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Alvará régio sobre o cofre dos órfãos

Publicado: Quinta, 09 de Agosto de 2018, 18h18 | Última atualização em Quarta, 17 de Fevereiro de 2021, 22h00

Alvará ordenando que na cidade da Bahia e em outras partes do Brasil onde houvesse juiz de órfãos, fosse providenciado um cofre para guarda do dinheiro, e eventuais rendimentos de propriedades dos órfãos ficando esses montantes sob a responsabilidade do tutor que assumisse o compromisso de sustentá-los. O dinheiro do cofre poderia ser utilizado pelo tutor para manter os bens dos órfãos (como engenhos, bois e escravos), este sendo obrigado a devolver as propriedades com sucesso quando o órfão atingisse a maioridade. Caso estes estivessem em situação de prejuízo, o tutor teria que arcar com as despesas. Declara-se também que esses valores não poderiam ser utilizados por nenhum governador ou ministro para nenhuma finalidade, e caso isso acontecesse, o responsável pagaria pelo bem utilizado.

Conjunto documental: Livro dourado da Relação do Rio de Janeiro. Contêm alvarás, provisões, títulos de carta e leis sobre vários objetos.
Notação: códice 934
Datas-limite: 1534-1612
Título do fundo ou coleção: Relação da Bahia
Código do fundo ou coleção: D9
Argumento de pesquisa: população, órfãos
Data do documento: 29 de janeiro de 1614
Local: Salvador
Folha(s): 112v,113 e 113v

 

Provisão de Sua Majestade[1] sobre haver cofre de órfãos[2] e ordem que se há de ter neles.

Eu, El Rei, faço saber aos que este alvará virem que eu tenho ordenado que na cidade da Bahia, em mais parte do Brasil, onde houver juiz dos Órfãos haja cofre onde se meta o dinheiro dos órfãos[3], e se corra com eles na forma de minhas Ordenações[4], como é declarado na provisão, que sobre mandei fazer, e passar em oito de novembro do ano passado de mil seiscentos e doze, e por assim haver por meu serviço, e bem dos mesmos órfãos, hei por bem, e me praz que a dita provisão, se cumpra, e haja o dito, cofre, como por ela ordeno, com declaração que quando os órfãos tivessem alguns engenhos[5], ou partidos[6] se lhes não vendam os escravos[7], bois, móvel mais fábrica necessária para serviço e cultura dos tais partidos e engenhos, e que tenham mais bois e escravos além do necessário para sobredito, se vendam e o dinheiro que por eles se der, se meta no cofre, e que neste caso se deem os negros, e bois avaliados ao tutor para granjear os engenhos e partidos, e do rendimento manter os órfãos, e que o que sobejar, se venda e meta no cofre, e que neste caso se deem os negros e bois avaliados digo e que sendo partido do quinto ao terço, e que verossimilmente não haverá grandes rendimentos, e no serviço deles poderão morrer os escravos e bois, se neste caso os tutores[8] se obrigaram a sustentar os órfãos conforme as suas qualidades, e quando forem de idade perfeita tomar lhe seus partidos na forma em que os receberem, e melhorados, e não piorados, e com todos a fábrica de bois, e escravo e neste caso só sejam os tutores entregues dos tais órfãos, e partidos, e tirados os custos, e pagas as despesas, que se alvidrarem para a criação dos órfãos, se meta [mais] no cofre, e que tendo os órfãos somente bois e escravos, sem partido algum, se vendam os tais bois e escravos, sem partido algum, se vendam os tais bois e escravos, o dinheiro se meta no cofre e dê ganho, e que os móveis se vendam sem diferença, e o dinheiro que por elas se der, se meta no cofre. Hei outrossim por bem, e me praz que o governador do dito Estado, que ora é, e ao diante for, ou quem em cargo servir, nem outro algum ministro da Justiça, e minha Fazenda[9], possa tomar nem tome dinheiro algum dos ditos órfãos do cofre deles, nem por outra via para necessidade alguma, por precisar que seja, posto que ponha penhores, sob pena que o governador, em qualquer outro ministro que tirar e tomar o tal dinheiro pagar por seus bens, e se haver por eles [executivamente] como tenho ordenado no dinheiro dos defuntos, e isto ainda que o tal dinheiro se carregue em receita sobre os meus oficiais, e se gasta em meu serviço: e mando ao dito governador, e chanceler, e desembargadores da Relação do dito Estado[10], e dos juízes e provedores dos órfãos, e quaisquer outras minhas justiças, oficiais e pessoas, a que pertencer que assim o [guardem], e façam em todo e por todo cumprir e guardar, sem dúvida nem embargo algum como neste se contem o qual se registrará nos livros da dita Relação e das Câmaras da capitania do dito Estado e o próprio se porá em boa guarda, para a todo o tempo constar como assim o tendo ordenado, e valerá com carta começada em meu nome e não passará pela chancelaria[11] sem embargo da Ordenação [2º Livro ttº 39 e 40] que dispõem o contrário, e se passou por duas vias uma só haverá efeito. João Tavares a fez em Lisboa a vinte e nove de agosto de mil seiscentos e treze. O secretário Antônio Veles [...] a fez escrever = Rei = O conde almirante = alvará porque vossa majestade ordena como se há de prover nos bens dos órfãos do Estado do Brasil[12], e que quais se há de vender e meter o dinheiro no cofre que vossa majestade tem mandado que haja, e os governadores, nem outros ministros e poderem tomar na maneira acima declarada. Para vossa majestade ver, e vai por duas vias:

