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Presiganga

Publicado: Sexta, 15 de Junho de 2018, 15h21 | Última atualização em Quinta, 19 de Agosto de 2021, 21h53

Informação do corregedor do crime da corte e casa José Albano Fragoso sobre o requerimento dos mordomos dos presos da Casa da Misericórdia. Neste aviso repassa as ordens expedidas pelo ministro e secretário de estado conde da Barca para que os degredados fossem à presiganga até a ocasião de seu embarque.

 

Conjunto documental: Ministério da Justiça
Notação: caixa 774, pacote 04
Datas-limite: 1808-1821
Título do fundo: Ministério da Justiça
Código do fundo: 4t
Argumento de pesquisa: Prisões
Ementa: informação do corregedor do crime da corte e casa José Albano Fragoso sobre o requerimento dos mordomos dos presos da Casa da Misericórdia. Neste aviso repassa as ordens expedidas pelo ministro e secretário de estado conde da Barca para que os degredados fossem à presiganga até a ocasião de seu embarque, para com isso separar os réus já condenados dos ainda em julgamento.  O corregedor faz ainda uma série de considerações sobre o sistema prisional tratando desde o motivo de se cumprir à ordem expedida até problemas como a corrupção e abuso dos carcereiros para com os presos.
Data do documento: 10 de fevereiro de 1819
Local: Rio de Janeiro 
Folha(s): -
 
 

Por aviso régio expedido pelo ministro e secretário de estado Conde da Barca[1] se ordenou que os degredados[2] fossem para a Presiganga[3] até haver ocasião do embarque, determinação fundada na razão e na praxe de todas as nações que legislaram sobre prisões, com vistas da [ilegível] filosofia legal.

É oposto aos fins do exemplo que na mesma casa se conserve o réu que espere sua decisão, gozando ainda a consoladora esperança de mostrar sua inocência ao lado do réu já convencido e condenado. A prisão[4] para o primeiro é privação, mas para o segundo é já castigo e salvos os direitos da humanidade[5] é necessário ferir a imaginação fazendo visível que para o degredado respira tudo coação, e pena consequência indispensável da maldade do seu procedimento.

A ociosidade, primeiro móvel de todos os crimes[6], que preside nos ajuntamentos da prisão, faz com que os condenados porque nada mais temem se entretenham na conversa das suas façanhas, suas ações, faltas e sucessos, aperfeiçoem a teoria de seus crimes, cogitem meios de prevenção e façam ali prosélitos, e um preso de pouca monta que podia conservar ainda restos de moralidade corrompe-se com aquele trato, perde os estímulos do pejo, temor e arrependimento, e no caso de sair por inocente ou pequeno castigo, entra na sociedade um malvado consumado das teorias e projetos que ali ouviu, e até calcula que pode adoçar a sua sorte ainda que cometa grandes crimes pelo meio do interesse ou proteção com que viu que os condenados deixaram de seguir a regra geral e ficaram retidos na prisão sem ir para nau.

Os degredados quando pedem a retenção na cadeia é para viverem nessa ociosidade, e escaparem aos serviços da nau, e trabalhos com que ali são ocupados, pois ao contrário ali tem certo o sustento, e o trato nas moléstias. Pode suceder alguma vez que um condenado possa inspirar interesse pelas suas circunstâncias, e a não serem eles os que disso tirem o partido, sejam a mulher, e os filhos que tenham direito a esses sentimentos, mas não se deve verificar-se em se conservar em ócio ao lado daqueles que ainda os podem parecer cidadãos inocentes.

Para o degredado a prisão é um ferrete[7] de opróbrio e de vergonha quando nos outros é só meio de segurança. A prisão dos degredados é olhada com horror pelo cidadão pacifico e virtuosos, que contempla em cada indivíduo um inimigo da sociedade, mas nos outros é objeto de dó porque pode ser inocente e [ilegível] não sofre a moral pública que se anivelem homens tão desvairados nas relações sociais.

