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Escola de Cirurgia da Bahia

Publicado: Sexta, 15 de Junho de 2018, 15h18 | Última atualização em Quarta, 05 de Mai de 2021, 14h02

Ofício do marquês de Aguiar ao conde dos Arcos comunicando que o rei negou a representação dos alunos do curso médico-cirúrgico da Bahia. Estes solicitavam dispensa das lições de cirurgia prática que deveriam ser ministradas todas as manhãs na enfermaria do hospital, pelo professor Manoel José Estrela, argumentando que o professor nunca comparecia no horário determinado. Foi ordenado que os cirurgiões da Santa Casa de Misericórdia façam os curativos às sete horas da manhã, observando que em todas as estações do ano naquela cidade, antes daquele horário, o dia já está claro o bastante para o cumprimento das tarefas anteriores ao curativo. 

 

Conjunto documental: Bahia, Ministério do Reino. Correspondência do presidente da província
Notação: IJJ9 23
Datas-limite: 1808-1819
Título do fundo: Série Interior
Código do fundo: AA
Argumento de pesquisa: moléstias
Data do documento: 3 de setembro  de 1816
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): 204v e 205 - ofício nº 84

 

 

Para o mesmo conde dos Arcos[1]

Nº 84.      Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor com o ofício de Vossa Excelência nº 34, em data de 16 de junho passado, foram presentes a El Rei meu senhor o requerimento dos alunos do curso médico-cirúrgico dessa cidade[2], que pretenderam ser dispensados de irem as enfermarias do hospital, por não comparecer nelas a horas determinadas pelo artigo 9º dos estatutos Manoel José Estrella[3] para lhes dar as lições de cirurgia prática, a informação, que a este respeito deram por ordem de Vossa Excelência os lentes[4] do referido curso, e o que consequentemente também representou o sobredito lente Manoel José Estrella: E o mesmo senhor, depois de ouvir sobre este objeto o diretor geral dos mencionados estudos, Manoel Luis Álvares de Carvalho[5], não podendo deixar de estranhar, que se queira já introduzir uma bem notável relaxação neste estabelecimento nascente, e que os estudantes ousem acusar os seus lentes, sobre o que Vossa Excelência lhes fará advertir para que se não afrouxe a religiosa obediência, e respeito, que lhes devem, não se dignou a deferir às referidas representações, e houve por bem aprovar a ordem, que Vossa Excelência deu para os cirurgiões do partido da Santa Casa da Misericórdia[6] fazerem o curativo às sete horas da manhã; não parecendo sortidas as razões produzidas pelo Lente Estrella, para alterar a hora determinada, e eximir-se de dar nela as lições: Por quanto não está essa cidade debaixo de um clima tal, que já antes das sete horas da manhã não seja dia bem claro em qualquer estação do ano, e que não haja por isso bastante tempo para terem os estudantes almoçado, e recordado as suas lições, para achar-se às sete horas varrido, e arejado o Hospital, e preparado os panos, fios, e mais coisas precisas para o curativo, uma vez que o Hospital tenha o fornecimento preciso para não esperar, que se enxuguem e sequem os panos de que se usarão no dia antecedente, e que muito cedo se cuide na limpeza das enfermarias, até para os doentes gozarem do ar regenerador das manhãs, e para haver tempo para se dissiparem os miasmas impuros[7], sendo para isso muito conveniente, que haja também desinfestadores e ventiladores: E como com esta ordinária providência não farão danos aos professores e discípulos o mau cheiro das enfermarias, que só o pode haver por incúria e falta de asseio, recomenda Sua Majestade a Vossa Excelência que haja de aplicar os meios, que lhe parecerem convenientes para que a Santa Casa da Misericórdia faça cuidar na limpeza diária do Hospital a horas competentes, e o tenha fornecido do necessário para o curativo dos seus enfermos. O que participa a Vossa Excelência, para que assim se execute. Deus guarde a Vossa Excelência. Palácio do Rio de Janeiro em 3 de setembro de 1816 = Marquês de Aguiar[8].

