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Comércio entre Portugal e Rússia no contexto das invasões francesas

Publicado: Quinta, 14 de Junho de 2018, 13h41 | Última atualização em Segunda, 23 de Agosto de 2021, 14h29

Parecer dos conselheiros diretos do príncipe regente d. João acerca da solicitação de Faustino da Silva Ramos, mestre do bergantim Mercúrio Feliz. Com a alegação de ter sido o primeiro negociante a tentar o comércio direto entre Brasil e Rússia, Faustino da Silva solicitou benefícios ou a isenção dos direitos alfandegários que recaíam sobre as suas mercadorias. De parecer contrário à solicitação, os conselheiros ressaltaram que ele não trouxe inovação alguma ao comércio ou à navegação, tendo apenas se aproveitado das oportunidades comerciais possibilitadas pela abertura dos portos brasileiros. Outrossim, enfatizaram que esse novo contexto não afetava os tratados firmados anteriormente entre Portugal e Rússia.

 

Conjunto documental: Conselho da Fazenda. Consultas sobre vários assuntos
Notação: códice 41
Data-limite: 1808-1830
Título do fundo ou coleção: Conselho da Fazenda
Código do fundo: EL
Argumento de pesquisa: abertura dos portos
Data do documento: 13 de agosto de 1810
Local: Rio de Janeiro
Folha: 20v a 21v

 

Faustino da Silva Ramos, mestre do bergantim[1] Mercúrio Feliz, alega que tivera a felicidade de ser o primeiro que se afoitou a empreender a viagem de São Petersburgo, na Rússia, para esta corte, trazendo efeitos que até o presente tem sido importados por outras nações; e que para indenizar-se dos prejuízos que sofreu pela injusta detenção que tivera em Copenhague[2], e dos incômodos que quase sempre acompanham as primeiras expedições, implora toda a possível eqüidade nos direitos[3], ainda mesmo daqueles que o suplicante como nacional devesse; e igualmente as licenças necessárias para outra semelhante expedição, tomando S. A. R.[4] ao suplicante e sua família de baixo da sua augusta e real proteção.

Parece aos conselheiros Luís Beltrão de Gouvêa de Almeida, Leonardo Pinheiro de Vasconcelos e Diogo de Toledo, que o decreto de 11 de junho de 1808[5], que regulou os direitos da alfândega no Brasil dos comerciantes nacionais, compreendeu na sua sanção a súplica de Faustino da Silva Ramos, capitão do bergantim Mercúrio Feliz, vindo da Rússia, carregado com gêneros daquele império, que pede, por ser o primeiro navegador que abriu o caminho deste comércio direto, algum benefício ou perdão de direitos. O suplicante não fez uma coisa nova, nem em comércio, nem em navegação, e a utilidade desta viagem e deste comércio ativo e passivo são as que hão de convidar outros empreendedores a tentar especulações da mesma natureza, assim como outros de longo curso. Esta viagem é nova porque nem este nem outros navegadores de comércio a podiam fazer por lhe ser proibida; e neste sentido, qualquer navegação, para o norte ou sul, direta com o Brasil é nova; e todos os que a empreenderem exigirão favores e benefícios nos direitos, o que é um absurdo. O suplicante não abriu uma nova carreira à navegação; aproveitou-se da conhecida e do benefício da carta régia de 28 de janeiro de 1808[6] para ser o primeiro a mostrar a seus compatriotas as utilidades daquele comércio e navegação.

Por este motivo somente, merece o favor que V.A.R. for servido fazer-lhe, não como um descobridor ou inventor de caminhos ou coisas ignoradas, mas como um navegador amante da sua nação, que se arriscou primeiro a este comércio direto; sem, contudo, lhe pertencer a graça do perdão de meios direitos, que se acham estabelecidos a certos e determinados gêneros nos tratados de 1787 e 1799[7], porque as altas potências contratantes de Portugal e Rússia, quando ratificaram os tratados não podiam certamente ter em vista o comércio direto com o Brasil, nem os seus plenipotenciários podiam sem ignorância ou crime exceder seus poderes para contratarem sobre um comércio que não existia, que era vedado e que um direito público reconhecido por todas as nações não permitia: antes o fazia exclusivo da nação que tinha colônias.