Nos tempos antigos eram quase desconhecidas as prisões. Entre os gregos, principalmente em Atenas e Lacedemônia, e entre os Romanos no tempo da República eram presos só os condenados, salvo dois casos de crimes contra os deuses e estado.

Passaram no tempo dos Imperadores a haver cinco qualidades. Mas no influxo feudal foram as prisões um patrimônio desses pequenos soberanos, de que ainda resta o contágio, porque em geral os presos são vítimas se não compram com dinheiro o bom trato.

Não é animosidade contra algum carcereiro em particular, é o que ensina a voz geral de todos os carcereiros atuais, que exigem pagar para se obter a melhoria de maneira que um réu de crimes graves fique na sala livre, e o pobre e desvalido vai para as enxovias [8] ao par dos malfeitores e isto em um preso civil vítima da miséria revolta à humanidade. 

Nada é, portanto, tão próprio das altas virtudes de Vossa Majestade que assegurar por meio de uma nova legislação a sorte desses infelizes. Foi este objeto matéria de cuidado em algumas nações no século passado sobressaindo a da Filadélfia[8] . A ocorrência das circunstâncias posteriores a nossa ordenação e a vária forma que o senhor Rei D. José I[9] deu a legislação faz com que seja necessário um cadastro novo, e que se entregue aos cuidados da polícia administrativa pela raiz os abusos. Aquela polícia, que precede a justiça, e que tem a cargo a segurança geral, a paz publica, e que vigia sobre a conservação das pessoas e propriedades. Aquela polícia que entrega aos tribunais o cidadão que infligiu para que a justiça lhe decrete a pena taxada na lei, e que quando são condenados os guardas, e vigia sobre eles como sobre todos os edifícios públicos destinados para o bem geral, bem como deve vigiar sobre toda a sociedade: não ficando em simples apanágio de título vão, pois como diz [ilegível] são os carcereiros os senhores absolutos, apesar da alta autoridade, a quem se dá a vigilância segurando-se os meios de escala, e de vigia para reprimir excesso e evitar relaxações.

E se a necessidade de prevenir desordens e dar a justiça[10] o tempo de descobrir a verdade faz necessária a prisão antes da sentença que o receptáculo destes seja separado daqueles que já são condenados, e destes que seja a sua morada conforme o grau da condenação. Esta vária posição se acha estabelecida nesta corte, guardando se na cadeia pública[11] os réus até se julgarem e indo para os depósitos de obras públicas os condenados para correção, e para a nau os condenados que tem de seguir viagem para os lugares indicados na sua sentença.

(...)

Corregedor do Crime da corte e casa[12]José Albano Fragoso[13]

 

[1]AZEVEDO, ANTÔNIO DE ARAÚJO E (1754-1817): conde da Barca, iniciou os estudos superiores em filosofia na Universidade de Coimbra, mas acabou dedicando-se ao estudo da história e da matemática. Ingressou na diplomacia a partir de 1787 e, tanto neste campo como na política palaciana, opõe-se seguidas vezes a um dos homens fortes de d. João VI: d. Rodrigo de Sousa Coutinho. Considerado de tendências “francófilas” (em oposição a este último, “anglófilo”), Araújo e Azevedo esteve no centro das delicadas negociações de paz entre Portugal e a França do Diretório, tentando negociar um acordo em 1797. O acordo não foi bem-sucedido e Araújo e Azevedo foi abertamente censurado por seus pares, acusado de não defender os interesses da nação. A situação deteriorou-se ainda mais quando os franceses o acusaram de conspiração e o mantiveram detido por cerca de três meses na Torre do Templo. Entre 1804 e 1808, ocupou os cargos de ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra e ministro do Reino. Defendeu a vinda da família real para o Brasil, em 1808, ano em que acaba sendo substituído por d. Rodrigo. Instala-se no Rio de Janeiro, acompanhado de toda a sua biblioteca particular, que viria a compor o acervo bibliográfico inicial da Biblioteca Nacional; uma tipografia completa (que se tornou a base da Imprensa Régia); além de uma coleção de minerais e de instrumentos científicos, que passam a ocupar a maior parte do seu tempo após sua substituição no conselho do Reino. A dedicação às ciências o leva a instalar um laboratório em sua residência, onde produzia licores e aguardentes. Também teria, para alguns autores, participado da vinda da Missão Artística Francesa, em 1816. Seu retorno à política ocorre em 1814, quando é nomeado ministro da Marinha e Ultramar. O título de conde da Barca foi criado especificamente para ele em 1815, pouco depois da concretização do Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarve, há tempos defendida por Araújo e Azevedo, e do seu envolvimento nas discussões do Congresso de Viena. Sua ascensão continuou com a nomeação para o cargo de ministro da Fazenda (1816), da Guerra (1816), primeiro-ministro do Reino Unido (1817) e secretário de Estado dos Negócios do Reino (1817). O triunfo político de Araújo e Azevedo foi interrompido por sua morte aos 63 anos.

