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Comentário

Publicado: Terça, 24 de Janeiro de 2017, 13h02 | Última atualização em Quinta, 09 de Agosto de 2018, 18h02
A repressão ao comércio ilegal de escravos no século XIX

Viviane Gouvea
Mestre em Ciência Política - UFRJ

Uma das atividades econômicas mais lucrativas da época moderna, o tráfico de escravos oriundos da África conheceu a sua expansão inicial entre os séculos XV e XVI, alimentando-se de prisioneiros das guerras que assolavam os reinos africanos. A procura por escravos aumentou com a expansão colonial baseada no sistema de plantation, dominante nas Américas — embora não exclusivo —, em especial central e do sul, resultando no chamado comércio triangular em que África, Europa e América integravam-se em um sistema de comercialização de diferentes tipos de riqueza. Os escravos africanos, normalmente empregados nas grandes plantações de café, açúcar e algodão eram trocados por tabaco, tecido, rum ou armas na costa africana, ao longo da qual várias nações europeias acabaram estabelecendo feitorias para viabilizar o comércio. Os primeiros escravos negros chegaram ao Brasil com a expedição de Martim Afonso de Souza em 1530, vindos da Guiné. Foi tornado oficial ainda em 1568 pelo governador geral Salvador de Sá, após o fracasso da tentativa de escravizar a mão de obra nativa para utilização nas plantações.

Se o trabalho escravo se encontrava na base de toda a estrutura econômica colonial, já desde o desenvolvimento de uma das primeiras atividades a realmente produzir lucros — produção de açúcar a partir da cana — esta dependência ficou muito mais patente a partir do início do século XIX. Prova disso é o número de escravos que entraram no país, que aumentou de forma vertiginosa a partir das primeiras décadas do século XIX.[1] Com uma economia sustentada por núcleos de atividades econômicas variadas espalhados país fora, mas em geral baseada no trabalho escravo, o Brasil se encontrava profundamente dependente desta mão de obra, o que tornava a defesa a todo custo da sua existência uma necessidade. E foi precisamente no momento de maior ascensão da produção agrícola brasileira, impulsionada especialmente pelo café do Vale do Paraíba e depois, de São Paulo, e portanto de maior dependência em relação ao escravo, que tem lugar a mais dura campanha contra o tráfico internacional de escravos, que paulatinamente limitaria o direito de comercializar seres humanos e contra a qual a classe senhorial brasileira lutou por décadas, driblando leis, corrompendo o sistema jurídico e policial — embora muitas vezes nem precisasse fazê-lo — e negociando exceções nos tratados internacionais.

Campanhas pelo fim da escravidão ou, ao menos, pelo fim do “vergonhoso comércio” têm origem desde o século XVIII, com ideais humanitários que se chocavam com o tratamento cruel e muitas vezes letal dispensado aos africanos. Embora a igualdade racial em geral não estivesse na agenda, a questão do tratamento a que eram submetidos os escravos apenas acirrou a defesa dos direitos daqueles que estavam desprovidos de qualquer proteção à própria vida. A discussão em torno de igualdade de direitos abria caminho para o debate em torno do direito inerente à liberdade, e a pressão de abolicionistas britânicos sobre o parlamento era constante.

Outras questões de cunho econômico pesavam na discussão, e há uma grande controvérsia em torno de possíveis motivações econômicas para a defesa da erradicação do tráfico. Alguns defendem que havia uma pressão de plantadores das Antilhas britânicas que, temendo uma crise de superprodução de açúcar, percebiam na repressão ao tráfico uma forma de coibir a produção no Brasil que alcançava preços menores no mercado internacional [2]. Outros apresentam dados que mostram que tal motivação não faz sentido, já que a produção das colônias britânicas baseadas em trabalho escravo não estava em decadência quando a Grã-Bretanha aboliu seus escravos e tornou o comércio ilegal, perdendo espaço vertiginosamente apenas a partir do momento em que isto ocorreu.[3]
A questão do fim do tráfico e a repressão a sua forma ilegal envolveu vários países em, no mínimo, três continentes. Tendo a Inglaterra como ponta de lança do movimento abolicionista e antitráfico, percebe-se ao longo do século XIX que vários tratados entre variadas nações buscavam em maior ou menor medida, limitar este comércio, medidas estas que na maior parte dos casos mostrar-se-ia pouco eficazes, já que a decadência do comércio de escravos ocorreria apenas na segunda metade do século, e por um conjunto de razões além da repressão ao tráfico. No Brasil, a maior pressão exercida partia da Inglaterra.

