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Joana d'Entremeuse

Escrito por Super User | Publicado: Quinta, 14 de Junho de 2018, 17h34 | Última atualização em Terça, 09 de Fevereiro de 2021, 23h17

Ofício de d. José de Castro, conde de Resende, vice-rei do Brasil, no qual avisa a d. Rodrigo de Souza Coutinho sobre a chegada do navio espanhol Boa Viagem. Informa que três franceses embarcados no navio, donos de muitas fazendas, foram retidos no Rio de Janeiro aguardando a decisão do regente quanto a sua situação. Entre eles, o conde de Resende destaca a francesa Joana d'Entremeuse, que segundo ele, foi trazida pela embarcação espanhola da cidade da Bahia, tendo novamente embarcado para Montevidéu com um navio carregado de mercadorias próprias. Após ter naufragado, carregou novamente sua embarcação e entrou no porto do Rio de Janeiro. Na cidade foi permitida a venda de seu navio e de lá partiu novamente para Montevidéu em navio fretado. Após alguns meses retornou à cidade tendo como destino o Cabo da Boa Esperança e a Ilha de França. Pedira ela ao conde de Resende a permissão para que pudesse navegar sob bandeira portuguesa a fim de evitar confrontos com ingleses. Tendo seu pedido negado, partiu para Lisboa para de lá continuar viagem em direção à sua pátria.

Conjunto documental: Registro da correspondência do vice-reinado para a Corte
Notação: códice 69, vol. 09
Datas-limite: 1799-1799
Título do fundo ou coleção: Secretaria de Estado do Brasil
Código do fundo ou coleção: 86
Argumento de pesquisa: estrangeiros, franceses
Data do documento: 5 de junho de 1799
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): 57 a 58v

 

No 303

Ilustríssimo e excelentíssimo senhor. No ofício 65 dei conta a vossa excelência da arribada, que aqui fez Eleutério Tavares, capitão do navio espanhol Boa Viagem, e dos motivos por que tanto ele como três franceses, que se fazem donos de muitas fazendas embarcadas no mesmo navio, se acham retidos nesta cidade até que este negócio mereça a real decisão de sua majestade.
Entretanto uma francesa, que se intitula Joana d'Entremeuse[1], e que nesta cena parece que tem igualmente representado, me dá ocasião a descrever a vossa excelência a sua conduta por não julgar indiferente a viagem que esta mulher fez para Lisboa no próximo comboio, quando ela pela sua nação, pela sua viveza, pelo seu caráter insinuante, e pelos seus projetos, e indústria[2] se faz merecedora de ser olhada com circunspecção.
Tendo arribado o dito navio Boa Viagem à cidade da Bahia, esta francesa, que nele ia de passagem, deixou de se embarcar outra vez para Montevidéu em companhia do capitão Eleutério Tavares, e navegou depois para o mesmo porto em uma embarcação carregada por sua conta; mas tendo a infelicidade de naufragar, se é certo o que refere, do pouco que salvou, e pôde apurar, carregou novamente o seu navio, e entrou no porto desta cidade. Atendendo a vários requerimentos que me apresentou, e que pareciam justos, ainda que sempre me deveu a maior desconfiança lhe permiti a venda do navio, por não haver ordem em contrário, e juntamente a dos gêneros da sua carga, por serem todos suscetíveis de corrupção, precedendo sempre o parecer do ouvidor juiz da Alfândega[3], como pratico antes de tomar semelhantes deliberações.
Executada esta primeira ação, tornou a fazer viagem a Montevidéu em embarcação a fretada, levando carga de alguns efeitos do país, que lhe concedi somente quanto bastasse para o seu aprovisionamento. Passados meses, apareceu aqui segunda vez esta mulher em navio seu, dizendo que saíra de Montevidéu com o destino de ir ao Cabo da Boa Esperança[4], e passar-se a ilha de França[5], e que por evitar contestações com piratas[6] francesas [sic], pedira um ressalvo de Augusto Carbonel, comandante do corsário denominado Buonaparte, para poder navegar com segurança debaixo da bandeira castelhana. Todo o seu empenho logo que chegou a esta cidade foi pretender de mim um despacho, e permissão para poder navegar com pavilhão português, a fim de escapar de todo o encontro que tivesse com embarcações inglesas. Neguei-lhe absolutamente semelhante pretensão tão ofensiva da boa-fé, e aliança que existe entre esta nação, e a portuguesa, e até lembrando-me de que esta má fé constaria aos mesmos piratas franceses, se algum encontrasse com o navio desta mulher, e conhecesse a dissimulação com que navegava.
Desenganada de uma vez de não conseguir o seu intento, projetou navegar para Lisboa debaixo da proteção do comboio de Antônio José Valente, com depois me foi constante, mas figurando na sua imaginação, pois não tinha fundamento algum para o supor, que eu lhe denegaria também essa licença, tratou de vender o navio, como com efeito vendeu estipulando logo com o comprador de lhe dar a passagem livre para Lisboa, e a tudo o que lhe pertencesse.
Finalmente embarcou esta francesa com o desígnio de passar-se de Portugal à sua terra; e por não entreter a vossa excelência com outras muitas particularidades menos interessantes, que ocorreram nestas viagens, deixo-as em silêncio, e só torno a repetir a vossa excelência que o procedimento desta mulher se me faz tão suspeitoso, que me considero na obrigação de participá-lo a vossa excelência.
Deus guarde a vossa excelência. Rio de Janeiro cinco de junho de mil setecentos noventa e nove = Conde de Resende[7] = Senhor d. Rodrigo de Souza Coutinho[8].