[2]DEGREDO: punição prevista no corpo de leis português, o degredo era aplicado a pessoas condenadas aos mais diversos tipos de crimes pelos tribunais da Coroa ou da Inquisição. Tratava-se do envio dos infratores para as colônias ou para as galés, onde cumpririam a sentença determinada. Os menores delitos, como pequenos furtos e blasfêmias, geravam uma pena de 3 a 10 anos, e os maiores, que envolviam lesa-majestade, sodomia, falso misticismo, fabricação de moeda falsa, entre outros, eram definidos pela perpetuidade, com pena de morte se o criminoso voltasse ao país de origem. Além do aspecto jurídico, em um momento de dificuldades financeiras para Portugal, degredar criminosos, hereges e perturbadores da ordem social adquiriu funções variadas além da simples punição. Expulsá-los para as “terras de além-mar” mantinha o controle social em Portugal e, em alguns casos também, em suas colônias mais prósperas, contribuindo para o povoamento das fronteiras portuguesas e das possessões coloniais, além de aliviar a administração real com a manutenção prisional. Constituindo-se uma das formas encontradas pelas autoridades para livrar o reino de súditos indesejáveis, entre os degredados figuraram marginais, vadios, prostitutas e aqueles que se rebelassem contra a Coroa. Considerada uma das mais severas penas, o degredo só estava abaixo da pena de morte, servindo como pena alternativa designada pelo termo “morra por ello” (morra por isso). Porém o degredo também assumia este caráter de “morte civil” já que a única forma de assumir novamente alguma visibilidade social, ou voltar ao seu país, era obtendo o perdão do rei.

[3]PRESIGANGA: algumas naus, após serem consideradas imprestáveis para navegação, acabavam transformadas em depósitos, hospitais ou prisões. Define-se por presiganga uma antiga embarcação que passou a ser utilizada como cadeia, geralmente para marujos. A utilização de navios como prisões adaptadas ocorreu principalmente durante as três primeiras décadas do século XIX, marcando, portanto, todo o processo de independência nacional, como comenta Lilian Soares do Nascimento em Presiganga: navio-presídio da Marinha: “A atividade de se depositar pessoas criminalmente condenadas dentro das naus presigangas e utilizar sua mão de obra forçada em diversos empreendimentos da Marinha, foi uma atividade que surgiu em 1808 com a chegada da família Real ao Brasil e que perdurou até 1840.” Em muitos casos os prisioneiros detidos nas presigangas tinham incluídos em suas penas trabalhos forçados em obras públicas ou em reparos de navios da marinha. No Brasil, as mais famosas presigangas foram: Príncipe Real, no Rio de Janeiro (1808-1831); a do rio Guaíba, Rio Grande do Sul, em que ficaram detidos alguns rebeldes da revolta Farroupilha; a Piranga, na Bahia, onde Cipriano Barata ficou preso em 1824; e a São José Diligente, anteriormente brigue O Palhaço, palco do assassinato de 232 revoltosos presos em Belém em 1824.