Por carta de vossa majestade de oito de agosto de mil seiscentos e treze = Registrada. Antônio Veles [...] = Registrada no [Livro 6º] dos registros desta Câmara de Olinda [a folha 74] volta em vinte de dezembro de mil seiscentos e treze = Leonardo Barros. O qual traslado de provisão eu Paulo de Souza tabelião público do judicial em notas nesta vila de Olinda[13] e seus termos, por Duarte de Albuquerque Coelho[14] capitão e governador dela por El Rei Nosso Senhor fez trasladar da própria [que] ficou em poder do senhor governador, a que me reporto, e consertei por mim e com o tabelião abaixo o comigo assinado e a dita Olinda aos sete dias do mês de janeiro de mil seiscentos e quatorze = Pagou nada = O governador Gaspar de Souza[15] = Paulo de Souza [ilegível] tabelião Damião Dias de Amaral = Consertado e por mim tabelião Paulo de Souza = O qual traslado da provisão eu Francisco do Couto Escrivão da provedoria-mor trasladei de um traslado consertado assinado pelo governador Gaspar de Souza, que em seu poder tem a própria e com dois tabeliães que [mandou] ao chanceler mor Rui Mendes de Abreu, a qual tem sem eu poder, a qual me reposto nesta cidade do Salvador Bahia de Todos os Santos[16] aos vinte e nove dias do mês de janeiro de mil seis centos e quatorze. Francisco Couto que o escrevi assinei = Francisco Couto.

 

[1] Segundo rei espanhol da dinastia Habsburgo, também conhecida como filipina. Filipe II, chamado “o Pio”, governou Portugal entre os anos de 1598 e 1621, durante o período da junção das duas Coroas, conhecido como União Ibérica (1580-1640). Sob o seu reinado, os portugueses tiveram de contar praticamente consigo próprios na defesa de suas possessões ultramarinas diante das incursões francesas, holandesas e inglesas. Como consequência do descaso do rei espanhol, as colônias portuguesas tiveram sua importância comercial abalada. Merecem destaque na administração de Filipe II: as Ordenações Fili (1603) – compilação jurídica resultante da revisão do código manuelino (1521) que, sem trazer muitas inovações, consolidou as leis já em vigor, respeitando as tradições e identidade portuguesas e vigorou no Brasil até 1916, com o advento do Código Civil; a criação do Conselho das Í (1604) – responsável pela centralização da administração do império ultramar português, nesse momento inserido nos vastos domínios filipinos; e o estabelecimento da paz com a Inglaterra (1604) e com as Províncias Unidas (1609).