 

[1] Uma das mais conhecidas contrabandistas de sua época, Joana D’Entremeuse atuou na região do Atlântico Sul e foi uma das raras mulheres envolvidas neste tipo de negócio, incluindo aí o corso e o comércio negreiro [ver tráfico de escravos]. Francesa de nascimento, exilou-se ou foi exilada nas ilhas Maurício em 1792, no auge da fase da Revolução Francesa conhecida como Terror, e lá se estabeleceu como “comerciante”. Era viúva e tinha duas filhas, uma das quais ainda vivia com seu sogro na França. Tinha fama de republicana, embora não o confirmasse ou negasse, e além de causar espanto e suspeição por suas atividades pouco usuais e ilegais, ainda era temida por representar as perigosas ideias e princípios franceses. Joana era proprietária do navio Boa Viagem e de sua carga, contrabandeada e pilhada em corso, e fazia parte de uma grande rede de contrabandistas que atuava entre o Prata, as possessões portuguesas na América e África e as ilhas onde habitava. Este bando “tirava o sono” das autoridades que não conseguiam impedir o contrabando e o comércio fora do exclusivo colonial. Talvez, Joana tenha se aproveitado de sua “viveza” e do “caráter insinuante”, atribuído a ela pelas autoridades locais, para conseguir burlar os funcionários da Coroa, desembarcar no Brasil, vender suas fazendas (contrabandeadas), embarcar mais uma vez para Montevidéu com produtos brasileiros (que lá vendeu) e retornar ao Rio de Janeiro, para dirigir-se ao Cabo da Boa Esperança, certamente carregando mais itens. Seu comportamento gerou as maiores suspeitas do vice-rei, o conde de Resende, que, em 1799, escreveria ao secretário de estado d. Rodrigo, sobre a suposta passageira que pretendia seguir para sua terra natal com a finalidade de buscar a filha e o sogro para viverem com ela. Apesar das suspeitas, conseguiu a proteção que precisava para seguir para Lisboa sob bandeira portuguesa. A francesa foi recebida em Portugal com grande desconfiança pelas autoridades locais, que implementaram uma investigação a seu respeito e encontraram evidências de suas atividades ilegais. Foi presa nesse mesmo ano, quando se procedeu a uma grande devassa para desvendar seus negócios, chegando-se a acreditar que pudesse ser uma espiã da República francesa nos domínios portugueses. Foi solta no ano seguinte por falta de provas, já que os papéis que a incriminavam desapareceram misteriosamente do processo. Voltou para França após o processo, não se tendo mais notícias dela.

