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Estabelecimento dos judeus em Portugal

Escrito por Super User | Publicado: Sexta, 23 de Fevereiro de 2018, 19h53 | Última atualização em Quarta, 05 de Mai de 2021, 14h51

Memória de Domingos Vandelli sobre o estabelecimento de judeus em Portugal, sugerindo que se negociasse com os judeus empréstimos e investimentos, para assim, aumentar a povoação e riqueza do Reino. Também discorre sobre a relação entre os judeus, o Estado e a Igreja Católica ao longo da história, justificando a expulsão deles da Espanha e de Portugal por conta de um mal entendido dos reis Católicos, bem como por razões políticas do rei d. Manoel. A presença do povo hebreu em países católicos, tinha neste momento histórico, como consequência uma série de preocupações de que práticas hereges se espalham. Ao mesmo tempo, os a presença dos judeus, pela suas tradições de bons comerciantes, representavam lucros para estes países.

 

Conjunto documental: Coleção de memórias e outros documentos sobre vários objetos
Notação: Códice 807, vol 24
Datas – limite: 1796-1802
Título do fundo: Diversos códices - SDH
Código do fundo: NP
Argumento de pesquisa: Judeus
Microfilme: 001-92
Data do documento: s.d.
Local: s.l.
Folha (s): doc. 58

 

“Memória II sobre os judeus[1].

Sendo está a mais favorável ocasião nas atuais desordens da Europa, e principalmente da Polônia, da Holanda eu (sic); e no novo estabelecimento do povo franco de aumentar a povoação, indústria, comércio, e riquezas deste Reino recebendo novamente os judeus; a qual depois dificilmente se poderá aproveitar; me determina instar, que se aceitem, trabalhando-se de veras, e com atividade neste negócio, deixando a parte tudo o que agora pode inquietar o Povo com novas distinções, prerrogativas, privilégios de uma classe para diferenciá-la sempre mais das outras.

Nesta memória indicarei com brevidade:

1. A tolerância da religião Judaica

2. Existência dos judeus em Portugal

3. As diligências, que fizeram para restituir-se a este Reino

4. Causa da sua expulsão[2]

5. Utilidades, que se receberam aceitando-os

6. Regimento para o seu governo

7. Restituição aos Bispos do seu antigo, e próprio Direito

 

1. Os Imperadores cristãos sempre toleraram a religião Judaica (...) Honório, e Theodósio proibiram aos cristãos, que não ofendessem os judeus, que por isso anualmente pagavam tributo (...)

Nos primeiros séculos da Igreja o direito Canônico tolerou os judeus (...). Os papas concederam muitos privilégios aos judeus, v.g. ter escravos cristãos para o trabalho das terras.

Clemente III não consentiu, que se constringissem os judeus a batizar-se.

João XXII confirmou isso.

Porém deviam viver separados dos cristãos nas suas judiarias (sic), ou guetos (...), e deviam pagar como os cristãos as décimas prediais, e oblações a Igreja (...).

Na maior parte das Nações Católico-Romanas, e em Roma mesmo são tolerados, e protegidos.

 

2. Na ruína geral de Espanha conservaram-se os judeus entre os cristãos e Mouros[3] no tempo dos godos, e foram nela conservados desde Afonso VII até d. Fernando IV; e chegaram a serem grandes ilegível dos Ministros de Espanha pelo seu préstimo, e grandes riquezas, gozando muitos privilégios com livre exercício da sua Religiões; pagando, porém, trinta dinheiros por cabeça.

Muitos deles foram almoxarifes.

No princípio deste Reino os judeus tiveram domicílio em Lisboa, Coimbra, Évora, Vizeu, Trancoso, Faro, Liria (sic), Covilhã, Santarém, e nos seus subúrbios; e foram quase sempre tratados com muita humanidade.

O seu Arrabi Mor[4], que os governava, usava do selo com as quinas portuguesas.

Viviam em Judiarias (sic), ou guetos dentro da cidade, com guardas.

A Judiaria ou gueto de Lisboa era no princípio do Bairro da Pedreira entre o Carmo, e a Trindade; e depois se mudou para o bairro da Conceição, donde permaneceram até a sua final expulsão.

Não obstante viverem separados dos cristãos, tendo também os seus particulares açougues (sic), tomavam os contratos, e Rendas Reais, com as quais se enriqueciam de modo, que instituíam Morgados (sic).

