade da remessa, mas não para América[10] como pede. Vossa Majestade[11] mandará o que for servido. Rio, 23 de setembro de 1819.
O corregedor do Crime da Corte[12] José Albano Fragoso.”

 

[1] AÇOITES: punições da época, com o objetivo de humilhar e expor a figura do condenado.


[2] DEGREDO: punição prevista no corpo de leis português, o degredo era aplicado a pessoas condenadas aos mais diversos tipos de crimes pelos tribunais da Coroa ou da Inquisição. Tratava-se do envio dos infratores para as colônias ou para as galés, onde cumpririam a sentença determinada. Os menores delitos, como pequenos furtos e blasfêmias, geravam uma pena de 3 a 10 anos, e os maiores, que envolviam lesa-majestade, sodomia, falso misticismo, fabricação de moeda falsa, entre outros, eram definidos pela perpetuidade, com pena de morte se o criminoso voltasse ao país de origem. Além do aspecto jurídico, em um momento de dificuldades financeiras para Portugal, degredar criminosos, hereges e perturbadores da ordem social adquiriu funções variadas além da simples punição. Expulsá-los para as “terras de além-mar” mantinha o controle social em Portugal e, em alguns casos também, em suas colônias mais prósperas, contribuindo para o povoamento das fronteiras portuguesas e das possessões coloniais, além de aliviar a administração real com a manutenção prisional. Constituindo-se uma das formas encontradas pelas autoridades para livrar o reino de súditos indesejáveis, entre os degredados figuraram marginais, vadios, prostitutas e aqueles que se rebelassem contra a Coroa. Considerada uma das mais severas penas, o degredo só estava abaixo da pena de morte, servindo como pena alternativa designada pelo termo “morra por ello” (morra por isso). Porém o degredo também assumia este caráter de “morte civil” já que a única forma de assumir novamente alguma visibilidade social, ou voltar ao seu país, era obtendo o perdão do rei.


[3] SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE: arquipélago situado no golfo da Guiné, na costa oeste da África, cuja capital é São Tomé. Abrange, além das duas ilhas que lhe dão o nome, alguns ilhéus adjacentes que foram descobertos pelos navegadores portugueses João de Santarém e Pedro Escobar em 1471. Dedicando-se inicialmente à cultura da cana-de-açúcar, cuja produção entrou em declínio com o crescimento da atividade açucareira no Brasil, o arquipélago tornou-se um importante entreposto de escravos no período colonial. Essa atividade somente foi encerrada em 1876, quando foi decretada a abolição da escravidão nas ilhas.

 

[4] BENGUELA: província situada ao sul de Angola. Face ao clima temperado, foram desenvolvidas nessa região, várias culturas de subsistência importantes, tais como as da banana, açúcar, milho, algodão, além de hortaliças e da pesca. Destacou-se como principal porto de embarque de escravos para a América portuguesa. A partir do século XVII, verifica-se no Rio de Janeiro uma entrada maciça de escravos provenientes dessa província africana, tornando os “benguelas” o maior grupo étnico na cidade.

 

[5] CABO VERDE: província ultramarina portuguesa próxima à costa africana descoberta em 1460. O arquipélago tornou-se um ponto estratégico nas rotas marítimas, em função de sua posição geográfica que o colocava a meio caminho da América do Sul e da Europa. O arquipélago é composto por dez ilhas divididas em dois grupos: o grupo de barlavento [Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, São Nicolau, Sal e Boavista] e o grupo de sota-vento [Maio, Santiago, Fogo e Brava]. A colonização iniciou-se logo após sua descoberta e Cabo Verde passou a monopolizar o tráfico de escravos da Guiné quatro anos depois. Através de uma carta régia de 1466, foi concedido aos habitantes de Cabo Verde o direito perpétuo de fazer o comércio e o tráfico de escravos, em todas as regiões da Costa da Guiné (do rio Senegal à Serra Leoa). Mercadores fixam-se na ilha de Santiago (primeira a ser povoada), dando início a uma próspera comunidade de comerciantes marítimos que, ao longo dos séculos, vão abastecer de mão de obra escrava o sul dos Estados Unidos, o Caribe e o Brasil. Com a proibição do tráfico negreiro, a economia do arquipélago entrou em decadência.

