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Marquês do Lavradio

Repressão à heresia

Escrito por Super User | Publicado: Terça, 06 de Fevereiro de 2018, 11h26 | Última atualização em Quarta, 14 de Abril de 2021, 14h58

Carta do marquês do Lavradio a Paulo de Carvalho e Mendonça descrevendo como pôs fim à ação de uma profetisa e de alguns "pregadores indiscretos" que se manifestaram sobre os abalos sísmicos ocorridos na noite do dia 1º de agosto de 1768 na Bahia. Esses religiosos discursaram sobre o fenômeno, remetendo ao ocorrido em Lisboa em 1° de novembro de 1755 e ao fim do mundo.

Conjunto documental: Marquês do Lavradio
Notação: AP-41
Data-limite: 1758-1791
Título do fundo: Marquês do Lavradio
Código do fundo: RD
Argumento de pesquisa: marquês do Lavradio
Data do documento: 1º de maio de 1769
Local: Bahia
Folha(s): carta nº 78

Carta de Amizade escrita a Paulo de Carvalho[1] em o 1° de maio de 1769 pelo Navio Nossa Senhora do Livramento.

 

(...).

Vejo o desacordo do miserável Bispo de Coimbra[2], não sei já quanto havemos ver extinto o abominável fanatismo[3]; porém como ele tinha criado raízes muito fundas estas custam muito mais a arrancar; nesta Capitania graças a Deus estou livre desta peste. Já aqui tive uma ocasião de querer aparecer uma profetiza, e alguns pregadores indiscretos porém de estado os fiz acabar, e contarei o caso; sentindo-se na noite do primeiro de agosto de 1768 às nove horas para as dez um grande abalo de terra, repetindo este segunda vez pelas onze horas se amotinou com o susto todo este povo[4], abandonando as casas, e saindo para os campos, entraram a espalhar-se as mesmas vozes que em Lisboa[5], de mar, de fogo, e finalmente que se acabava o mundo, saí imediatamente por toda a parte por onde estava o povo, e logo encontrei um pregador querendo absolver a todos, fazendo grandes exclamações, e dizendo mil ignorâncias, imediatamente o mandei calar, dizendo se tinha ordem do Prelado, ou do Governo, para de noite andar fazendo aquelas exclamações públicas, que se tornasse mais a desanimar-me o povo, que eu o havia de recolher aonde ele mais não aparecesse; substituí-me eu no lugar do pregador, e com tão bom fruto, que quando eram duas horas da noite se achavam quase todos recolhidos em casa, porque eu não vim para a minha sem que tudo ficasse no mesmo sossego em que estava antes de sentir o abalo; passados alguns dias chegou-me notícia de que uma freira dizia que o castigo não parava aí; mandei à prelada que a metessem em um cárcere a pão e água por uns poucos de dias, e que se tornasse a profetizar, que eu a meteria em prisão muito mais rigorosa, até que eu visse cumprida a sua profecia; isto os atemorizou, e emendou de tal forma, que não há nem fumos desta maganagem, e assim espero que venha a suceder na Europa, em se acabando de persuadir que as gentes já não são tão tolas, nem tão ignorantes, como os abomináveis jesuítas[6] nos tinham feito; Deus nos ponha em sossego que já não há paciência para sofrer semelhante casta de gente. (...).

Marquês do Lavradio[7]

Exmo e Revmo Sr. Paulo de Car

 

[1] MENDONÇA, D. PAULO ANTÔNIO DE CARVALHO E (1702-1770): clérigo português, irmão de Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal, e de Francisco José de Mendonça Furtado, foi monsenhor da Sé patriarcal de Lisboa, chegando a ser presidente do Conselho da Santa Inquisição e inquisidor-geral de Portugal. Sob sua jurisdição, o padre jesuíta Gabriel Malagrida foi condenado à morte por heresia e os jesuítas foram expulsos de Portugal e suas colônias (1759). Foi ainda presidente da Câmara do Senado de Lisboa (1764), e muito próximo do rei d. José I e da rainha d. Mariana Vitória de Bourbon, de quem foi secretário e gestor de propriedades. Nomeado cardeal pelo papa Clemente XIV, não chegou a receber a nomeação, pois faleceu antes.

[2] ANUNCIAÇÃO, D. MIGUEL DA (1703-1779): 16º conde de Arganil, 51º bispo de Coimbra, exerceu o bispado de 1741 a 1779. Em 1768, fora condenado pelo crime de lesa-majestade pelo Tribunal do Desembargo do Paço, pena cumprida até 1777, quando d. Maria I decretou sua libertação e a restituição do cargo. A acusação que lhe fora imputada estava relacionada com a publicação de uma pastoral, datada de 8 de novembro de 1768, pela qual criticava a conjuntura social, política e econômica de Portugal, muito aquém da época do rei d. Manoel, período de grande desenvolvimento do país. Também proibia em sua diocese a leitura de livros, de conteúdo herético em relação à doutrina católica, dentre eles, os de Luis Elias Dupin e de Justino Febronio. Entre seus escritos, foi encontrada uma obra dos jacobeus, seita criada pelo frei Francisco da Anunciação, religioso da ordem dos Eremitas de Santo Agostinho. A resistência à autoridade da Real Mesa Censória, que acusava o bispo de possuir ideias de cunho jesuíta e jacobeu, já que as mesmas iam de encontro às medidas centralizadoras do conde de Oeiras, futuro marquês de Pombal, levou ao processo e à prisão do religioso.