[4]PRISÃO: o encarceramento como forma de punição àqueles que transgrediam a lei é uma prática relativamente recente, uma vez que castigos físicos, degredos e pena de morte, ao menos na tradição europeia e até a Idade Moderna, mostraram-se muito mais disseminados como forma de punir e coibir comportamentos transgressores. Foi no século XVIII que as ideias iluministas colocaram as antigas práticas punitivas em xeque, argumentando que castigos demasiadamente severos e definitivos não apenas se mostravam ineficientes, mas também, originavam um sentimento de ódio no povo, que facilmente poderia desaguar em revoltas sociais. Homens públicos passaram a defender que o encarceramento era a melhor forma de punição e controle sobre o crime. Posteriormente, a ideia de recuperação do preso através do trabalho e da disciplina ganharia corpo, tendo sua expressão mais acabada nas casas e colônias de correção. No Brasil colônia, as poucas prisões apresentavam condições lastimáveis, situação que perdurou Império afora. A arbitrariedade de agentes públicos originava maus-tratos e muitas vezes mortes. Diante dos olhos do poder público, os detentos de uma forma geral (especialmente os já condenados) não passavam de um fardo pesado e descartável. Apesar de o Código Criminal de 1830 representar um avanço em relação às retrógradas Ordenações Filipinas, sua aplicação apresentava falhas significativas.

[5]DIREITOS DA HUMANIDADE: expressa uma ideia de normas de conduta inerentes, intersubjetivas, independentes das normas estabelecidas institucionalmente. Vinculam-se à ideia de direito natural (jusnaturalismo), em oposição ao direito positivo (legal). Sua origem reside, assim, no Iluminismo e no Jusnaturalismo da Europa dos séculos XVII e XVIII, quando se firmou a noção de que o homem tinha direitos inalienáveis e imprescritíveis, decorrentes da própria natureza humana e existentes independentemente do Estado. O pensamento iluminista, com suas ideias sobre a ordem natural, sua exaltação às liberdades e sua crença nos valores individuais do homem constitui a gênese da teoria dos direitos da humanidade, que não se confundem com os direitos humanos, consagrados no cenário político internacional ao longo do século XX.

[6]CRIME: as Ordenações Filipinas, última das ordenações reais, forneceram o arcabouço legal à monarquia portuguesa desde 1603, quando foram promulgadas por Filipe I. O Livro V das Ordenações definia e caracterizava os crimes e a punição dos criminosos, constituindo uma forma explícita de afirmação do poder régio. Cada capítulo dedicava-se a formas muito específicas de conduta, assim como orientava a atuação dos agentes da lei diante de situações e de criminosos os mais diversos. Tal livro vigorou no Brasil, por mais de 220 anos, já que deixou o ordenamento jurídico somente no ano de 1830, quando sobreveio o Código Criminal do Império.

[7] FERRETE: instrumento de ferro que pode ser utilizado para marcar pessoas ou animais costumava ser aplicado em brasa diretamente sobre a pele de escravos ou de criminosos. Sua marca era um estigma, fosse pela transformação do homem em objeto alheio, fosse pela explicitação indelével de um comportamento indesejado.

[8]FILADÉLFIA: capital do estado de Pensilvânia, nos Estados Unidos, é uma das mais antigas cidades americanas, fundada em 1681. Teve um papel de destaque na história e no desenvolvimento dos EUA, pois foi sede de dois congressos continentais que marcaram o processo de independência do país. Após a guerra, uma convenção se reuniu na cidade em 1787, sob a presidência de George Washington, com o intuito de dirimir as divergências mais flagrantes entre as constituições elaboradas pelos estados. Resultou na redação de uma Carta Constitucional que, embora mantivesse muito da autonomia das unidades federativas, conseguiu unificar o território sob um governo mais centralizado. A defesa de vários direitos políticos (de voto, de associação, de expressão) e individuais (direito ao “due process”, ou devido processo legal; o julgamento pelo Tribunal do Júri; à ampla defesa; estabelecia também a proibição da aplicação de penas cruéis ou aberrantes), explicitada no texto, tornou esta Constituição modelo para nações futuras. Durante parte do século XVIII, foi a maior cidade do país, o segundo maior porto do Império Britânico, superado apenas por Londres. Tornou-se, a partir desta época, um centro de efervescência política e intelectual, com a formação de sociedades de filosofia e literatura como a Sociedade de Incentivo a Manufatura e a Sociedade para a Promoção da Agricultura, ainda no século XVIII; e a Academia de Ciências Naturais e o Instituto Benjamin Franklin, no início do século XIX. A posição central da cidade em relação às Treze Colônias britânicas da América do Norte tornou-a ponto de encontro entre os rebeldes, que a partir de 1773, ali se reuniram para discutir sua posição frente as novas medidas da metrópole – a Inglaterra. A cidade foi capital da nova nação até 1800, quando a construção do Distrito Federal em Colúmbia foi concluída. Após a queda do governo revolucionário de Pernambuco em maio de 1817, os rebeldes exilaram-se nos Estados Unidos, fugindo da repressão das forças do poder central. Muitos deles escolheram a Filadélfia como destino.

