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Congo-Angola

Adultério

Escrito por Super User | Publicado: Quinta, 05 de Outubro de 2017, 16h37 | Última atualização em Quinta, 04 de Março de 2021, 16h41

Parecer do desembargador José Maurílio da Gama Freitas ao vice-rei do Brasil, marquês do Lavradio, sobre a absolvição do soldado José Antônio e Souza, condenado pelo assassinado de sua esposa, que cometera o adultério. Abordando temas como casamento, adultério e degredo, esse documento permite compreender os costumes, o código moral e a prática da justiça no período colonial. 

 

Conjunto documental: Correspondência de diversas autoridades com os vice-reis.
Notação: caixa 485, pct. 2
Datas-limite: 1760-1808
Título do fundo ou coleção: Vice-reinado
Código do fundo: D9
Argumento de Pesquisa: Angola
Data do documento: 10 de abril de 1770
Local: Rio de Janeiro
Folha (s): -

 

 

“Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor,


A sentença do Conselho de Guerra[1], que absolveu o réu[2] José Antônio e Sousa soldado do primeiro regimento desta praça, regulou-se e dirigiu-se pela nossa Lei municipal, a qual permite ao marido matar livremente a própria mulher sendo adúltera. Esta mesma impunidade, ou tolerância se acha concedida também no Direito Romano[3], e nas Leis de Castela: fundando-se todas em que o marido justamente ofendido de uma tão sensível injúria pode praticar aquele honrado desafogo da sua ignomínia[4], e lavar com o sangue da mulher adúltera as manchas de seu crédito.
Esta decisão porém limitam os desembargadores[5] no caso, em que sabendo o marido, que a mulher cometera adultério[6] se reconcilia com ela, e continua a viver na sua companhia como confessa o réu nas respostas dadas aos interrogatórios (...), que tinha antecedentemente achado de noite no quintal das suas casas os referidos sua mulher junta com o soldado Ignácio Francisco: situação esta de que se prova o adultério, e contudo viveu com ela depois em boa harmonia (...).
Também é doutrina estabelecida, que o marido coabitando com a mulher depois do adultério remite[7] por este mesmo exercício a sua injúria pelos juramentos das (...) testemunhas consta haver o réu confessado que na noite do homicídio tivera coito com sua mulher e depois a matara (...).
(...) se manifesta evidentemente que o réu foi sentenciado com excessiva indulgência, e que absolvendo-o da pena capital deveria ser condenado ao menos em cinco anos de degredo[8] para Angola[9].
Este é o meu parecer, V. Exa. porém determinará o que for servido. Rio, 10 de abril de 1770.


Para o Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Marquês do Lavradio[10]. O Desembargador Intendente geral[11] Criado mais reverente José Maurílio da Gama e Freitas.”

 

 

 

[1] CONSELHO DA GUERRA: tribunal composto por oficiais, que julgava as infrações cometidas por militares ou pessoas que tivessem honras militares. Criado em 1640, em Portugal, o Conselho da Guerra possuía atribuições de gestão logística e jurisdicional: a conservação de fortalezas e arsenais, provimento de postos, negócios relativos à expedição de tropas e julgamento de causas. Com a reforma das Secretarias de Estado, em 1736, o Conselho da Guerra perdeu suas competências administrativas, conservando, porém, suas atribuições de tribunal militar. Em 1808, foi instalado no Brasil por ocasião da vinda da corte.

[2] RÉU: pessoa chamada em juízo em função de uma ação cível ou criminal, sendo acusada por algum crime ou delito.

[3] DIREITO ROMANO: conjunto de normas e princípios jurídicos, compilado e codificado pelo imperador bizantino Justiniano (482-565 d.C.), que vigorou em Roma durante cerca de doze séculos. Também conhecido por Corpus Juris Civilis, o Codex Justinianus foi promulgado e publicado em 529, abrangendo todos os setores da vida social e regulando desde as relações familiares até o trabalho e as finanças. Cinco anos depois foi feita uma nova publicação revisada do código (Codex repetitae praelectionis) contendo as normas jurídicas surgidas ao longo de sua preparação. Constava de três partes: Jus Publicum (direito público); Jus Privatum (direito privado); Jus Naturale (direito de todos os cidadãos). A partir de então, estava proibida qualquer norma que não constasse na publicação. Embora não tenha alterado a legitimidade do trabalho servil, a legislação justiniana foi uma importante contribuição para o desenvolvimento dos direitos pessoais e das liberdades individuais, influenciando, posteriormente, a elaboração das leis ocidentais.

[4] IGNOMÍNIA: Grande desonra, infâmia.

[5] DESEMBARGADOR DE AGRAVOS: o desembargador dos agravos e apelações da Casa de Suplicação do Brasil era um funcionário nomeado pelo rei, com competência cível e criminal, responsável por julgar os pleitos e os agravos em segunda instância, ou seja, decidir sobre os recursos postos às decisões dos juízes de fora e corregedores.