[2] A presença de um cofre para órfãos variou muito no Império português: existiu em praticamente todas as regiões, desde a metrópole até aos domínios ultramarinos, e vigorou no Brasil até o século XX. A legislação portuguesa estabelecia que em cada cidade ou vila houvesse um cofre dos órfãos, que seria um cofre ou arca onde permanecessem guardados os pertences de valor dos órfãos, principalmente dinheiro e joias. O juiz dos órfãos, o escrivão e o depositário (tutor ou curador) teriam uma chave e o cofre só poderia ser aberto na presença dos três. O cofre ficava com o tutor, mas poderiam ser removidos para lugares seguros estabelecidos pelo juiz, nas Casas de Misericórdia, e até mesmo na sede do Juízo dos Órfãos. Em Lisboa, o cofre dos órfãos foi extinto em 1757, passando os bens a serem guardados em um depósito público geral, e em cada Juízo deveria haver livros que registrassem todas as entradas e saídas dos bens, que deveriam ser também registrados nos inventários. Para que os cofres ou depósitos fossem abertos era preciso a presença das autoridades do Juízo dos Órfãos e de seus tutores. Os escrivães tinham direito a receber uma taxa sobre cada bem que entrava ou saía dos cofres, que variou bastante, chegando a valer ¼ do valor do bem, até ⅛, um percentual mais habitual. Os depositários, depois de dois anos, poderiam ser substituídos ou renovados. Cada vez que um curador precisasse ser trocado, era necessário fazer um novo inventário dos bens dos órfãos e criar novas entradas nos livros dos órfãos. Caso o provedor, o juiz, o escrivão, o tesoureiro dos órfãos ou o tutor depositário falhassem em suas obrigações, por negligência ou desonestidade, poderiam ser punidos com multa, prisão, degredo e a perda do ofício, além de terem que pagar os prejuízos dos órfãos. Quando estes atingissem a maioridade (25 anos) ou se fossem emancipados antes disso, receberiam de volta os valores depositados no cofre, com as correções necessárias. Os valores do cofre chegaram a ser amplamente utilizados para empréstimo pelo Estado, que pagaria juros a serem revertidos para a manutenção e educação do órfão.

[3] As Ordenações Filipinas (1603) estabeleceram que o pátrio poder cabia ao pai, responsável pela tutoria e curadoria dos filhos até os 25 anos, quando atingiam a maioridade, salvo quando fossem emancipados ou se casassem antes de completar esta idade. Segundo esta lei a orfandade se aplicava no caso do filho ou filha menor de 25 anos perder o pai, ou o pai e a mãe; a perda somente desta não caracterizava o filho como órfão, mas como "menor" apenas, já que não havia necessidade da nomeação de um tutor/curador, sendo este o próprio pai. Para fins jurídicos, órfãos e menores tinham os mesmo direitos (à herança) e as mesmas restrições (necessidade de autorização para contrair matrimônio e de tutoria para administração dos bens). Não necessariamente a orfandade advinha da morte do pai; a ausência deste também significava que filhos ilegítimos fossem considerados órfãos, uma vez que somente as mães fossem conhecidas. Na prática cotidiana, até mesmo em certos casos legais, o termo órfão se aplicava àquele que perdia o pai ou a mãe, ou ambos, conforme a definição dada pelo padre dicionarista Raphael Bluteau já em 1712. Em princípios do século XIX esse significado mais amplo passa a ser cada vez mais usado, apesar da alteração formal da instituição do pátrio poder ter-se dado somente no século XX.

[4] Trata-se de um conjunto de leis que refletiam o esforço do aparelho do Estado em registrar oficialmente as normas jurídicas vigentes nos diversos reinados, pois a dispersão das leis vigentes e aplicáveis trazia uma inevitável incerteza quanto à sua aplicação e, portanto, prejuízos à vida administrativa, política, econômica e jurídica de Portugal e seus domínios ultramarinos. As ordenações afonsinas, promulgadas por d. Afonso V (1432-1481), constituíram a primeira destas compilações, sendo substituídas pelas ordenações manuelinas (1521) e pelas filipinas (1603), compiladas sob o governo de Felipe I à época da União Ibérica, e vigoraram até 1868 em Portugal.