Afonso II lhes proibiu ter ofícios públicos.

Sancho II novamente lhes os concedeu, e que conservaram até ao reinado do Senhor rei d. Diniz.

Costumavam os judeus no armamento das Naus dar uma ancora, e uma amarra por cada Nau, ou Galera.

Afonso III lhes confirmou todos os privilégios.

O sr. d. Diniz mandou observar os Cânones a respeito dos judeus, porém sempre lhes deu alguns ofícios; tendo nomeado d. Juda seu ministro da Fazenda, que o remunerou com a ilegível (sic) de Santarém.

E Guedelha foi tesoureiro da Rainha.

Todos os almoxarifes, e cobradores das Rendas Reais eram judeus.

Afonso IV lhes diminuiu os privilégios.

O sr. d. Pedro I foi seu Protetor, como também o Sr. d. Fernando, e principalmente o Sr. Rei d. João I, que lhes deu Regimento pelos seus negócios, e comércio, e lhes aumentou os privilégios.

O sr. d. Duarte os protegeu; porém o Sr. d. Afonso V restringiu os seus privilégios.

A razão desta declarada proteção aos judeus da maior parte dos nossos Reis, foi, sem dúvida, pelo grande benefício, que com eles experimentavam para o Reino, e Real Fazenda.

 

3. Por causa do amor da sua antiga pátria, do benefício clima, e grande comodidade do extenso comércio deste Reino, e das colônias, várias vezes os descendentes das famílias judias expulsas, tentarão inutilmente de voltar para este Reino.

E ouvi dizer, que no reinado do Sr. rei d. José chegaram a exibir sumas consideráveis para obter tal licença; e já se contentavam de estabelecer-se somente em Almada.

 

4. A causa da sua expulsão de Espanha e Portugal, não foi por causa de insurreições, levantamentos, ou de quererem Prosélitos (sic); porque disto não temos verídicos exemplos, e se algum louco se diz judeu como Lorde Gordan em Inglaterra, são poucos anos, haverá muitos poucos que o imitam, mas sim por espírito de Religião mal-entendido de Fernando, e Isabel, Reis de Castela; e por razões políticas do Sr. rei d. Manoel.

Por tais persecuções (sic) os judeus para salvar porção dos seus cabedais ideavam, e deram princípio as letras de câmbio.

Enfim de gente industriosa, comerciante, que não tem outro fim principal, que se enriquecer; e que no mesmo tempo, pelo estado de abjeção, e vileza, na qual se acha a sua Nação dispersa, não podendo aspirar a honras, e distinções, nada se pode temer.

 

5. Esta era a ocasião oportuna, negociando com habilidade, na qual se podia receber dos judeus uma quantia avultada de dinheiro para restituí-los a este Reino: e também alcançar deles o empréstimo de cinco, ou seis milhões, que ainda ilegível não obstante chegar a salvamento o convoso (sic).

Se aumentará logo o rendimento da Real Fazenda com a capitação deles.

Dá indústria e especulações no comércio dos judeus se puderam esperar as grandes vantagens do Porto franco.

Concedendo-se lhes terras incultas se terá pronto aumento na Agricultura, a qual sem fundos consideráveis, não se pode esperar.

As imensas riquezas, que muitos destas famílias possuem, adquiridos com o comércio, são bem conhecidas.

 

6. Reformando alguma cousa o Regimento, que lhes deu o Sr. rei d. João I, e o que tinham pelo seu governo particular debaixo do Arraby Mor, e Magistrados públicos, e o que há de melhor naquele de Roma, e Veneza; se puderam os judeus domiciliar neste Reino sem opor-se a polícia geral da Nação.

7. E para sossegá-los do horror, e medo em todo o tempo da intolerância; querendo-os de novo aceitar; seria então indispensável restituir aos Bispos o seu antigo, e próprio Direito de vigiar sobre a pureza, e conservação da nossa Religião; estabelecendo-se também para o castigo (sic) a imitação dos venezianos um tribunal para a Blasfêmia.

Assim com o Porto Franco, e restabelecimento dos judeus se aumentará a povoação, e riquezas deste Reino, o cujo reinado será sempre na História das Nações celebrado: esta dispersa Nação protegida tanto por um sábio, e grande rei, qual foi João I; achará em um João VI, outro Patrono, restituindo-a a sua antiga Pátria.”