[2] Na América portuguesa, o contrabando consistia no comércio ilegal, sem que esse tráfico fosse autorizado ou reportado as autoridades coloniais. Seu desenvolvimento deveu-se, principalmente, ao monopólio do comércio, às pesadas taxações e à falta de regularidade no abastecimento da colônia. Este tipo de comércio fazia circularem mercadorias nacionais e estrangeiras, recebendo destaque o ourodiamantes e pedras preciosas. O contrabando constituía ainda um dos poucos meios para escravos alcançarem a liberdade, daí muitos deles dedicarem-se ao garimpo clandestino. O fluxo de mercadorias contrabandeadas envolvia países como Inglaterra, Holanda e França, tendo alcançado tal vulto que parcela significativa do mercado colonial era abastecida por esta prática.

[3] Organismo da administração fazendária responsável pela arrecadação e fiscalização dos tributos provenientes do comércio de importação e exportação. Entre 1530 e 1548, não havia uma estrutura administrativa fazendária, somente um funcionário régio em cada capitania, o feitor e o almoxarife. Porém, com a implantação do governo-geral, em 1548, o sistema fazendário foi instituído no Brasil com a criação dos cargos de provedor-mor – autoridade central – e de provedor, instalado em cada capitania. Durante o período colonial, foram estabelecidas casas de alfândega, que ficaram sob controle do Conselho de Fazenda até a criação do Real Erário em 1761, que passou a cobrar as chamadas “dízimas alfandegárias”. Estas, no entanto, mudaram com a vinda da família real em 1808 e a consequente abertura dos portos brasileiros. Por esta medida, quaisquer gêneros, mercadorias ou fazendas que entrassem no país, transportadas em navios portugueses ou em navios estrangeiros que não estivessem em guerra com Portugal, pagariam por direitos de entrada 24%, com exceção dos produtos ingleses que pagariam apenas 15%. Os chamados gêneros molhados, por sua vez, pagariam o dobro desse valor. Quanto à exportação, qualquer produto colonial (com exceção do pau-brasil ou outros produtos “estancados”) pagaria nas alfândegas os mesmos direitos que até então vigoravam nas diversas colônias.

[4] Situado ao sul do continente africano, é conhecido por ser uma localização geográfica importante durante o processo de expansão marítima europeia. No século XV, Portugal buscou novas rotas marítimas para comercializar os produtos provenientes do Oriente Médio. Além da conquista de novos territórios ao longo do litoral norte da África, portugueses chegaram ao limite do território africano, região de navegação perigosa, com águas turbulentas que ofereciam muitas dificuldades para a tecnologia marítima da época. Em 1488, o navegador português Bartolomeu Dias chegou à região com sua tripulação enfrentando vários dias de severas tempestades que colocaram em risco a sobrevivência da expedição, o que levou o navegador português a chamar esse local de Cabo das Tormentas, mais tarde denominado Cabo da Boa Esperança. Essa conquista significou a descoberta de uma nova ligação com as Índias e a ampliação das rotas comerciais que não mais eram obrigadas a passar pelo mar Mediterrâneo para alcançar mercados orientais.

[5] Atuais ilhas Maurício, cuja capital é Port Louis. Descobertas inicialmente pelos portugueses em 1505, foram colonizadas pelos holandeses a partir de 1638, que a nomearam em homenagem a Maurício de Nassau. Os franceses controlaram a ilha em 1715 e a chamavam Île de France. Em 1814 os britânicos tomaram a ilha, restaurando o nome original.

[6] O saque, a pilhagem e o apresamento de embarcações e povoados vulneráveis foram, durante séculos, realizados por grupos organizados, que atuavam sob as ordens de um soberano ou de forma independente. O termo pirataria define uma atividade autônoma, sem qualquer consideração política ou razões de Estado (comerciais ou estratégicas). Sem nacionalidade juridicamente reconhecida, os piratas lançavam-se ao mar pilhando embarcações ou atacando regiões costeiras para angariar riquezas. Há registro de ataques piratas à costa brasileira, no período colonial, motivados pelo contrabando de produtos como o pau-brasil, bem como pela captura de escravos indígenas. Tornaram-se célebres os piratas franceses Jean Florin, Laudinière, Montbars, os irmãos Lafitte e Jean Davis, conhecido como o Olonês, que atuaram na região das Antilhas. Em um universo majoritariamente masculino, algumas mulheres disfarçadas também fizeram história, como Mary Head e Anne Bonney. O último reduto da pirataria ocidental foi o Mediterrâneo, onde piratas gregos e berberes eram atuantes desde a Idade Média. Não se deve confundir piratas com corsários. O corsário tem sua origem na Idade Média, mas se tornou especialmente importante durante os tempos modernos. Ao contrário do pirata, do ponto de vista do direito internacional, o corsário é um combatente regular, ligado a um Estado, a quem o governo dava uma carta de corso. Poderia ser mantido diretamente pelo governo ou por um particular. Não há grande diferença dos piratas quanto aos métodos. Porém, o corso reservava de 1/3 a 1/5 do butim para o tesouro real e executava ataques encomendados pelos Estados a que serviam, tal como DuGuay-Trouin, que invadiu o Rio de Janeiro em 1711 a serviço da Coroa francesa no âmbito da guerra de sucessão espanhola, colocando em lados opostos França e Portugal, aliados, respectivamente, à Espanha e à Inglaterra.