[5] Durante o período colonial o termo “engenho” designava o mecanismo usado para moer a cana, no início do processo de preparo do açúcar. Passa a referir-se ao complexo no qual se fabricava açúcar e toda área da fazenda – as terras, as plantações, a capela, a casa senhorial, a senzala, as ferramentas, e a moenda – posteriormente, desde a segunda metade do século XIX, conceito cunhado por historiadores e estudiosos da agricultura e economia coloniais. Os engenhos de cana (moendas) se dividiam em dois tipos: os engenhos reais, movidos a água – que apresentavam maior riqueza e complexidade, empregavam um grande número de oficiais de serviço e trabalhadores especializados, contavam com grande contingente de mão de obra escrava, grande plantação própria (além de comprar a produção de engenhos menores) e possuíam toda a maquinaria para produzir o açúcar, cobrindo todo o processo – e os movidos a tração animal – menores em tamanho e capacidade de produção, exigiam investimentos inferiores, também chamados engenhocas ou trapiches, e mais utilizados na produção de aguardente. Os engenhos, como unidades produtivas, tiveram um papel central na colonização, ocupação e povoamento do território da colônia. A maior parte da primeira geração de senhores de engenho não era formada por nobres ou grandes investidores, mas por plebeus que auxiliaram na conquista e povoamento da costa brasileira. Com o tempo, a expansão do açúcar e o consequente aumento da sua importância para a economia metropolitana, o status do senhor de engenho cresceu proporcionalmente. Os engenhos constituíam verdadeiros núcleos populacionais, em torno dos quais e de suas capelas, se formavam vilas e se construíam as defesas das fronteiras das capitanias. Os grandes engenhos tinham em torno de 60 a 100 escravos, e muito poucos ultrapassavam a marca de 150-200 cativos, dos quais, em média, 75% trabalhavam nos campos, 10% na manufatura do açúcar, e o restante dedicava-se a atividades domésticas ou não relacionadas ao trato açucareiro. Os engenhos, assim como o açúcar, tinham grande valor, mas um alto custo: as terras, o beneficiamento, os instrumentos, os escravos, as construções encareciam a produção, que apresentava, em geral, baixos rendimentos, descontados os gastos do senhor. A maior parte dos engenhos era muito pouco ou não lucrativa, fazia o suficiente para sua subsistência, ou lucrava mesmo com a produção da aguardente. Algumas poucas unidades geraram fortunas; a maioria rendia pouco e muitos acumularam grandes dívidas. Ao contrário do que comumente se pensa, a capitania que mais concentrava engenhos, em quantidade e grandeza, era a Bahia, e não Pernambuco, seguida pelo Rio de Janeiro, e então por aquela. A lucratividade variava muito, de acordo com: a safra de cana (influenciada pelas condições climáticas e de solo); as epidemias que assolavam vez ou outra a população escrava e de trabalhadores pobres; a falta de gêneros (como lenha, água, animais) e as dívidas que se acumulavam. Apesar das dificuldades, os engenhos não eram abandonados, e a produção açucareira, embora oscilasse de acordo com as ofertas e demandas do mercado europeu e suas colônias, não perdeu sua importância no Brasil. Os engenhos representavam um microcosmo da sociedade aristocrática rural, apoiada no poder patriarcal e político do senhor, base da sociedade brasileira em construção, bem analisada por Gilberto Freyre em sua obra. Mais do que representação de riqueza, o engenho tinha grande importância simbólica, um signo de poder e um sinal de distinção. Os senhores de engenho dominaram a política local durante décadas e, até o século XVIII, ocuparam a maior parte dos postos de oficial nas milícias locais, formando durante todo o período colonial um poderoso grupo de pressão, uma vez que a metrópole precisava de sua lealdade e de seus investimentos para manter a colônia e torná-la rentável. Havia uma hierarquia entre os senhores de engenho, que dependia basicamente da tradição da família e do tipo de propriedade que possuíam. Embora a maior parte dos lucros resultantes da produção de açúcar se concentrasse na atividade comercial, era a produção agrícola que concedia prestígio e poder.

[6] Lotes divididos no terreno da fazenda para plantação de cana-de-açúcar ou a cana produzida nessa área. Era possível ser proprietário de partidos sem, no entanto, ser dono do engenho. Havia lavradores pobres agregados à propriedade e à empresa de um senhor de engenho que arrematavam os partidos de cana desses pequenos produtores.