[9]JOSÉ I, D. (1714-1777): sucessor de d. João V, foi aclamado rei em setembro de 1750, tendo sido o único rei de Portugal a receber este título. Considerado um déspota esclarecido – monarcas que, embora fortalecessem o poder do Estado por eles corporificado, sofriam intensa influência dos ideais progressistas e racionalistas do iluminismo, em especial no campo das políticas econômicas e administrativas – ficou conhecido como o Reformador devido às reformas políticas, educacionais e econômicas propostas e/ou executadas naquele reinado. O governo de d. José I destacou-se, sobretudo, pela atuação do seu secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, marquês de Pombal, que liderou uma série de reestruturações em Portugal e seus domínios. Suas reformas buscavam racionalizar a administração e otimizar a arrecadação e a exploração das riquezas e comércio coloniais. Sob seu reinado deu-se a reconstrução da parte baixa de Lisboa, atingida por um terremoto em 1755, a expulsão dos jesuítas do Reino e domínios ultramarinos em 1759, a guerra guaranítica (1754-56) contra os jesuítas e os índios guaranis dos Sete Povos das Missões, a assinatura do Tratado de Madri (1750), entre Portugal e Espanha que substituiu o Tratado de Tordesilhas, entre outros. Em termos administrativos, destacam-se a transferência da capital da colônia de Salvador para o Rio de Janeiro, a criação do Erário Régio e a divisão do antigo Estado do Grão-Pará e Maranhão em dois: Maranhão e Piauí, e Grão-Pará e Rio Negro. 