[7] D. José Luís de Castro (1744-1819), 2º conde de Resende foi governador e capitão-general da Bahia de 1788 a 1801, de onde seguiu para o Rio de Janeiro como vice-rei do Estado do Brasil até 1806. Considerado um administrador colonial com baixa popularidade, durante sua administração ocorreram a Conjuração Mineira e o julgamento e condenação dos envolvidos, dentre eles, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, preso, enforcado e esquartejado no Rio de Janeiro. Foi responsável também pelo fechamento e pela devassa da Sociedade Literária do Rio de Janeiro, academia voltada para literatura e filosofia natural, acusada pela sedição conhecida como a Conjuração do Rio de Janeiro, ocorrida em 1794. A administração de conde de Resende contribuiu para a urbanização da cidade do Rio de Janeiro e melhoria das condições sanitárias. Em relação à iluminação pública, instalou lamparinas com óleo de peixe, criou o primeiro Regulamento de Higiene, em 1797, e acabou com o despejo sanitário no Campo de Santana, aterrando a área contaminada e transformando-a em um grande “rossio”. Concluiu a reforma do Paço dos Vice-Reis, entre outras importantes obras de canalização e distribuição de água. Em 1792, a Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho foi criada, instituição encarregada da formação de engenheiros militares no país. A nomeação como Marechal de Campo, em 1795, sugere que atuou nas guerras contra a França, entre 1793 e 1795, concomitantemente com o vice-reinado. De volta a Portugal, foi nomeado Conselheiro de Guerra e recebeu a Grã-Cruz da Ordem de São Bento de Avis.

[8] Afilhado do marquês de Pombal, este estadista português exerceu diversos cargos da administração do Império luso, como o de embaixador em Turim, ministro da Marinha e Domínios Ultramarinos (1796-1801) e presidente do Real Erário (1801-3). Veio para o Brasil em 1808, quando foi nomeado secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, permanecendo no posto até 1812, quando faleceu no Rio de Janeiro. D. Rodrigo foi aluno do Colégio dos Nobres e da Universidade de Coimbra, tendo viajado pela Europa e mantido contato com iluministas como o filósofo e matemático francês Jean Le Rond d’Alembert, um dos organizadores da Encyclopédie. Considerado um homem das Luzes, destacou-se por suas medidas visando a modernização e o desenvolvimento do reino. D. Rodrigo aproximou-se da geração de 1790, vista como antecipadora do processo de Independência, e foi o principal idealizador do império luso-brasileiro, no qual a centralidade caberia ao Brasil. Sob o seu ministério, o Brasil adquiriu novos contornos com a anexação da Guiana Francesa (1809) e da Banda Oriental do Uruguai (1811). Preocupado com o desenvolvimento econômico e cultural, bem como com a defesa do território, Souza Coutinho foi um partidário da influência inglesa no Brasil, patrocinando a assinatura dos chamados “tratados desiguais” de que é exemplo o Tratado de Aliança e Comércio com a Inglaterra [ver Tratados de 1810]. Responsável pela criação da Real Academia Militar (1810), foi ainda inspetor-geral do Gabinete de História Natural e do Jardim Botânico da Ajuda; inspetor da Biblioteca Pública de Lisboa e da Junta Econômica, Administrativa e Literária da Impressão Régia; conselheiro de Estado; Grã-Cruz das Ordens de Avis e da Torre e Espada. Em 1808, o estadista recebeu o título nobiliárquico de conde de Linhares.

 

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