[7] Pessoas cativas, desprovidas de direitos, sujeitas a um senhor, como propriedades dele. Embora a escravidão na Europa existisse desde a Antiguidade, durante a Idade Média ela recuou para um estado residual. Com a expansão ultramarina, no século XV, revigorou-se, mas adquiriu contornos bem diferentes e proporções muito maiores. No mundo moderno, um grupo humano específico, que traria na pele os sinais de uma inferioridade na alma estaria destinado à escravidão. Diferentemente da escravidão greco-romana, onde certos indivíduos eram passíveis de serem escravizados, seja através da guerra ou por dívidas, o sistema escravocrata moderno era mais radical, onde a escravidão passa a ser vista como uma diferença coletiva, assinalada pela cor da pele, nas palavras do historiador José d'Assunção Barros, “um grupo humano específico traria na cor da pele os sinais de inferioridade” (“A Construção Social da Cor - Desigualdade e Diferença na construção e desconstrução do Escravismo Colonial. XIII Encontro de História da Anpuh-Rio, 2008). Muitos foram os esforços no sentido de construir uma diferenciação negra, buscando no discurso bíblico, justificativas para a escravidão africana. No Brasil, de início, utilizou-se a captura de nativos para formar o contingente de mão de obra escrava necessária a colonização do território. Por diversos motivos – lucro com a implantação de um comércio de escravos importados da África; dificuldade em forçar o trabalho do homem indígena na agricultura; morte e fuga de grande parte dos nativos para áreas do interior ainda inacessíveis aos europeus – a escravidão africana começou a suplantar a indígena em número e importância econômica quando do início da atividade açucareira em grande extensão do litoral brasileiro. Apesar disso, a escravidão indígena perduraria por bastante tempo ainda, marcando a vida em pontos da colônia mais distantes da costa e em atividades menos extensivas. O desenvolvimento comercial no Atlântico gerou, por três séculos, a transferência de um vasto contingente de africanos feitos escravos para a América. A primeira movimentação do tráfico de escravos se fez para a metrópole, em 1441, ampliando-se de tal modo que, no ano de 1448, mais de mil africanos tinham chegado a Portugal, uma contagem que aumentou durante todo o século XV. Tal comércio foi um dos empreendimentos mais lucrativos de Portugal e outras nações europeias. Os negros cativos eram negociados internacionalmente pelos europeus, mas estes, poucas vezes, tomavam para si a tarefa de captura dos indivíduos. Uma vez que o aprisionamento de inimigos e sua redução ao estado servil eram práticas anteriores ao estabelecimento de rotas comerciais ultramarinas, em geral consequência de guerras e conflitos entre diferentes reinos ou tribos, os comerciantes passaram a trocar estes prisioneiros por produtos de interesse dos grandes líderes locais (os potentados) e por apoio militar nos conflitos locais. Embora a escravização de inimigos fosse uma prática anterior à chegada dos europeus, deve-se salientar que o estatuto do escravo na África era completamente diferente daquele que possuía o escravo apreendido e vendido para trabalho nas Américas. Nos reinos africanos, a condição não era indefinida e nem hereditária, e senhores chegavam a se casar com escravas, assumindo seus filhos. O comércio com os europeus transformou os homens e sua descendência em mercadoria sem vontade, objeto de negociação mercantil. Os europeus passaram a instigar guerras e conflitos locais, de forma a aumentar a captura de possíveis escravos, desintegrando a antiga estrutura econômica e social dos reinos africanos. A produção historiográfica sobre a escravidão vem crescendo nos últimos anos, não só escravismo colonial, mas também o comércio de cativos para a própria Europa, sobretudo na bacia mediterrânea, têm sido estudados. A presença de escravos negros em Portugal tornar-se-ia uma constante no campo mas, sobretudo, nas cidades e vilas, onde podiam trabalhar em obras públicas, nos portos (carregadores), nas galés, como escravos de ganhos e domésticos, entre outros. No século XV, os negros africanos já tinham suas habilidades reconhecidas tanto em Portugal quanto nas ilhas atlânticas (arquipélagos de Madeira e Açores). Localizadas estrategicamente e com solo de origem vulcânica, logo foi implantado um sistema de colonização assentado na exploração de bens primários, como o açúcar.  A escravidão foi um dos alicerces essenciais do sucesso desse empreendimento, que acabou sendo transferido para o Brasil, quando essa colônia se mostrou economicamente vantajosa. Dessa forma, no litoral da América portuguesa logo seria implantado o sistema de plantation açucareiro, com a introdução da mão de obra africana. E, ao longo do processo de colonização luso, o trabalho escravo tornou-se a base da economia colonial, presente nas mais diversas atividades, tanto no campo quanto nas cidades. Uma das peculiaridades da escravidão nesse período é representada pelos altos gastos dos proprietários com a mão de obra, muitas vezes mais cara do que a terra. Iniciar uma atividade de lucro demandava um alto investimento inicial em mão de obra, caso se esperasse certeza de retorno. A escravidão e a situação do escravo variavam, dentro de determinados limites, de atividade para atividade e de local para local. Mas de uma forma geral, predominavam os homens, já que o tráfico continuou suas atividades intensamente pois, ao contrário do que ocorria na América inglesa, por exemplo, houve pouco crescimento endógeno entre a população escrava na América portuguesa. Rio de JaneiroBahia e Pernambuco foram os principais centros importadores de escravos africanos do Brasil. Além de formarem a esmagadora maioria da mão de obra nas lavouras, nas minas, nos campos, e de ganharem o sustento dos senhores menos abastados realizando serviços nas ruas das vilas e cidades (escravos de ganho), preenchendo importantes nichos da economia colonial, os escravos negros também eram recrutados para lutar em combates. A carta régia de 22 de março de 1766, pela qual d. José I ordenou o alistamento da população, inclusive de pardos e negros para comporem as tropas de defesa, fez intensificar o número dessa parcela da população nos corpos militares. Ingressar nas milícias era um meio de ascensão social, tanto para o negro escravo quanto para o forro. A escravidão é um tema clássico da historiografia brasileira e ainda bastante aberto a novas abordagens e releituras. A perspectiva clássica em torno do tema é a do “cativeiro brando” e o caráter benevolente e não violento da escravidão brasileira, proposta por Gilberto Freyre em Casa Grande e senzala no início da década de 1930. Contestações a essa visão surgem na segunda metade do século XX, nomes como Florestan Fernandes, Emília Viotti, Clóvis Moura, entre outros, desenvolvem a ideia de “coisificação” do negro e as circunstâncias extremamente árduas em que viviam, bem como a existência de movimentos de resistência ao cativeiro, como é o caso das revoltas de escravos e a formação dos quilombos. Já perspectivas historiográficas recentes reviram essa despersonalização do escravo, considerando-o como agente histórico, com redes de sociabilidade, produções culturais e concepções próprias sobre as regras sociais vigentes e como os negros buscaram sua liberdade, contribuindo decisivamente para o fim da escravidão.