A diferença de tempos e de circunstâncias que alterou o sistema geral de comércio com o Brasil não limitou, nem aumentou os tratados anteriores, que não podiam compreender sucessos não existentes e que até pareciam fora da ordem possível; além de que a letra dos mesmos tratados não necessita de comento ou interpretação; eles falam de comércio direto de Portugal com a Rússia; este está em pé, segundo os seus artigos; a nova legislação a respeito do comércio direto com o Brasil não os destrói ou ofende; assim como as novas graças concedidas a este não podem ser extensivas àquele da compreensão dos tratados porque então faltava a igualdade e reciprocidade que as duas altas potências contratantes quiseram equilibrar e estabelecer, e que se não podem alterar sem o seu unânime consentimento.

A vista de tudo V. A. R. mandará o que for servido. Rio em 6 de agosto de 1810.

A. R. Como parece aos conselheiros Luiz Beltrão de Gouvêa de Almeida, Leonardo Pinheiro de Vasconcelos e Diogo de Toledo. Palácio do Rio de Janeiro, 13 de agosto de 1810.

 

[1] BERGANTIM: os bergantins eram navios de remos de traça, muito rápidos e de fácil manobra. Eram equipados com dez a dezenove bancos corridos de bordo a bordo. Envergavam tanto vela redonda quanto latina com um ou dois mastros. Nos primeiros tempos da presença portuguesa no Oriente realizavam as missões de contato, reconhecimento e transporte. Prestavam-se ainda a servir as fortalezas mais importantes, particularmente nas zonas onde a presença naval não era permanente. O bergantim era também uma embarcação de ostentação, favorito de monarcas e grandes senhores.

[2] DETENÇÃO QUE TIVERA EM COPENHAGEM: a expansão do Império napoleônico, a partir de 1799, resultou na deposição de muitos monarcas que não aceitavam ou compactuavam com os planos políticos do imperador francês para o continente europeu. Alguns governos resistiram às pressões impostas pela França que vinha promovendo uma campanha pelo controle do comércio global. A atitude desses governantes de não aderir às imposições francesas levou Napoleão a proibir, em 1806, o desembarque em quaisquer portos continentais europeus de navios a serviço de países que não estivessem aliados à França. O decreto do “Bloqueio Continental” afetava, assim, diversas nações que dependiam do comércio com países não alinhados com o governo bonapartista. Entre estes encontravam-se Rússia e Dinamarca que, em um primeiro momento, se mantiveram neutros. Copenhague, capital dinamarquesa, estava sob constante ameaça francesa, o que levou a Grã-Bretanha a lançar um ataque secreto e preventivo em 1807. Os portos dinamarqueses foram então destruídos e sua frota tomada pelos ingleses. A brutalidade do ataque, que levou à morte de mais de mil civis dinamarqueses, despertou críticas de toda a Europa, inclusive de membros do parlamento britânico. Apesar disso, foi considerado um sucesso em termos estratégicos, pois garantia uma rota de entrada de produtos ingleses pelo norte da Europa.

[3] DIREITOS DAS MERCADORIAS: referem-se ao direito fiscal aduaneiro. Trata-se das leis referentes à importação e exportação de mercadorias, e igualmente a uma série de atividades a elas relacionadas, como fiscalização, carga, descarga, armazenagem, transporte etc. Antes da carta de 28 de janeiro de 1808, que determinava a abertura dos portos do Brasil às nações amigas de Portugal, os direitos não figuravam na pauta de discussões da colônia, limitada a seu comércio exclusivo oficial com a metrópole – salvo algumas exceções e o contínuo contrabando. Em virtude da transferência da sede do governo português para o Rio de Janeiro, os portos brasileiros, abertos, passam a ser frequentados por outras nações estrangeiras, e não somente por Portugal. Essa ação impôs a instituição de novos percentuais a serem pagos nas alfândegas do Brasil e uma nova ordem de valores que favorecia os produtos ingleses. Isto aconteceu devido ao acordo estabelecido com a Grã-Bretanha, que havia escoltado a esquadra portuguesa até as Américas em troca de abertura comercial com o Brasil, visando a aliviar o escoamento de sua produção, limitado pelo bloqueio continental imposto por Napoleão à Europa. A carta de 28 de janeiro institui o percentual de 24% a ser cobrado sobre os produtos estrangeiros e de 16% sobre os produtos portugueses. O decreto seguinte, de 11 de junho do mesmo ano, diminui em 8% os impostos sobre os produtos de Portugal e dá 5% de abatimento para os produtos estrangeiros transportados em navios portugueses. O tratado de comércio e navegação com a Inglaterra, de 1810, reduziu para 15% a tarifa alfandegária sobre produtos ingleses — favorecendo este país em relação a outros e até mesmo a Portugal, que pagava valores mais altos. Em fevereiro de 1811, para favorecer o comércio com as possessões portuguesas na África e, sobretudo, na Ásia, uma nova lei determinava que as mercadorias vindas destes continentes, especialmente de Goa, Diu e Damão, pagariam metade dos direitos de entrada (16%) quando transportadas em navios portugueses — protegendo principalmente a produção têxtil dos territórios portugueses nas “Índias”, tornando-as competitiva com as fazendas inglesas. Próximo ao final do período joanino no Brasil, sobretudo depois da coroação acontecida no Rio de Janeiro em 1818 e o não-retorno da Corte, portugueses cobraram e protestaram contra a situação de inferioridade em que se encontrava a metrópole. No que foram atendidos com uma nova lei, que reduziu mais a cobrança da entrada de produtos portugueses e aumentou os entraves dos produtos estrangeiros, visando a melhorar o comércio português e diminuir o domínio inglês nos postos do Brasil.