 

[1] HEBREUS: povo de origem semita - indivíduos descendentes dos povos e culturas oriundas da Ásia ocidental e, portanto, pertencentes à mesma família etnográfica e linguística, como os assírios, os aramaicos, os fenícios e os árabes -, os hebreus, segundo os primeiros relatos, habitavam o sul da Mesopotâmia. Eram pastores seminômades, organizados em pequenos grupos, e que tinham na religião judaica a sua principal característica, aquilo que os identificava como povo. O judaísmo - primeira religião monoteísta -, os diferenciava sobremaneira dos outros povos que também habitavam essa conturbada região e praticavam o politeísmo. Há aproximadamente 2000 anos a.C., os hebreus radicaram-se no vale do rio Jordão, na Palestina. A partir dessa ocupação, deixam o seu estado tribal para assumir uma identidade nacional, onde a terra, tornar-se-ia outro elemento de união desse povo. Por volta do ano 70 d.C., os romanos dominaram a região, destruindo sua principal cidade, Jerusalém. A partir de então, os hebreus, expulsos, dispersaram-se pelo mundo – o que ficaria conhecido como diáspora judaica. Foi no período romano que o etnônimio passou a ser utilizado também para referir-se aos judeus, um grupo étnico e religioso de ascendência hebraica. Durante a diáspora, os hebreus migraram para outras regiões do globo, sobretudo a Ásia Menor, África e o sul da Europa, onde formaram comunidades judaicas no intento de manter suas crenças e tradições. No mundo ibérico, sua presença sempre foi bastante conturbada. Constantemente sujeitos a perseguições, os judeus eram difamados como usurários, assassinos, ladrões, feiticeiros, etc. Expulsos pela Inquisição espanhola, em 1492, também enfrentaram a Inquisição em Portugal, após o casamento entre d. Manoel I e Isabel, princesa espanhola filha dos reis católicos. Entre as diversas leis contra os judeus, que foram publicadas nessa época, destaca-se o édito de expulsão de d. Manoel I, publicado em 1496, que obrigava os judeus e muçulmanos a sair do país ou a converter-se ao cristianismo. A partir de então, milhares de judeus foram forçados a adotar a fé católica, tornando-se os chamados cristãos-novos, mudando, inclusive, seus nomes, embora muitos tenham conservado em segredo a sua identidade, sendo denominados criptojudeus. Nas várias ondas de antissemitismo que atingiram os judeus, seus bens foram confiscados e suas mulheres condenadas à fogueira como hereges. Com relação à América portuguesa, os judeus aqui aportaram já em 1503, na condição de cristãos-novos, impulsionando o processo de colonização, com o aval da Coroa portuguesa. Desde 1535, era prática Portugal deportar para a América criminosos de todos os tipos e, com a introdução do Santo Ofício no Reino, que teve seu primeiro Auto-de-fé em 1540, os judaizantes - assim denominados aqueles que secretamente praticavam a fé judaica, mesmo na condição de cristãos-novos - também seriam degredados para o além-mar. Muitos também vieram fugidos da Inquisição, mesmo antes de uma acusação formal, pois o tribunal foi implacável na busca da origem étnica dos portugueses. Procuravam nos novos territórios ultramarinos um refúgio. No entanto, em fins do século XVI, a Inquisição se fez presente também na América portuguesa, através das visitas de inquisidores do Tribunal do Santo Ofício português, perseguindo e processando cristãos-novos por quaisquer condutas que ferisse os dogmas da Igreja Católica, entre elas as práticas de tradições e ritos judaicos. A partir da primeira visita em 1591, na Bahia, os cristãos-novos, sendo eles sinceramente convertidos ou não, enfrentaram um clima de denuncismo, preconceito e hostilidade. Pode-se afirmar, contudo, que as perseguições que teriam se iniciado no século XVIII enfrentaram muitas dificuldades, tendo em vista à ocupação territorial bastante espalhada feita pelos cristãos-novos na América portuguesa, levando a um número reduzido de prisões. Anita Novinsky (1972) também sustenta a ideia de que o interesse econômico da metrópole, ou seja, o peso das atividades financeiras desenvolvidas pelos cristãos-novos e sua importância na ocupação do território, contribuiu para as poucas detenções. Os judeus viveriam um período de relativa liberdade religiosa durante o período de ocupação holandesa no nordeste brasileiro (1630-1654). Algumas famílias de origem lusa, residentes nos Países Baixos, migraram para o nordeste, especialmente para Pernambuco, desfrutando da liberdade concedida então, sobretudo no período de Maurício de Nassau. Com a expulsão dos holandeses, muitos judeus regressaram à Holanda, outros ajudaram na fundação de Nova Amsterdam, atual cidade de Nova Iorque. A diáspora judaica chegou ao fim em 1948, com a fundação do Estado de Israel em sua região de origem, onde havia se mantido, ao longo do tempo, uma expressiva presença judaica. Ainda hoje, o povo judeu mantém a sua unidade através das histórias, tradições e cultos religiosos, independentemente do idioma ou da nacionalidade de cada indivíduo.