[8] A função do tutor no mundo luso-brasileiro foi compilada pela primeira vez em lei nas Ordenações Afonsinas entre 1446 e 1448, muito inspiradas pelo direito romano. Tais ordenações tratavam dos encargos e obrigações dos tutores – então chamados guardadores – e estabeleceram as bases do que se firmou com as Ordenações Filipinas em 1603. Nesta compilação, os termos tutor e curador aparecem como sinônimos, ao passo que guardador cai em desuso. A diferença entre o tutor e o curador, estabelecida pelo direito romano, previa que o primeiro fosse responsável pela pessoa do órfão ou incapaz e, o segundo, se ocupasse dos bens do mesmo. Na prática, no Império português, os dois termos eram usados para designar a mesma pessoa e as funções se sobrepunham, sendo, basicamente, “promover com zelo e exatidão em favor de pessoa impedida o negócio que lhe é encarregado”, podendo ser órfão, idoso ou deficiente. Os tutores eram responsáveis por prover educação e subsistência aos órfãos, cuidar de seus bens até que estes atingissem a maioridade (25 anos), garantindo o retorno do patrimônio inalterado com os rendimentos previstos ao legítimo dono, e até mesmo, promover e autorizar o casamento dos menores de idade. Não era raro que irmãos pudessem ter tutores diferentes ou que um mesmo órfão tivesse mais de um curador, caso herdasse bens imóveis em mais de uma região no Reino, ficando cada um responsável por uma localidade. Os tutores poderiam ser uma pessoa indicada pelo pai ou pelo avô no testamento, normalmente da família, mas não obrigatoriamente, chamado tutor testamentário. Poderiam ser também, parentes próximos homens, salvo poucas exceções, possuidores de posses e capazes de gerir os bens dos órfãos sem prejuízo a eles, chamados tutores legítimos. Ainda existiam os tutores dativos: pessoas indicadas para a função pelos alcaides e alvasis, que atuavam como juízes no âmbito municipal, até a criação do cargo de juiz de órfãos pelo Código Filipino, que passou a ser o encarregado de nomear e confirmar tutores, bem como de fiscalizá-los. Embora a lei previsse penas muito duras aos tutores que não cumprissem com suas obrigações ou negligenciassem o cuidado com os órfãos e seus bens, havia muitos casos não previstos que eram encaminhados diretamente aos secretários de Estado e ao próprio monarca, como no caso de troca de tutor ou curador, ou mesmo substituição no caso de falecimento ou incapacidade deste. Caso a mãe morresse, a tutela era automaticamente revertida ao pai, que se tornava curador dos bens dos filhos. No caso de o pai falecer, o órfão poderia ficar com a mãe legítima e natural, caso esta não se casasse novamente. Se contraísse matrimônio, automaticamente perdia o direito à tutela dos filhos, que passavam a algum parente mais próximo, preferencialmente o avô, e depois a outros familiares mais próximos ao órfão. Ao longo do século XIX, houve forte pressão de advogados e juízes para que a tutela do órfão seguisse naturalmente para a mãe, e somente na incapacidade desta, para avós ou outros parentes, o que somente se concretizou amplamente no Brasil com a criação do Código Civil em 1916, já no período republicano.