[4] JOÃO VI, D. (1767-1826): segundo filho de d. Maria I e d. Pedro III, se tornou herdeiro da Coroa com a morte do seu irmão primogênito, d. José, em 1788. Em 1785, casou-se com a infanta Dona Carlota Joaquina, filha do herdeiro do trono espanhol, Carlos IV que, na época, tinha apenas dez anos de idade. Tiveram nove filhos, entre eles d. Pedro, futuro imperador do Brasil. Assumiu a regência do Reino em 1792, no impedimento da mãe que foi considerada incapaz. Um dos últimos representantes do absolutismo, d. João VI viveu num período tumultuado. Foi sob o governo do então príncipe regente que Portugal enfrentou sérios problemas com a França de Napoleão Bonaparte, sendo invadido pelos exércitos franceses em 1807. Como decorrência dessa invasão, a família real e a Corte lisboeta partiram para o Brasil em novembro daquele ano, aportando em Salvador em janeiro de 1808. Dentre as medidas tomadas por d. João em relação ao Brasil estão a abertura dos portos às nações amigas; liberação para criação de manufaturas; criação do Banco do Brasil; fundação da Real Biblioteca; criação de escolas e academias e uma série de outros estabelecimentos dedicados ao ensino e à pesquisa, representando um importante fomento para o cenário cultural e social brasileiro. Em 1816, com a morte de d. Maria I, tornou-se d. João VI, rei de Portugal, Brasil e Algarves. Em 1821, retornou com a Corte para Portugal, deixando seu filho d. Pedro como regente.

[5] DECRETO DE 11 DE JUNHO DE 1808: assinado pelo príncipe regente d. João meses depois da chegada da Corte portuguesa ao Brasil, estabelecia “os direitos das mercadorias entradas nas Alfândegas do Brasil e das reexportadas”, ou seja, a tributação dos produtos entrados na colônia, ora sede do Império português, trazidos pelos vassalos do rei. Esse decreto deu prosseguimento ao processo de abertura dos portos, iniciado com a carta-régia de 28 de janeiro de 1808, e previa a remoção dos “estorvos” e entraves que dificultavam a circulação de bens no Brasil, o aumento do volume de comércio e o melhoramento da marinha mercantil e de guerra. De fato, o decreto vinha corrigir a situação estabelecida pela carta de 28 de janeiro que igualava estrangeiros e portugueses sob uma mesma taxa de impostos, de 24 % para produtos em geral, com exceção dos “molhados” – azeite, aguardentes e vinhos – que pagariam o dobro de tarifa (48%). O decreto de 11 de junho estipulava que as mercadorias e fazendas comercializadas pelos vassalos do rei em embarcações nacionais pagariam “somente” 16% de entrada nas alfândegas brasileiras e os gêneros molhados, por sua vez, pagariam menos um terço do que fora estabelecido pela carta de 28 de janeiro, aproximadamente 34%. A lei também determinava que as mercadorias importadas pelos vassalos que desejassem renegociá-las para reinos e domínios estrangeiros pagariam apenas 4% de imposto na “baldeação”, desde que as mercadorias estivessem embarcadas em navios nacionais. As transações com base nesse decreto aconteceriam nos portos da Corte, da Bahia, de Pernambuco, do Maranhão e do Pará, onde ocorreria a fiscalização na cobrança dos novos direitos. Caso fossem observados desvios, as punições seriam julgadas de acordo com o alvará de 5 de janeiro de 1785.