[6] ADULTÉRIO: de acordo com o direito romano, quando o adultério era cometido pela mulher permitia-se ao marido traído “lavar com sangue” a sua honra. Mas, para que os homens fossem punidos, era necessária prova material de que ele estivesse incurso no que se chamava “concubinagem franca” com a mulher, pois relações passageiras, pequenos desvios e alguns pecadilhos eram tolerados. Considerada uma falta grave desde o Concílio de Trento (1545-1563), a Igreja reconheceu a possibilidade de separação permanente dos consortes, sendo um dos motivos mais alegados para o “divórcio”, uma vez comprovada a traição.

[7] REMITE: Considerado como perdoado, concede indulgência.

[8] DEGREDO: punição prevista no corpo de leis português, o degredo era aplicado a pessoas condenadas aos mais diversos tipos de crimes pelos tribunais da Coroa ou da Inquisição. Tratava-se do envio dos infratores para as colônias ou para as galés, onde cumpririam a sentença determinada. Os menores delitos, como pequenos furtos e blasfêmias, geravam uma pena de 3 a 10 anos, e os maiores, que envolviam lesa-majestade, sodomia, falso misticismo, fabricação de moeda falsa, entre outros, eram definidos pela perpetuidade, com pena de morte se o criminoso voltasse ao país de origem. Além do aspecto jurídico, em um momento de dificuldades financeiras para Portugal, degredar criminosos, hereges e perturbadores da ordem social adquiriu funções variadas além da simples punição. Expulsá-los para as “terras de além-mar” mantinha o controle social em Portugal e, em alguns casos também, em suas colônias mais prósperas, contribuindo para o povoamento das fronteiras portuguesas e das possessões coloniais, além de aliviar a administração real com a manutenção prisional. Constituindo-se uma das formas encontradas pelas autoridades para livrar o reino de súditos indesejáveis, entre os degredados figuraram marginais, vadios, prostitutas e aqueles que se rebelassem contra a Coroa. Considerada uma das mais severas penas, o degredo só estava abaixo da pena de morte, servindo como pena alternativa designada pelo termo “morra por ello” (morra por isso). Porém o degredo também assumia este caráter de “morte civil” já que a única forma de assumir novamente alguma visibilidade social, ou voltar ao seu país, era obtendo o perdão do rei.

[9] ANGOLA: localiza-se na região sudoeste da África. Como colônia portuguesa tem seu início em 1575, a partir do contrato de conquista e de colonização recebido da Coroa pelo explorador Paulo Dias de Novaes, face ao sucesso obtido na corte do Ndongo, conforme J. Vansina no capítulo “O reino do Congo e seus vizinhos” (História Geral da África, vol. V, Unesco, 2010). A colônia viria a se chamar Angola, nome atribuído pelos portugueses, inspirado no título ngola dado ao rei do Ndongo, região constituída mais pela submissão de grupos a uma autoridade maior, por alianças ou guerra, do que por uma delimitação territorial como explica Marina de Mello e Souza (Além do visível: poder, catolicismo e comércio no Congo e em Angola. São Paulo: Edusp, 2018). No ano seguinte é criada a vila de São Paulo de Luanda, da qual Dias de Novaes foi o primeiro governador e capitão geral, conforme o modelo implantado no Brasil, instalando-se com famílias de colonos e soldados portugueses. As pressões metropolitanas para se impor na região e as suspeitas surgidas entre os líderes locais de que os portugueses vinham para ficar levaram à eclosão de uma guerra iniciada em 1579 que durou até 1671. Entre 1641 e 1648, Angola esteve sob domínio holandês, em um movimento que não pode ser dissociado da ocupação da região nordeste da América portuguesa. Se desde o início de sua presença, os portugueses dedicaram-se ao comércio de escravos, primeiro para São Tomé e depois para o Brasil, esse negócio tornar-se-ia a principal atividade econômica da região, fazendo de Angola a grande exportadora de mão de obra compulsória para a América. Segundo a base de dados americana Atlantic Slave Trade, calcula-se que tenham saído de Angola, entre 1501 e 1866, quase 5,7 milhões de escravos. Criaram-se relações bilaterais entre Brasil e Angola, onde o primeiro produzia matérias-primas e alimentos – quer para a agro exportação, quer para o mercado interno, e Angola forneceria a força de trabalho cativo. Este eixo é, para parte da historiografia, constitutivo do sistema atlântico luso e sustenta a concepção de uma monarquia pluricontinental, na qual Angola, destacando-se a cidade de Luanda, já no século XVII era um dos seus polos. A independência de Angola só foi declarada em 1975, marcando também o fim do colonialismo português.