As origens desta pressão britânica encontram-se na transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808. Portanto, em uma época em que o Brasil ainda era território sob domínio português, e que as negociações eram realizadas entre Portugal e Inglaterra. Um empréstimo de 600 mil libras, concedido ao governo luso, em 1809, foi seguido, em 1810, pelo Tratado de Aliança e Amizade, que estabelecia alguns compromissos que abriam caminho para uma futura abolição do tráfico, em especial o seu artigo X. As primeiras apreensões de navios negreiros ocorreram em consequência deste tratado, que estabelecia que Portugal só poderia realizar o comércio de escravos em suas próprias possessões. Ambiguidades na redação e questionamentos em relação à existência mesma do próprio tratado originaram algumas reações, como a ameaça aos navios ingleses aportados em Salvador.

No âmbito do Congresso de Viena em 1815, Portugal e Inglaterra tentaram resolver as divergências em relação aos termos do tratado anterior, o tráfico de escravos, ou antes, sua limitação, esteve na pauta de todo o Congresso. O governo inglês comprometia-se a indenizar o governo português pelos apresamentos, além de renunciar ao recebimento do referido empréstimo de 600 mil libras, feito em 1809. Em troca, estabelecia-se em um tratado firmado no mesmo Congresso, que o tráfico fosse abolido ao norte do Equador. A proibição do tráfico com a região, que incluía tradicionais fontes abastecedoras, longe de resolver antigas pendências, provocou novos e acirrados atritos entre os envolvidos no tráfico internacional e o governo inglês e seus representantes e súditos residentes nos territórios em que o tráfico era realizado. A continuidade do tráfico nas regiões ao norte do Equador, a despeito da proibição, seria por muitos anos, motivo de conflitos e negociações entre os governos inglês, português e, posteriormente, brasileiro.

Em 1817 uma convenção adicional complementou os termos firmados em 1815. O novo acordo previa o direito recíproco de visita aos navios de ambos os países (Portugal e Inglaterra); o apresamento das embarcações que navegassem ao norte do Equador carregadas de africanos; a indenização por apresamentos indevidos; a proibição de capturas em águas territoriais de ambas as nações; e a criação de comissões mistas anglo-portuguesas no Rio de Janeiro, Serra Leoa e Londres.
A cada nova regulamentação, reações à limitação do comércio que tornava possível a utilização de um tipo de mão de obra que se encontrava na base da economia brasileira originavam novos conflitos. A situação passaria por um período extremamente delicado, quando da formalização da independência do Brasil em relação a Portugal. A política exterior britânica era bastante clara: “nenhum estado do Novo Mundo poderá ser reconhecido pela Grã-Bretanha, senão tiver franca e completamente abolido o comércio dos escravos.” [4]

O Estado brasileiro foi reconhecido pela Grã-Bretanha em 1825; não à toa em 1826 foi assinado um tratado entre os dois países, que determinava uma data para o fim do tráfico legal: 1830. No entanto, observando as taxas de importação anual de africanos que entraram no Brasil, nota-se que houve um crescimento durante os anos posteriores a 1808, que só viria a cair a partir de 1831, para logo voltar a crescer substancialmente e de forma inédita, até 1850, ano a partir do qual ocorre uma queda vertiginosa.