[3] ABOMINÁVEL FANATISMO: a expressão, característica do período pombalino, remete à Companhia de Jesus, ordem religiosa fundada por Inácio de Loyola, em 1540, marcada por uma severa disciplina, profunda devoção religiosa e intensa lealdade à Igreja. O grande poder acumulado pelos jesuítas ao longo dos anos, sobretudo na América portuguesa, foi contestado durante a administração pombalina (1750-1777), que resultou em um conflito de interesses com a Coroa. Pombal buscou, ao longo de seu ministério, submeter efetivamente a Igreja aos interesses do Estado, além de reformar e modernizar aspectos da administração pública lusitana, a fim de otimizar os lucros da Coroa. Nesse contexto de reformas, os inacianos foram eleitos como representantes da tradição a ser combatida, retrógrados e fanáticos que impediam qualquer progresso e renovação pautados pelos ideais ilustrados, dos quais Pombal e seus aliados se consideravam representantes. A reforma do sistema de ensino português foi emblemática nesse sentido, pois pretendia a substituição do método escolástico dos jesuítas – que predominava até então nas instituições de ensino – por uma lógica pautada no pensamento racional e na experimentação. A reforma da Universidade de Coimbra foi o grande representante da secularização educacional pretendida. Esse conflito entre Igreja e Estado levou à expulsão da Companhia de Portugal e seus domínios em 1759.

[4] TODO ESSE POVO [RELIGIOSIDADE POPULAR]: a religiosidade popular no Brasil desenvolveu-se a partir do sincretismo de variadas práticas religiosas, principalmente as dos negros africanos, ameríndios e brancos católicos. O processo colonizador perpetrado pela coroa portuguesa envolveu a participação primordial da Igreja Católica, principalmente através da Companhia de Jesus, ordem responsável pela propagação da religião e instrumento civilizador. A religiosidade foi assimilada e construída pelos colonos de forma independente do catolicismo oficial, afastando-se dos dogmas e hierarquização impostos, agregando rituais e cosmovisões característicos das culturas aqui disseminadas. No período colonial, o distanciamento da metrópole e a escassez de párocos e templos fomentaram práticas heterodoxas, principalmente no âmbito privado. Muitos recorriam a remédios e rituais mágicos para sanarem doenças e problemas cotidianos. No espaço público, as manifestações tendiam ao extremo, demonstrando piedade exagerada para fugir da vigilância da Inquisição, muitas vezes não condizendo com a vida diária. Em Portugal, a religiosidade popular apresentava especificidades, em função de como o catolicismo fora desenvolvido por lá, a partir da base cultural característico do país, atrelado ao caráter rural, que levaram à proximidade com os ritos pagãos e místicos, traços transportados para o Brasil. Exemplo forte desta característica é o sebastianismo, crença oriunda do século XVI, mas que permeou o imaginário português chegando até o Brasil, perdurando até o século XIX. O sebastianismo nasceu em função do desaparecimento do corpo do rei d. Sebastião na batalha de Alcácer Quibir, contra os mouros, em 1578. Desde então, os portugueses desenvolveram a crença no seu retorno. A ideia do advento de um rei libertador, não se limitou à fé no regresso de d. Sebastião, envolvendo, também, um conjunto de temas messiânicos sucessivamente reelaborados em contextos de crise e de indefinição política em Portugal.

[5] MESMAS VOZES QUE EM LISBOA: a destruição provocada pelo terremoto ocorrido no dia 1º de novembro de 1755, na cidade de Lisboa, gerou polêmicas sobre sua origem. As causas do terremoto estiveram sujeitas a interpretações de cunho científico e religioso, fomentando conjecturas que atribuíam tanto a um fenômeno natural quanto à ira divina. Esta última foi apregoada, principalmente, pelos inacianos, como o padre Gabriel Malagrida, provocando embates entre eles e o marquês de Pombal. O abalo sísmico gerou maremotos e fora sentido em grande parte da Europa e norte da África. A cidade de Lisboa foi a mais afetada, com perdas humanas - cerca de 15000 pessoas morreram, e materiais, criando um quadro de catástrofe. Uma crise econômica, social e política foi gerada no governo de d. José I, momento em que o marquês de Pombal assumiria a incumbência de reconstruir a cidade.   