 

[1] BRITO, D. MARCOS DE NORONHA (1771-1817): oitavo conde dos Arcos, nasceu em Lisboa e foi o último vice-rei do Brasil. Destacou-se, ainda em Portugal, na carreira militar, e chegou a atingir a patente de tenente-general em 1818. Chegou à América portuguesa em 1803 para ocupar o cargo de governador da capitania do Pará e Rio Negro, onde permaneceu até 1806, quando foi promovido para o cargo de vice-rei, transferindo-se para o Rio de Janeiro. Ficou sob sua responsabilidade a preparação da cidade para ser a nova sede do Império português e receber a família real e a Corte. Em 1808, com a chegada do príncipe regente, findaram-se as funções de vice-rei, tendo sido nomeado, no ano seguinte, governador da Bahia, cargo que assumiu somente em 1810 e nele permaneceu até 1818. Neste período, ajudou a estabelecer a primeira tipografia e o jornal A Idade de Ouro na Bahia, fundou a Biblioteca Pública de Salvador e teve importante papel no combate a rebeliões e desordens causadas por escravos. Entrou em conflito algumas vezes com a classe senhorial local, que o considerava demasiadamente indulgente no trato com os escravos. O conde, por sua vez, acusava a elite baiana de ser selvagem, mesquinha e cruel com seus cativos, gerando sofrimento desnecessário e alimentando sentimentos de ódio e revolta. Durante a Revolução Pernambucana de 1817, destacou-se na repressão ao movimento, impedindo-o de penetrar na capitania da Bahia. No ano seguinte, retornou ao Rio de Janeiro como ministro da Marinha e Domínios Ultramarinos, cargo que ocupou até o retorno da Corte para Portugal. O conde, entretanto, permaneceu ainda no Brasil até depois de declarada a independência e, só então, retornou à Europa.

[2] ESCOLA DE CIRURGIA DA BAHIA: criada com a chegada do príncipe regente d. João e da corte portuguesa ao Brasil, por carta régia de 18 de fevereiro de 1808 e instalada no Hospital Real Militar da Bahia, antigo prédio do Colégio dos Jesuítas, no Largo do Terreiro de Jesus. O primeiro curso médico e cirúrgico do Brasil, proposto pelo conselheiro José Correa Picanço, cirurgião mór do Reino, tinha duração de quatro anos e oferecia duas cadeiras: cirurgia especulativa e prática, ministrada pelo cirurgião Manoel José Estrela, e anatomia e operações cirúrgicas ministradas pelo cirurgião José Soares de Castro. As aulas teóricas eram realizadas numa das salas do Hospital Militar e as práticas nas enfermarias. De 1808 a 1815, o ensino médico e cirúrgico da Escola abrangia as áreas de anatomia humana (teoria) e fisiologia, patologia e clínica. Concluído o curso, os alunos prestavam os exames para cirurgião podendo então tratar da saúde pública na colônia. A carta régia de 29 de dezembro de 1815, expedida pelo conde dos Arcos, então governador-geral da capitania da Bahia, reformou, pela primeira vez, o ensino médico baiano, tendo por base o “Plano dos Estudos de Cirurgia” (1813) de autoria do médico da Real Câmara de d. João VI, Manuel Luiz Álvares de Carvalho. Com a reforma, a Escola passou a denominar-se Academia Médico-cirúrgica. O curso de cirurgia, com duração de cinco anos, era composto pelas seguintes matérias: 1º ano – Anatomia, Matéria Médica e Química Farmacêutica; 2º ano – Anatomia e Fisiologia; 3º ano – Higiene, Patologia e Terapêutica; 4º ano – Instruções Cirúrgicas e Operações Obstétricas; 5º ano – Medicina Prática e Obstetrícia. Só poderiam matricular-se aqueles alunos que soubessem ler e escrever corretamente nas línguas francesa e inglesa. Após completarem o quinto ano do curso, os alunos aprovados recebiam a Carta de Cirurgia. Aqueles que quisessem frequentar novamente os últimos dois anos, uma vez aprovados nos exames, recebiam uma nova graduação em cirurgia. Os cirurgiões formados estavam aptos a curar todas as enfermidades nos locais onde não existissem médicos diplomados pelas universidades europeias. Em 17 de março de 1816, por determinação de d. João VI, a Academia Médico Cirúrgica da Bahia foi transferida para o Hospital da Santa Casa de Misericórdia.