Parece estranho, à primeira vista, que a extinção do tráfico negreiro tenha enfrentado tanta resistência e que Portugal, e posteriormente o Brasil, tenha logrado evitar o definitivo golpe ao comércio de humanos, em especial se considerarmos as relações extremamente desiguais entre Grã-Bretanha, por um lado, e Portugal ou Brasil, no outro. Contudo, se levarmos em conta a rede de interesses que o tráfico envolvia, e que ia muito além de traficantes luso-brasileiros, tornam-se mais claras as razões para o sucesso das estratégias que buscavam driblar as leis que paulatinamente fechavam o cerco até a extinção completa.

A rede envolvia não apenas os traficantes e seus navios, mas os bancos que financiavam a empreitada (inclusive na própria Inglaterra e também nos Estados Unidos e Holanda) e indústrias que produziam mercadorias utilizadas para o comércio de escravos africanos. Embora o tráfico tenha sido proibido para os súditos britânicos em 1807, os traficantes britânicos — na época, os mais bem-sucedidos do mercado, em consequência especialmente da facilidade de crédito — passaram a integrar a cadeia do comércio de escravos de outras maneiras, em especial o fornecimento de crédito e de mercadorias. Como disse Versiani ,[5] “a queda de preços, a partir de cerca de 1780, das manufaturas inglesas mais usadas como moeda de troca na compra de escravos na África, como tecidos ou ferro em lingotes, favoreceu em muito o aumento dessa participação inglesa no comércio escravista.” Bancos de Boston e Amsterdã também financiavam o esquema, e se a ponta de lança da resistência à proibição definitiva residia principalmente nos traficantes luso-brasileiros, essa resistência dificilmente teria, por si só, obtido sucesso ao driblar as leis internacionais antitráfico.

Como já mencionado, em julho de 1817 Portugal e Grã-Bretanha assinam uma convenção adicional ao tratado de 1815 que incluía, entre outras cláusulas, a permissão de busca de navios portugueses suspeitos de tráfico ilegal, por parte da marinha britânica, e vice-versa, e a criação de comissões mistas para julgamento dos casos de apresamento em alto mar. Uma, em Londres, trataria de indenizações por apreensões injustas de navios do tráfico pela marinha britânica. As outras duas funcionariam no Rio de Janeiro e na colônia britânica de Serra Leoa; os navios seriam levados para um ou outro lugar, dependendo do local do apresamento. Se as comissões na África e em Londres funcionaram a contento, aquela que foi instituída na corte portuguesa nas Américas não só teve o seu início deliberadamente atrasado como seu funcionamento foi também sistematicamente sabotado pelos traficantes do Rio de Janeiro, grupo dos mais influentes do comércio de escravos, reunindo comerciantes portugueses chegados com a corte em associação com os poderosos traficantes ingleses, agora em seu papel de fornecedores de crédito. Existem casos conhecidos de navios apreendidos pela marinha britânica, leiloados, arrematados por investidores ingleses ou americanos, e arrendados para traficantes portugueses, voltando ao comércio ilegal pouco tempo depois do seu aprisionamento. [6]

As formas de driblar a vigilância e as leis eram várias, desde uma interpretação um tanto mais maleável de certos termos e definições, passando por editais que abriam exceções à regra que no final das contas acabavam permitindo a perpetuação do comércio como antes transcorria, e chegando à conivência aberta de autoridades portuguesas e depois, brasileiras, no acobertamento de importação ilegal de escravos.

No Brasil, em vários momentos a questão da repressão ao tráfico ganhou contornos de defesa da soberania nacional. De fato, a estratégia belicosa do governo britânico mostrou-se pouco eficiente para resolver uma questão fundamental para ambos os países. Era obviamente impossível vigiar estreitamente o Oceano Atlântico para impedir que fosse cruzado por navios negreiros, e a opção por ameaçar e reprimir o comércio onde era mais fácil (próximo dos portos) de forma muitas vezes ilegal, invadindo território soberano alheio, acabou por criar um clima de animosidade contra súditos britânicos em terras brasileiras e deteriorar as relações entre os dois países.