[10] MASCARENHAS, D. LUÍS DE ALMEIDA PORTUGAL SOARES ALARCÃO D' EÇA E MELO SILVA E (1729-1790) - MARQUÊS DO LAVRADIO: 5º conde de Avintes e 2º marquês do Lavradio era filho do 1.º marquês do mesmo título d. Antônio de Almeida Soares e Portugal e de d. Francisca das Chagas Mascarenhas. Governador da Bahia entre 1768 e 1769, conseguiu neste curto período apaziguar os conflitos entre as autoridades locais e restabelecer a ordem na guarnição de Salvador. Sua forma de governar se pautava pela prudência na utilização dos recursos procurando manter suas contas sob estrito controle. Foi nomeado décimo primeiro vice-rei do Brasil em 1769, e seu governo durou 10 anos. Durante este período, a cidade colonial do Rio de Janeiro, que abrigava a sede do vice-reinado, passou por uma série de melhorias, como o aterro de pântanos e lagoas que prejudicavam a qualidade do ar, calçamento e abertura de ruas na parte central (inclusive a que leva seu nome), além de incentivos à produção local de alguns itens como o café e o vinho. Também foi responsável pela fundação da Academia Científica, em 1772, obedecendo à política pombalina de fomento às atividades científicas, que incluiu a remessa de coleções de História Natural e a criação de um horto botânico na cidade. No entanto, ao longo de seu governo, medidas impopulares, implementadas por ordem direta da metrópole, foram adotadas, como: o cumprimento das leis do Livro da Capa Verde do Distrito Diamantino – regulamentação da exploração de diamantes na colônia, editado por iniciativa do marquês de Pombal – e a extinção da Companhia de Jesus. Foi também durante sua administração que a situação de crescente instabilidade na região do Rio da Prata, com ocasionais conflitos armados entre forças espanholas e lusas, demandou providências para contornar a situação, como iniciativas de povoamento da região sul do Brasil e a construção de fortalezas na região, com o envio de guarnições. Em 1779, dois anos depois do falecimento do rei d. José I, o marquês do Lavradio deixou o governo do Brasil, sendo substituído por Luís de Vasconcelos e Sousa. De volta a Portugal, tornou-se conselheiro da Guerra, presidente do Desembargo do Paço, inspetor-geral das tropas do Alentejo e Algarve, veador da rainha e recebeu a Grã-cruz da Ordem de Cristo. A correspondência trocada por ele com outras autoridades e membros da nobreza em Portugal gerou as Cartas da Bahia (1768 a 1769), e as Cartas do Rio de Janeiro (1769-1770) publicadas pelo Arquivo Nacional. A instituição conserva ainda o fundo privado Marquês do Lavradio em seu acervo.

[11] INTENDÊNCIA GERAL DA POLÍCIA DO REINO: órgão criado em 1760 pelo marquês de Pombal, tinha entre suas atribuições a segurança pública e a manutenção da ordem, inclusive fazendo uso de espiões e informantes. Seu intendente mais conhecido foi Diogo Inácio de Pina Manique, nomeado em 1780 por d. Maria I, e esteve à frente da instituição por 25 anos, até sua morte. Durante o período das invasões francesas o papel da Intendência foi se desvalorizando gradualmente, principalmente face ao crescimento de importância da Guarda Real da Polícia, que atuava como instrumento repressivo e militar, sob a orientação inglesa. Esse processo culminou com a extinção do órgão em 1833. A Intendência funcionou fortemente na repressão aos crimes, comuns ou políticos, e inovou ao propor uma estratégia de prevenção à criminalidade, promovendo a educação de meninos órfãos e pobres, com a criação da Casa Pia de Lisboa. Respondeu ainda pela censura de livros e ideias “perigosas” e revolucionárias, pela circulação, em oposição, de panfletos difundindo os “bons costumes” e também ordenando e controlando o espaço urbano. O órgão era responsável pela iluminação da cidade, pela inspeção dos portos, para impedir a entrada de epidemias e febres pelos navios, pelo combate ao contrabando, pelas reformas de melhoramento de ruas, calçadas e chafarizes e até mesmo pela arborização de ruas e praças.

 

Sugestões de uso em sala de aula: 
Utilização(ões) possível(is): 
- No eixo temático sobre a "História das relações sociais da cultura e do trabalho”.
- Ao abordar o eixo temático sobre as “Relações de poder”.
- Ao abordar o tema transversal “Pluralidade cultural”.
- Ao abordar o tema transversal “Orientação Sexual” (ao comentar a questão cultural: como se constituíam as relações amorosas/como são hoje).

Ao tratar dos seguintes conteúdos:
- Sociedade colonial: práticas e costumes
- Formação do mundo moderno: A contra-reforma
- Resistências e transgressões: práticas sociais

 

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