 

[6] PENA ÚLTIMA [PENA DE MORTE]: as Ordenações Filipinas permaneceram em vigência no Brasil até a publicação do Código Penal de 1830. Enfatizando o criminoso em vez do ato, sua suposta natureza vil e perversa, e vinculando todo o processo (inclusive a determinação de pena) a linhagem e privilégios do réu, este código de leis, que remonta a Portugal do Antigo Regime, determinava penalidades corporais e o pagamento com a própria vida por uma série de crimes contra a honra e a propriedade. Em seu Livro V, que tratava das penalidades criminais, permitia a aplicação da pena capital com grande liberalidade: crimes contra a vida, contra a ordem política estabelecida ou contra o soberano, bigamia, relacionamento com não-cristãos, falsificação de moeda e roubo. O termo morra por ello (morra por isso) aparecia em profusão neste corpo de leis, que tinha entre suas punições possíveis a pena de morte, degredo, banimento, confisco de bens, multas e castigos físicos. Determinava-se castigo bastante específico para os escravos que assassinassem seu senhor: “Seja atenazado [ter as carnes apertadas com tenaz ardente] e lhes sejam decepadas as mãos e morra morte natural na forca para sempre.” As Ordenações foram sendo deixadas de lado a partir da Independência formal do Brasil, e a primeira Constituição aboliu castigos físicos, tortura, mutilação dos cadáveres dos condenados, exposição dos corpos. Isto, contudo, valia apenas para os homens livres, pois os cativos, propriedade privada de existência civil, continuaram a ser açoitados como forma de castigo por crimes comuns. Também deu fim às diversas formas de aplicação da pena de morte que a criatividade dos legisladores portugueses impôs ao antigo código (morte por fogo, asfixia, açoitamento, sepultamento, entre outras), permitindo apenas a forca. Além disso, sua aplicação restringia-se a homicídios e insurreições escravas. De fato, os escravos acusados de sublevação ou de assassinato de seus senhores, rarissimamente recebiam algum alívio da pena, pois, na prática, não podiam sequer alegar legítima defesa. A pena de morte foi muito pouco aplicada no Brasil do Segundo Império e, até mesmo, crimes cometidos por escravos contra seus senhores passaram ser passíveis de indulto nos últimos anos do governo de d. Pedro II. (https://www.academia.edu/11655581/O_tratamento_jur%C3%ADdico_dos_escravos_nas_Ordena%C3%A7%C3%B5es_Manuelinas_e_Filipinas)

 

[7] RÉGIO PERDÃO: Perdão dado pelo soberano, que desta maneira, funcionava como instância máxima do sistema judiciário.


[8] COMUTAÇÃO: significa, neste caso, permutar ou trocar a pena por um castigo menor, ou seja, atenuar a punição.


[9] ÁFRICA: os portugueses foram os primeiros navegadores a conquistar o litoral da África, adquirindo grande experiência marítima pelo Atlântico, o que ficou conhecido como périplo africano – circundar a costa do continente para chegar ao Oriente. Nos séculos XVI e XVII, multiplicaram-se as feitorias europeias ao longo do litoral: portugueses em Angola e Moçambique; ingleses, holandeses e franceses na Guiné, estando estes últimos também no Senegal. O estabelecimento de entrepostos criaria fortes laços comerciais entre pontos da costa africana, a América e a Europa, estimulados, sobretudo, pelo comércio da escravatura. A presença de portugueses na África transformaria a captura de escravos – a escravidão doméstica já existia no continente, mas em proporções menores e com características distintas – em uma atividade corriqueira e sistemática, formando uma rede do comércio que ligaria os portugueses na costa às rotas comerciais no interior da África e o Novo Mundo. Ao longo de três séculos, calcula-se que cerca de 10 milhões de africanos escravizados foram levados para as Américas. O tráfico atlântico de escravos africanos tornou-se força motriz de uma atividade econômica extremamente vantajosa, tanto para comerciantes lusos e luso-brasileiros, quanto para líderes africanos que passaram a controlar esse comércio. Se cativos eram importantes para a colonização da América portuguesa, os produtos coloniais como a mandioca, o tabaco e a cachaça, também despertavam interesse entre a população africana, garantindo um fluxo contínuo entre as duas margens do Atlântico. Em meados do século XIX, a África tornar-se-ia palco de disputas entre as principais nações europeias, na busca da exploração de suas riquezas e da conquista territorial, cerne do processo de expansão imperialista.