A menção ao tráfico de escravos ou a traficantes de escravos pode evocar a equivocada imagem de um trabalho realizado por quase criminosos, à margem da sociedade. Na realidade, em especial no auge da repressão britânica ao comércio, os homens envolvidos com o tráfico eram muitas vezes vistos antes como heróis, a combater o que se considerava no Brasil uma afronta e uma ingerência nos assuntos internos (no caso, a pressão britânica no sentido de erradicar de vez o comércio), e não como criminosos, dedicados a uma atividade ilegal, contrabandistas. Em geral eram considerados “homens de bem,” de posição social destacada. Até porque, este comércio apresentou-se como ainda mais lucrativo no período em que teoricamente tornou-se ilegal, e não foram poucos aqueles (não apenas traficantes, mas banqueiros, industriais, etc) que amealharam fortunas, direta ou indiretamente, com o tráfico negreiro.

Herdada pelo Brasil após 1822, a questão da extinção do tráfico de escravos e o controle do cumprimento da legislação levaria a momentos de tensão diplomática entre Brasil e Grã-Bretanha, e apesar da enorme dominância econômica desta última sobre o primeiro, a importação de escravos no Brasil começou a cair apenas a partir dos anos 1850.

No Arquivo Nacional, as Séries Guerra e Relações Exteriores, e principalmente o fundo Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação, apresentam vasto material para pesquisa relacionada às atividades de repressão ao tráfico negreiro, mormente aos conflitos e mediações envolvendo apresamentos de navios negreiros. Há muitos relatos de processos para julgar se uma nau era ou não “boa presa,” de perseguições ilegais por navios ingleses em águas brasileiras, de condenação e leilão de embarcações que traficavam fora dos limites do tratado, além de correspondência oficial que expõe as dúvidas e orientações comuns aos agentes da coroa portuguesa em relação ao tema. Além da documentação, também disponível para consulta encontra-se a publicação comentada das listas de escravos emancipados vindos a bordo de navios negreiros [7]

`1] Rodrigues, Jaime. O tráfico de escravos e a experiência diplomática afro-lusobrasileira: transformações ante a presença da corte portuguesa no Rio de Janeiro. In Anos 90: Revista do programa de pós-graduação em história da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2008.
[2] Santos, Guilherme de Paula Costa. Convenção de 1817: debate político e diplomático sobre o tráfico de escravos durante o governo de d. João no Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
[3] “Out of economic self-interest the UK, instead of abolishing the slave trade and later slavery, ought to have encouraged its expansion. In this way, it would have served the economic goals of parliamentarians and the material desires both of British manufacturers and wage earners.” Por interesses econômicos particulares, em vez de abolir o comércio de escravos e depois, a escravatura, a Grã-Bretanha teria encorajado a sua expansão. Desta forma, ela teria servido aos objetivos econômicos de parlamentares e os desejos materiais dos fabricantes e também dos assalariados britânicos. Gwyn, Julian. The Economies ofthe Transatlantic Slave Trade: Review. In Histoire sociale – Social History, n. 49. Ottawa, 1992.
[4] Rodrigues, Jaime. O tráfico de escravos e a experiência diplomática afro-lusobrasileira: transformações ante a presença da corte portuguesa no Rio de Janeiro. In Anos 90: Revista do programa de pós-graduação em história da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2008
[5] Versiani, Flávio Rabelo. D. João VI e a (não) abolição do tráfico de escravos para o Brasil. Trabalho apresentado na seção “Políticas Joaninas” do IX Congresso da BRASA – Brazilian Studies Association. New Orleans, 27-29 de março, 2008.
[6] Para maiores detalhes do envolvimento de investidores britânicos e da própria economia britânica de uma forma geral não apenas no tráfico negreiro mas nas economias escravistas, ver Gwyn, Julian. The Economies ofthe Transatlantic Slave Trade: Review. In Histoire sociale – Social History, n. 49. Ottawa, 1992.
[7] RAPOSO, Luciano. Marcas de escravos: listas de escravos emancipados vindos a bordo de navios negreiros (1839-1841). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1989. (Publicações históricas, 90). 

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