[6] JESUÍTAS: ordem religiosa fundada em 1540 por Inácio de Loyola e marcada por severa disciplina, profunda devoção religiosa e intensa lealdade à Igreja e à Ordem. Criada para combater principalmente o protestantismo, sua fundação respondeu à necessidade de renovação das ordens regulares surgida das determinações do Concílio de Trento (1545-1563). A instalação da Companhia de Jesus em Portugal e nos seus domínios ultramarinos deu-se ainda no século XVI. O primeiro grupo de missionários jesuítas chegou ao Brasil em 1549, na comitiva de Tomé de Souza. Seus membros eram conhecidos como ‘soldados de Cristo’, dadas as suas características missionárias. Responsáveis pela catequese, coube também, aos jesuítas, a transmissão da cultura portuguesa nas possessões americanas por meio do ensino, que monopolizaram até meados do século XVIII. Fundaram, por todo território colonial, missões religiosas e aldeamentos indígenas de caráter civilizador e evangelizador. Em fins do século XVII, o modelo missionário já estava bem consolidado, difundido por quase toda a América, e os jesuítas acumulando grande poder. Os primeiros jesuítas a chegar ao Maranhão, em 1615, foram os padres Manuel Gomes e Diogo Nunes, detentores de uma posição privilegiada na região, tanto na evangelização e defesa dos índios, quanto no monopólio do comércio e armazenamento das drogas. São de religiosos da Companhia de Jesus relatos sobre os primeiros séculos da colonização. O padre italiano João Antonio Andreoni (André João Antonil) publicou em 1711 Cultura e opulência no Brasil. História da Companhia de Jesus no Brasil escrito por Serafim Leite, os dois volumes de Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas (1722-1776) do padre João Daniel, Tratados da terra e gentes do Brasil de Fernão Cardim e os numerosos sermões e cartas da Antonio Vieira são testemunhos importantes e reveladores do Brasil colonial. Os jesuítas também foram os responsáveis por espalhar a língua dos Tupinambá, chamada língua geral (nheengatu), largamente falada no Brasil até meados do século XVIII. O grande poderio e influência dos jesuítas na América portuguesa foram contestados durante a administração pombalina (1750-1777), gerando um conflito de interesses entre a Companhia de Jesus e o governo, que culminou com a expulsão dos membros dessa ordem religiosa em 1759. Cabe ressaltar que a decisão de expulsar os jesuítas de Portugal e de seus domínios, tomada pelo marquês de Pombal, não buscava reduzir o papel da Igreja, mas derivava da intenção de secularizar a educação, dentro dos moldes ilustrados.

[7] MASCARENHAS, D. LUÍS DE ALMEIDA PORTUGAL SOARES ALARCÃO D' EÇA E MELO SILVA E (1729-1790) - MARQUÊS DO LAVRADIO: 5º conde de Avintes e 2º marquês do Lavradio era filho do 1.º marquês do mesmo título d. Antônio de Almeida Soares e Portugal e de d. Francisca das Chagas Mascarenhas. Governador da Bahia entre 1768 e 1769, conseguiu neste curto período apaziguar os conflitos entre as autoridades locais e restabelecer a ordem na guarnição de Salvador. Sua forma de governar se pautava pela prudência na utilização dos recursos procurando manter suas contas sob estrito controle. Foi nomeado décimo primeiro vice-rei do Brasil em 1769, e seu governo durou 10 anos. Durante este período, a cidade colonial do Rio de Janeiro, que abrigava a sede do vice-reinado, passou por uma série de melhorias, como o aterro de pântanos e lagoas que prejudicavam a qualidade do ar, calçamento e abertura de ruas na parte central (inclusive a que leva seu nome), além de incentivos à produção local de alguns itens como o café e o vinho. Também foi responsável pela fundação da Academia Científica, em 1772, obedecendo à política pombalina de fomento às atividades científicas, que incluiu a remessa de coleções de História Natural e a criação de um horto botânico na cidade. No entanto, ao longo de seu governo, medidas impopulares, implementadas por ordem direta da metrópole, foram adotadas, como: o cumprimento das leis do Livro da Capa Verde do Distrito Diamantino – regulamentação da exploração de diamantes na colônia, editado por iniciativa do marquês de Pombal – e a extinção da Companhia de Jesus. Foi também durante sua administração que a situação de crescente instabilidade na região do Rio da Prata, com ocasionais conflitos armados entre forças espanholas e lusas, demandou providências para contornar a situação, como iniciativas de povoamento da região sul do Brasil e a construção de fortalezas na região, com o envio de guarnições. Em 1779, dois anos depois do falecimento do rei d. José I, o marquês do Lavradio deixou o governo do Brasil, sendo substituído por Luís de Vasconcelos e Sousa. De volta a Portugal, tornou-se conselheiro da Guerra, presidente do Desembargo do Paço, inspetor-geral das tropas do Alentejo e Algarve, veador da rainha e recebeu a Grã-cruz da Ordem de Cristo. A correspondência trocada por ele com outras autoridades e membros da nobreza em Portugal gerou as Cartas da Bahia (1768 a 1769), e as Cartas do Rio de Janeiro (1769-1770) publicadas pelo Arquivo Nacional. A instituição conserva ainda o fundo privado Marquês do Lavradio em seu acervo.

Sugestões de uso em sala de aula:

Utilização(ões) possível(is):
- Ao trabalhar o tema transversal "Pluralidade cultural"
- No eixo temático sobre "História das representações e das relações de poder"

Ao tratar dos seguintes conteúdos:

- Homem e a cultura
- A sociedade colonial: movimentos religiosos e culturais
- As relações sociais de dominação na América

 

Brasil colonial: religião e sociedade
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