 

[10] AMÉRICA: inicialmente chamada de Índias Ocidentais por se acreditar ter chegado à Índia, Cristóvão Colombo chegou ao continente em 1492, abrindo o Novo Mundo à conquista europeia. Enquanto os portugueses instalavam-se no litoral brasileiro, os espanhóis conquistavam o México e, de lá, a América Central, o Peru e o Chile. Quanto à América do Norte, coube aos ingleses e franceses o principal papel: os ingleses iniciaram a fundação das chamadas Treze Colônias, em 1620, e os franceses ocuparam regiões hoje pertencentes ao Canadá, no início do século XVII. A América Central, sobretudo a parte insular, ficou nas mãos de espanhóis, ingleses, franceses e holandeses. No entanto, a divisão territorial americana foi alvo constante de disputas e conflitos entre as metrópoles europeias. Com relação à América portuguesa, a preocupação lusa em proteger seus territórios no novo continente se deu de maneira contínua devido às seguidas ameaças de invasão durante o período colonial. A polêmica da demarcação de fronteiras na América teve início mesmo antes da chegada de Cabral em 1500, pois o Tratado de Tordesilhas, assinado em 1494 entre Portugal e Espanha, já dividia entre os reinos ibéricos as terras “descobertas e por descobrir” no além-mar. O Tratado estabelecia a partilha das áreas de influência entre os dois reinos, cabendo a Portugal as terras situadas antes da linha imaginária que demarcava 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde, e a Castela as terras que ficassem além dessa linha. No entanto, a assinatura desse primeiro tratado não foi suficiente para estabelecer as fronteiras do vasto território recém-descoberto. Potências como França, Holanda e Inglaterra, passaram a questionar a exclusividade da partilha do mundo entre as nações ibéricas, o que resultou em pirataria, contrabando e invasões na costa do litoral brasileiro. Além disso, portugueses e espanhóis, ao longo do processo de colonização da América, violaram os limites fixados em 1498, gerando inúmeras disputas por territórios e a necessidade do estabelecimento de fronteiras entre as possessões lusas e castelhanas. A partir do século XVIII, os dois governos começam a trabalhar juntos na tentativa de estabelecer um novo tratado que findasse os conflitos de interesse territorial entre as duas nações. Assim, em 1750, foi assinado o Tratado de Madri legalizando o argumento da posse da terra – uti possidetis – e instaurando limites geográficos como rios e montes, ou a delimitação por zonas conhecidas por ambas as partes que não dessem lugar para futura confusão. As disputas envolvendo os Sete Povos das Missões e a colônia de Sacramento na região sul do Brasil, bem como aqueles relacionados ao domínio e exploração portuguesa na bacia do rio Amazonas, permearam o processo de ocupação dessas regiões. Os interesses expansionistas das monarquias ibéricas em meados do século XVIII dificultava sobremaneira o estabelecimento de fronteiras entre a América espanhola e portuguesa.

 

[11] JOÃO VI, D. (1767-1826): segundo filho de d. Maria I e d. Pedro III, se tornou herdeiro da Coroa com a morte do seu irmão primogênito, d. José, em 1788. Em 1785, casou-se com a infanta Dona Carlota Joaquina, filha do herdeiro do trono espanhol, Carlos IV que, na época, tinha apenas dez anos de idade. Tiveram nove filhos, entre eles d. Pedro, futuro imperador do Brasil. Assumiu a regência do Reino em 1792, no impedimento da mãe que foi considerada incapaz. Um dos últimos representantes do absolutismo, d. João VI viveu num período tumultuado. Foi sob o governo do então príncipe regente que Portugal enfrentou sérios problemas com a França de Napoleão Bonaparte, sendo invadido pelos exércitos franceses em 1807. Como decorrência dessa invasão, a família real e a Corte lisboeta partiram para o Brasil em novembro daquele ano, aportando em Salvador em janeiro de 1808. Dentre as medidas tomadas por d. João em relação ao Brasil estão a abertura dos portos às nações amigas; liberação para criação de manufaturas; criação do Banco do Brasil; fundação da Real Biblioteca; criação de escolas e academias e uma série de outros estabelecimentos dedicados ao ensino e à pesquisa, representando um importante fomento para o cenário cultural e social brasileiro. Em 1816, com a morte de d. Maria I, tornou-se d. João VI, rei de Portugal, Brasil e Algarves. Em 1821, retornou com a Corte para Portugal, deixando seu filho d. Pedro como regente.

 

[12] CORREGEDOR DO CRIME DA CORTE E CASA: magistrado superior criminal, o cargo estava previsto como um dos ministros que integravam a Casa de Suplicação. Também servia à Casa Real, e atuava na comarca onde estava instalada a Corte, comandando, em matéria de justiça, as vilas da região.

 

Sugestões de uso em sala de aula: 
Utilização(ões) possível(is): 
- No eixo temático sobre a “História das relações sociais da cultura e do trabalho”
- Ao abordar o eixo temático sobre as “Relações de poder”

Ao tratar dos seguintes conteúdos:
- Sociedade colonial: práticas e costumes
- Resistências e transgressões: práticas sociais

 

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