[3] ESTRELA, MANOEL JOSÉ (1763-1840): nasceu no Rio de Janeiro e realizou seus estudos em Lisboa, onde obteve o título de cirurgião pelo Colégio do Hospital de São José. Foi cirurgião-mor no Hospital Real Militar da Bahia e em 23 de fevereiro de 1808, Manoel José Estrela foi nomeado pelo cirurgião-mor do reino José Correia Picanço professor da cadeira de cirurgia especulativa e prática da Escola de Medicina da Bahia. Durante a reforma da Escola em 1815, continuou como lente do segundo ano, lecionando Fisiologia. Publicou na Bahia, em 1816, uma tradução do compêndio francês “Observações fisiológicas sobre a vida e sobre a morte...” de Xavier Bichat, médico do hospital de Paris.

[4] LENTE: professor catedrático, termo que denominava os professores das chamadas cadeiras grandes, isto é, os professores dos ensinos superiores. De acordo com os estatutos da Universidade de Coimbra de 1653, caberia aos lentes preservar todo o conteúdo das grandes áreas de ensino, apresentado e lido aos alunos, sem nenhuma espécie de questionamento. As aulas deveriam ser ministradas em latim, com os professores de barrete (espécie de chapéu de tecido) na cabeça – com pena de multa para os que não o usassem. Com a reforma pombalina da Universidade, em 1772, os novos estatutos reformularam a atuação dos lentes. Apesar das grandes áreas de ensino continuarem demarcadas, abriu-se o caminho do professor para o acompanhamento do aluno, através da indicação de bibliografia e explicação dos conteúdos, em uma tarefa levada mais à compreensão que a memorização. No Brasil, sua atuação iniciou-se com a criação das primeiras instituições de ensino superior (Academias Médicas e Militares) a partir da vinda da corte portuguesa em 1808.

[5] CARVALHO, MANOEL LUÍS ÁLVARES DE (1751-1824): médico baiano, diplomou-se pela Universidade de Coimbra em 1782, foi membro do conselho do príncipe d. João e médico honorário da Real Câmara. Retornou ao Brasil com a família real, em 1808, tendo sido nomeado médico da Real Câmara e diretor dos Estudos de Medicina e Cirurgia da Corte e Estado do Brasil. Em 1813, elaborou o “Plano dos Estudos de Cirurgia”, que deu origem à reforma dos cursos médico-cirúrgicos das Escolas de Cirurgia Rio de Janeiro e da Bahia. A congregação de lentes da então Academia Médico-Cirúrgica da Bahia conferiu, em 1816, a Manoel Luiz o título de fundador daquela Academia. Foi diretor da Academia Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro de 1813 a 1820.