[10] JUSTIÇA: o termo encontra-se identificado com o mecanismo que implementa a justiça, as instituições judiciárias responsáveis por desvendar a verdade, aplicar sanções e fazer prevalecer o que é justo. Em sua origem clássica, a filosofia considerava a justiça como a virtude por excelência, embora, em termos de aplicabilidade a grupos amplos dentro da própria polis, fosse admitida uma diferenciação entre o bom e o justo. O desenvolvimento do sistema jurídico-político enfatizou a conexão da justiça com o direito: é justo o que segue as regras estabelecidas. Para a concretização deste princípio, regras e leis foram desenvolvidas para serem aplicadas por indivíduos especificamente apontados para tal e por instituições constituídas com este fim. Essas regras e leis, no contexto europeu moderno, ganharam peso e injunção ao longo do período durante o qual o Estado moderno se consolidou, em especial na segunda metade do século XVIII. Segundo Tereza Kirshner, sobre o caso português, “até a segunda metade do século XVIII, no âmbito da cultura jurídica portuguesa, a lei era uma fonte de menor importância no campo de um direito cuja natureza era basicamente doutrinal” (Dossiê: Justiça no Antigo Regime; Textos de História, v. 11, 2003). No Antigo Regime, o Estado era um amálgama de funções em torno do rei e o papel da justiça real era diverso, absorvendo atividades políticas e administrativas, ao mesmo tempo que coexistia com outras instituições judiciais, como a justiça eclesiástica. A ideia de que seres humanos são inerentemente desiguais permeava a aplicação da justiça e o seu acesso. A consolidação do poder absoluto das monarquias da Europa ocidental teve o controle da justiça pelo soberano como aspecto fundamental. O fortalecimento do poder real, em que pese a permanência do privilégio e da aplicação discricionária das regras (concebidas, aliás, de forma a punir de acordo com o criminoso, e não com o crime), teve como consequência maior a imposição e a aplicação de leis escritas por parte do monarca, sobrepujando costumes e poderes locais. A criação de um funcionalismo mais ou menos especializado nas diferentes funções judiciais e a existência de uma legislação que, gradativamente, aumentava as atribuições reais em detrimento dos costumes e outros direitos locais foram fatores que contribuíram para definir uma esfera de atuação da monarquia, não sem ter que enfrentar o despreparo de funcionários dela encarregados e a resistência em abrir mão do direito consuetudinário por parte de setores mais tradicionalistas. No Brasil, a justiça profissional era exercida pelos juízes de fora, pelos ouvidores e pelos tribunais da Relação. Observe-se que a justiça ordinária exercida pelas câmaras municipais foi a mais constante em todo o período colonial, normalmente compartilhada, para as alçadas superiores, pelos ouvidores de capitania. Os juízes de fora (magistrados profissionais) somente foram estabelecidos no Brasil a partir de fins do século XVII e os tribunais da relação funcionaram, na Bahia, entre 1609 e 1624 e 1652-1808 e no Rio de Janeiro entre 1752 e 1808 (Wehling, Arno e Wehling, Maria José. Direito e justiça no Brasil colonial: o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro 1751 e 1808. https://core.ac.uk/reader/71612420)

[11]CADEIA DO ALJUBE: localizada no Rio de Janeiro, na antiga rua do Aljube (hoje rua Acre), entre as ruas do Ourives e Camerino, no bairro da Saúde. A palavra “aljube” deriva do árabe, e significa cárcere, masmorra, cisterna, e as descrições apontam para uma prisão úmida, suja e escura. Fora instituída pelo bispo d. Antônio de Guadalupe em 1735, para os eclesiásticos que tivessem cometido delitos, separando-os dos criminosos comuns. Com o tempo e em especial a partir de 1808, em consequência da falta de edifícios após a chegada da Corte, o aljube se fundiu com a cadeia comum e serviu de prisão para contrabandistas, estelionatários, presos comuns em geral, denominando-se a partir de 1823 “cadeia da Relação”. Em 1856, foi desativada face às péssimas condições de higiene e salubridade, tornando-se uma casa de cômodos. Foi definitivamente demolida em 1906.

[12]CORREGEDOR DO CRIME DA CORTE E CASA: magistrado superior criminal, o cargo estava previsto como um dos ministros que integravam a Casa de Suplicação. Também servia à Casa Real, e atuava na comarca onde estava instalada a Corte, comandando, em matéria de justiça, as vilas da região.

[13]FRAGOSO, JOSÉ ALBANO (1768-1843): jurista português foi nomeado ouvidor do Rio de Janeiro em 1843, passando depois para a Relação da mesma cidade no lugar de desembargador. Quando a Relação da cidade se tornou a Casa de Suplicação do Brasil em 1808, Albano Fragoso tornou-se desembargador ordinário extravagante. No ano seguinte, foi nomeado Juiz Conservador da Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação do Estado do Brasil e Domínios Ultramarinos. Quando da Revolução Pernambucana de 1817, foi designado Juiz das Diligências para apuração das circunstâncias relativas à sublevação. Foi nomeado Corregedor do Crime da Corte e Casa, em decreto de 6 de fevereiro de 1818, e dois anos depois recebeu a delicada incumbência de organizar o processo e punir os responsáveis pelo assassinato de Gertrudes Angelica Pedra, mulher de Fernando Carneiro Leão, posteriormente barão e conde da Vila Nova de São José. Dizia-se então, que o esposo da vítima mantinha um notório relacionamento com dona Carlota Joaquina, considerada responsável pelo crime.

 

  

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