[6] CARTA RÉGIA DE 28 DE JANEIRO DE 1808: pela carta régia de 28 de janeiro de 1808, d. João VI ordenou a abertura dos portos brasileiros às "nações amigas" do Império português. A assinatura do decreto era a conclusão de um processo que se iniciara com a invasão de Portugal pelos exércitos franceses e que levara d. João VI a transferir a Corte para o Brasil. A medida atendia não apenas aos interesses do Império português, como também de outros países que tinham prejuízos com a restrição imposta pelos franceses, entre eles, Rússia e Inglaterra. Pela nova lei, não apenas o comércio entre seus vassalos estava liberado, como também fora levantado o embargo aos navios estrangeiros, com exceção das embarcações francesas e espanholas, tratadas formalmente como inimigos. Passaram a ser admitidas nas alfândegas brasileiras todos e quaisquer gêneros, fazendas e mercadorias, transportadas em navios estrangeiros (que não estivessem em guerra com Portugal) ou em navios portugueses, satisfazendo por direitos de entrada 24%. Vinhos, águas ardentes e azeites doces - os chamados gêneros molhados - pagariam o dobro do que até então se achava estabelecido. Quanto à exportação, a carta estabeleceu que os vassalos do Rei e estrangeiros poderiam exportar para os portos das "nações amigas" todos e quaisquer gêneros e produções coloniais, à exceção do pau-brasil ou outros produtos "estancados", que pagariam os mesmos direitos que vigoravam nas diversas capitanias.

[7] TRATADOS DE 1787 E 1799: referem-se ao Tratado de Amizade, Navegação e Comércio firmado entre Portugal e Rússia em 1787 e renovado em 1799 por meio dos ministros plenipotenciários Francisco José Horta Machado, de Portugal, e Alexandre Príncipe de Bezborodko, da Rússia. Pela carta de 1787 foram definidas vantagens comerciais para ambos os reinos, a saber: vinhos portugueses transportados em navios russos ou portugueses só pagariam quatro rublos de direito de entrada nas alfândegas russas, assim como o sal pagaria metade dos direitos, caso não excedesse os valores e quantidades estipulados para transporte, por tratar-se de um gênero estancado; tábuas, madeira para construção de navios, cânhamo, linhaça, óleo de cânhamo e linho, barras e arcos de ferro, âncoras e peças de artilharia, balas e bombas pagariam metade dos direitos nas alfândegas portuguesas, assim como algumas fazendas russas. Além destas vantagens, também foram estipuladas facilidades para o conserto de navios nos portos de ambos os países e garantia de respeito ao culto religioso. Em 19 de abril de 1799, foi publicada a ratificação do tratado de 1787, que confirmava as vantagens fiscais para os produtos de ambas as nações e apontava para a necessidade de apresentação de certidões que confirmassem a procedência dos produtos. Acrescentava também a diminuição pela metade dos impostos cobrados nas alfândegas portuguesas sobre os seguintes produtos russos: os brins, lonas e outras fazendas de linho, próprias para o velame dos navios. Já nas alfândegas russas, o azeite português e o tabaco em pó, rolo ou folha, vindo do Brasil, também seriam taxados pela metade. O novo acordo vigoraria por 12 anos a partir daquela data.

 

Sugestões para uso em sala de aula

Utilizações possíveis

* Nos eixos temáticos: "História das representações e das relações de poder".
* Ao abordar os sub-temas: "Nações, povos, lutas, guerras, revoluções" e "Cidadania e cultura no mundo contemporâneo".

Ao tratar dos seguintes conteúdos
* Administração colonial;
* Coroa portuguesa;
* Processo de formação, expansão e dominação do capitalismo no mundo (a expansão do comércio na Europa do Renascimento, a expansão colonial e o acúmulo de riquezas pelos Estados Nacionais europeus, entre outros).

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