[6] SANTA CASA DA MISERICÓRDIA: irmandade religiosa portuguesa criada em 1498, em Lisboa, pela rainha Leonor de Lencastre. Era composta, inicialmente, por cem irmãos, sendo metade nobres e os demais plebeus. Dedicada à Virgem Maria da Piedade, a irmandade adotou como símbolo a virgem com o manto aberto, representando proteção aos poderes temporal e secular e aos necessitados. Funcionava como uma organização de caridade prestando auxílio aos doentes e desamparados, como órfãos, viúvas, presos, escravos e mendigos. Entre as suas realizações, destaca-se a fundação de hospitais. Segundo o historiador Charles Boxer, eram sete os deveres da Irmandade: “dar de comer a quem tem fome; dar de beber a quem tem sede; vestir os nus; visitar os doentes e presos; dar abrigo a todos os viajantes; resgatar os cativos e enterrar os mortos” (O império marítimo português. 2ª ed., Lisboa: Edições 70, 1996, p. 280). A instituição contou com a proteção da Coroa portuguesa que, além do auxílio financeiro, lhe conferiu privilégios, como o direito de sepultar os mortos. Enfrentando dificuldades financeiras, a Mesa da Misericórdia e os Hospitais Reais de Enfermos e Expostos conseguiram que a rainha d. Maria I lhes concedesse a mercê de instituir uma loteria anual, através do decreto de 18 de novembro de 1783. Cabe destacar que os lucros das loterias se destinavam, também, as outras instituições pias e científicas. Inúmeras filiais da Santa Casa de Misericórdia foram criadas nas colônias do Império português, todas com a mesma estrutura administrativa e os mesmos regulamentos. A primeira Santa Casa do Brasil foi fundada na Bahia, ainda no século XVI. No Rio de Janeiro, atribui-se a criação da Santa Casa ao padre jesuíta José de Anchieta, por volta de 1582, para socorrer a frota espanhola de Diogo Flores de Valdez atacada por enfermidades. A irmandade esteve presente, também, em Santos, Espírito Santo, Vitória, Olinda, Ilhéus, São Paulo, Porto Seguro, Sergipe, Paraíba, Itamaracá, Belém, Igarassu e São Luís do Maranhão. A Santa Casa constituiu a mais prestigiada irmandade branca dedicada à ajuda dos doentes e necessitados no Império luso-brasileiro, desempenhando serviços socais como a concessão de dotes, o abrandamento das prisões e a organização de sepultamentos. Os principais hospitais foram construídos e administrados por essa irmandade, sendo esta iniciativa gerada pelas precárias condições em que viviam os colonos durante o período inicial da ocupação territorial brasileira. A reunião do corpo diretivo da irmandade da Santa Casa da Misericórdia, responsável pela administração desta associação, era chamada Mesa da Misericórdia.

[7] MIASMAS IMPUROS: no século XVIII e ao ainda no século XIX, uma corrente da medicina viria a associar a ocorrência das epidemias a certas impurezas existentes no ar. Acreditava-se que os miasmas eram vapores nocivos invisíveis que corrompiam o ar e atacavam o corpo humano. Esses miasmas possuíam várias origens: exalavam de pessoas ou animais doentes; de dejetos ou substâncias em decomposição e dos terrenos pantanosos. As medidas profiláticas adotadas a partir dessa orientação visavam a impedir a propagação do mau odor, o que preveniria ou evitaria a ocorrência de doenças e epidemias. Havia um embate entre os chamados infeccionistas que defendiam que a origem das moléstias advinha do meio/local e aqueles que acreditavam no contágio, entendido como contato entre indivíduos, o modo de propagação das epidemias, admitindo a possibilidade da importação das doenças. Diversas medidas de melhorias e modificações de cidades e do espaço urbano, como abertura de ruas, aterramento de pântanos, derrubada de morros, foram orientadas pela necessidade de eliminação desses miasmas que seriam os causadores das epidemias que assolavam periodicamente as populações das cidades e do interior do Brasil.

[8] CASTRO, D. FERNANDO JOSÉ DE PORTUGAL E (1752-1817): 1o conde de Aguiar e 2o marquês de Aguiar, era filho de José Miguel João de Portugal e Castro, 3º marquês de Valença, e de Luísa de Lorena. Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, ocupou vários postos na administração portuguesa no decorrer de sua carreira. Governador da Bahia, entre os anos de 1788 a 1801, passou a vice-rei do Estado do Brasil, cargo que exerceu até 1806. Logo em seguida, regressou a Portugal e tornou-se presidente do Conselho Ultramarino, até a transferência da corte para o Rio de Janeiro. A experiência adquirida na administração colonial valeu-lhe a nomeação, em 1808, para a Secretaria de Estado dos Negócios do Brasil, pasta em que permaneceu até falecer. Durante esse período, ainda acumulou as funções de presidente do Real Erário e de secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Foi agraciado com o título de conde e marquês de Aguiar e se casou com sua sobrinha Maria Francisca de Portugal e Castro, dama de d. Maria I. Dentre suas atividades intelectuais, destaca-se a tradução para o português do livro Ensaio sobre a crítica, de Alexander Pope, publicado pela Imprensa Régia, em 1810.

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