[2] EXPULSÃO [DOS JUDEUS DA PENÍNSULA IBÉRICA]: a expulsão dos povos hebreus da península Ibérica aconteceu em fins do século XV, expressando a tentativa de cristianização da região por parte da Igreja Católica. Os primeiros a sofrerem com a ação da Santa Inquisição foram os judeus da Espanha, expulsos pelo édito de 1492 migrando, em grande número, para Portugal. No reino português, os judeus mantiveram-se a salvo da Inquisição até o casamento entre o rei d. Manuel e a princesa espanhola d. Isabel. A partir de 1496, a conversão à fé católica passou a ser condição para a permanência no reino. Os que ficaram em Portugal foram obrigados a abandonar as práticas judaicas e batizados a força, tornando-se “cristãos-novos” o que implicava em uma série de restrições na vida pública - era necessário ser “limpo de sangue” em todo império português – como comenta Lina Gorenstein. (Cf. Cristãos-novos, identidade e Inquisição. Rio de Janeiro, século XVIII. WebMosaica. Revista do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall, v. 4, n. 1, jan-jun., 2012) e em uma distinção em relação aos cristãos velhos, além de suportarem preconceitos e perseguições naquelas sociedades. Mesmo assim, durante todo o período da Inquisição, estas pessoas foram vigiadas uma vez que a Igreja desconfiava da sinceridade da conversão e da continuidade das práticas religiosas judaicas às escondidas o que de fato ocorreu, sendo esse fenômeno conhecido como criptojudaismo.

[3] MOUROS: também chamados de mauros ou mauritanos (pelos antigos romanos), o termo refere-se aos povos islâmicos de língua árabe oriundos do Norte da África que a partir do século VII invadiram a Península Ibérica, a Sicília, Malta e a França. Faziam parte dos grupos étnicos berberes e árabes, dominaram por vários séculos parte da Europa, divididos em grandes e pequenos califados, emirados e taifas. Até o ano de 1492 quando foi encerrado o processo de Reconquista com a rendição do último reino, de Granada (Espanha), expandiram sua cultura, arquitetura e religião principalmente entre os ibéricos, convertendo boa parte de seus habitantes ao islamismo. Com a retomada do Cristianismo como religião oficial, a maior parte das monumentais mesquitas construídas pelos mouros foi convertida em igrejas em um processo de sincretismo, e a arquitetura mista passou a ser denominada mourisca, bem como os mouros que se converteram ao Cristianismo e permaneceram na Europa depois da expulsão definitiva.

[4] ARRABI-MOR: magistrado principal do sistema judicial seguido pelas comunidades judaicas no reino português. A aplicação de uma legislação própria, fundada no direito talmúdico (o Talmud constitui um extenso comentário a Torá ou Pentateuco, conjunto dos cinco livros sagrados do judaísmo em que se concentra a doutrina judaica), sempre que se tratasse de um réu judeu, foi confirmada no reinado de d. Afonso III e sancionada sob d. Dinis em 1284. Defendia que apenas um judeu pudesse testemunhar contra outro, mas devido às pressões exercidas pela Igreja e outros grupos, essa lei foi revogada posteriormente. O arrabi-mor era eleito por uma assembleia e sua representação dos demais membros da comuna diante do poder régio era confirmada pelo monarca.

Sugestões de uso em sala de aula:
Utilização(ões) possível(is):

- No eixo temático sobre a “história das relações sociais da cultura e do trabalho”
- No tema transversal “pluralidade cultural”


Ao tratar dos seguintes conteúdos
:

- A formação da sociedade colonial
- Sociedade colonial: práticas e costumes
- A Contra-reforma e a Santa Inquisição: conseqüências no mundo ibérico
- Relação Igreja e Estado: ações e conseqüências da propagação da fé católica

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