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Comentário

Escrito por Super User | Publicado: Terça, 24 de Janeiro de 2017, 13h02 | Última atualização em Quinta, 09 de Agosto de 2018, 16h05

Elaine Cristina F. Duarte
Mestre em História - UERJ

Vivian Zampa
Mestre em História - UERJ


A definição apresentada em um dicionário português do século XVIII apresenta os ciganos como povos vagabundos e desonestos, que se diziam naturais do Egito e obrigados a vagar pelo mundo, por serem descendentes dos que não deram abrigo a Virgem Maria. O texto escrito por Raphael Bluteau traduz como a sociedade lusitana moderna percebia os povos ciganos com os quais convivia. Na documentação oficial dos séculos XVI ao XVIII, o termo aparece quase sempre ligado a assaltantes, bandidos, assassinos e transgressores da lei, acompanhando atividades ilícitas e jogos variados.

Os ciganos constituem-se em comunidades itinerantes espalhadas por diversas regiões do mundo. Embora suas origens sejam incertas, reconhece-se que os primeiros grupos alcançaram os Bálcãs no início do século XIV, espalhando-se, a partir de então, por toda a Europa, chegando a Portugal provenientes da Espanha no início do século XVI1.
  
Desde o início, as relações dos ciganos com as diferentes sociedades com que viveram foram marcadas pela incerteza e pelo preconceito. A vivência em grupos, a variedade de costumes e línguas, o desconhecimento de suas tradições e a falta de uma adequação aos padrões da época, geraram um pré-julgamento negativo destas populações itinerantes durante grande parte de sua história. A alegria das festas, o estilo nômade, as mulheres consideradas importunas (tanto por transitarem livremente pelas ruas quanto pela ousadia de abordarem as pessoas para a leitura das mãos), fizeram com que constantemente as autoridades descrevessem o povo cigano de forma pejorativa.

Assim que chegaram às terras ibéricas, os ciganos começaram a sofrer todo o tipo de vigilância. Em Portugal, as perseguições às comunidades constavam de alvarás e dispositivos legislativos, que os acusavam de furto e feitiçaria. Desta forma, foram proibidos de entrar nos “Reinos e Senhorios” portugueses, com pena de prisão, açoite público e desterro aos que desobedecem. Na Espanha, Felipe IV estabeleceu uma série de proibições a estes povos em 1633, como se reunirem em público ou particular, usarem idiomas próprios, vestirem roupas diferentes e, ainda, praticarem sua dança.

De acordo com os registros oficiais, foi através de uma punição que o primeiro cigano veio habitar as terras brasileiras. Trata-se de João Torres, que teve sua pena de prisão comutada das galés para cinco anos de degredo no Brasil, sendo acompanhado por sua família.

Em terras brasileiras, os grupos desenvolveram diversas atividades profissionais, embora a documentação existente registre somente os chamados delitos da lei. Por ser um povo nômade, rapidamente sua mobilidade foi aproveitada para o trabalho do comércio de escravos, de animais e de objetos pelo interior do Brasil. Não obstante, registros confirmam as diversas profissões em que também atuaram, tais como, caldeireiros, ferreiros, latoeiros, ourives, além das mulheres, que exerciam atividades ligadas à tradição da quiromancia e cartomancia.

 A partir de 1808, com a chegada da Corte portuguesa ao Brasil, os ciganos aproveitaram-se do crescimento populacional e econômico da cidade do Rio de Janeiro para aumentar o comércio de escravos de segunda mão, utilizando-os para a venda. Além dos mercados da capital, também comerciaram os cativos por todo o interior do país, destacando-se, sobretudo, em Minas Gerais2.  Neste período, alguns grupos foram mais valorizados e aceitos por realizarem o comércio de escravos - tarefa essencial na economia colonial -, chegando os mais ilustres, inclusive, a patrocinarem festas na Corte. Dentre as referências a ciganos artistas que participaram das festividades reais, destaca-se uma de 1810, onde um grupo executou variadas danças na comemoração do casamento da filha de d. João VI, d. Maria Teresa, com o infante espanhol d. Pedro Carlos3. 

 De uma maneira geral, as fontes documentais sobre os ciganos apresentam-se em pequena quantidade. Por serem ágrafas, essas comunidades itinerantes não deixaram registros escritos. Desta forma, reconhecemos o grupo, principalmente, através das impressões de chefes de polícia, viajantes, clérigos e funcionários públicos4.

O acervo do Arquivo Nacional dispõe de documentos que registram a presença das comunidades ciganas no Brasil colonial. Distribuídos pelos fundos Série Interior, Vice-reinado, Secretaria do Estado do Brasil, Relação da Bahia, Marquês do Lavradio, Negócios de Portugal e Polícia da Corte, estes registros comprovam a visão oficial e socialmente construída sobre estes povos, enquanto grupos suspeitos e freqüentemente ligados a transgressões de todo o gênero, como roubos e agressões.

Como já mencionado, as punições impostas aos ciganos foram severas, incluindo os açoites em público e o degredo. Em 1719, o governador do Rio de Janeiro Aires de Saldanha de Albuquerque registrou em carta o envio de um grupo de ciganos para o presídio de Benguela, decorrente dos furtos e outros delitos que estavam praticando na capitania sob sua jurisdição. Nesta carta, destinada ao capitão-mor da região, Saldanha de Albuquerque orientou ainda que os presos fossem punidos “com graves penas e castigos”, caso tentassem fugir (Negócios de Portugal, caixa 678, pct. 01).

Em meio a variadas práticas de controle, a prisão foi a penalidade mais freqüentemente aplicada no Império português. No ano de 1798, em Lisboa, o intendente geral da Polícia Diogo Inácio Pina Munique expediu uma ordem para que os corregedores promovessem a prisão de todos os ciganos e demais pessoas que estivessem circulando pelas suas respectivas comarcas sem passaporte, fossem eles nacionais ou estrangeiros. Esclareceu ainda que essa pena também seria aplicada a todos aqueles que abrigassem ou protegessem os foragidos. (Negócios de Portugal, caixa 678, pct. 01). No mês seguinte, o mesmo intendente registrou em carta o aumento do número de roubos realizados por quadrilhas de homens armados  e suas suspeitas de que os ciganos faziam parte destes bandos (Negócios de Portugal, caixa 678, pct. 01).

No Brasil, o intendente geral da Polícia da Corte Paulo Fernandes Viana igualmente dispensava uma atenção especial a estas comunidades. Em 1819, a correspondência enviada por Fernandes Viana ao juiz do Crime do bairro de São José abordou a prisão de um grupo de ciganos sobre os quais, além da acusação de roubo, pesava a notícia de assassinatos no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e São Paulo (Polícia da Corte, códice 330, vol. 01). Mesmo antes da instalação da Polícia na América portuguesa, as autoridades coloniais exigiam dos órgãos competentes as medidas necessárias para promoverem suas prisões.

Na correspondência enviada por d. Fernando José de Portugal ao coronel de milícias do distrito de São João de Caraí, em outubro de 1802, comentam-se os atos de desordem cometidos pelos ciganos na região (inclusive o roubo de cavalos e de escravos), determinando que fossem tomadas as medidas cabíveis para a prisão do grupo e o restabelecimento da ordem. Dias depois, o mesmo d. Fernando registrou em ofício a aprovação das medidas adotadas pelo coronel de milícias de Maricá, pondo fim aos insultos e delitos cometidos por estes grupos no seu distrito. Ressaltou apenas que a estas medidas era importante acrescentar os motivos das prisões, a devolução dos roubos e a expulsão destas comunidades da localidade (Secretaria de Estado do Brasil, códice 70, vol. 23).

Como se pode notar, os ciganos foram constantemente alvo de investigações realizadas pelo poder público, muito atuante na repressão às desordens das quais eram acusados. Nem sempre os resultados dessas investigações foram satisfatórios para o governo, conforme indica o ofício enviado pelo marquês de Aguiar ao juiz de fora da vila de Campos, em 1815, informando sobre o fracasso da investigação para a prisão de um bando de ciganos armados que estavam agredindo as pessoas, “sem o menor respeito à autoridade real” (Série Interior, IJJ9 24). Seja como for, apesar de todos os esforços empreendidos pelo poder central, os ciganos conseguiram resistir às tentativas de controle e garantir a manutenção de sua cultura, embora não tenham conseguido desvencilhar-se da imagem negativa construída e reforçada ao longo dos séculos.

1 SANTANA, Maria de Lourdes. Os ciganos: aspectos da origem social de um grupo   cigano em Campinas. São Paulo, FFLCH, USP, 1983. p. 29.
2 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. História dos Ciganos no Brasil. Recife, Núcleo de Estudos Ciganos, 2000. Livro Digital. Disponível na página: www.dhnet.org.br/direitos/sos/ciganos/ciganos02html
3 MOONEN, Frans. “A história esquecida dos ciganos no Brasil”. In: Saeculum, Paraíba: n. 2, jul./dez. 1996. p. 132.
4 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit. 2000.

 

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