[9] Instituição fiscal criada em Portugal, no reinado de d. José I, pelo alvará de 22 de dezembro de 1761, para substituir a Casa dos Contos. Foi o órgão responsável pela administração das finanças e cobrança dos tributos em Portugal e nos domínios ultramarinos. Sua fundação simbolizou o processo de centralização, ocorrido em Portugal sob a égide do marquês de Pombal, que presidiu a instituição como inspetor-geral desde a sua origem até 1777, com o início do reinado mariano. Desde o início, o Erário concentrou toda a arrecadação, anteriormente pulverizada em outras instâncias, padronizando os procedimentos relativos à atividade e serviu, em última instância, para diminuir os poderes do antigo Conselho Ultramarino. Este processo de centralização administrativa integrava a política modernizadora do ministro, cujo objetivo central era a recuperação da economia portuguesa e a reafirmação do Estado como entidade política autônoma, inclusive em relação à Igreja. No âmbito fiscal, a racionalização dos procedimentos incluiu também novos métodos de contabilidade, permitindo um controle mais rápido e eficaz das despesas e da receita. O órgão era dirigido por um presidente, que também atuava como inspetor-geral, e compunha-se de um tesoureiro mor, três tesoureiros-gerais, um escrivão e os contadores responsáveis por uma das quatro contadorias: a da Corte e da província da Estremadura; das demais províncias e Ilhas da Madeira; da África Ocidental, do Estado do Maranhão e o território sob jurisdição da Relação da Bahia e a última contadoria que compreendia a área do Rio de Janeiro, a África Oriental e Ásia. Por ordem de d. José I, em carta datada de 18 de março de 1767, o Erário Régio foi instalado no Rio de Janeiro com o envio de funcionários instruídos para implantar o novo método fiscal na administração e arrecadação da Real Fazenda. Ao longo da segunda metade do século XVIII, seriam instaladas também Juntas de Fazenda na colônia, subordinadas ao Erário e responsáveis pela arrecadação nas capitanias. A invasão napoleônica desarticulou a sede do Erário Régio em Lisboa. Portanto, com a transferência da Corte para o Brasil, o príncipe regente, pelo alvará de 28 de junho de 1808, deu regulamento próprio ao Erário Régio no Brasil, contemplando as peculiaridades de sua nova sede. Em 1820, as duas contadorias com funções ultramarinas foram fundidas numa só: a Contadoria Geral do Rio de Janeiro e da Bahia. A nova sede do Tesouro Real funcionou no Rio de Janeiro até o retorno de d. João VI para Portugal, em 1821.

[10] Também conhecido como Tribunal da Relação do Brasil (até a criação da Relação do Rio de Janeiro em 1751), foi o primeiro tribunal de 2ª instância no Brasil, somando-se às Relações do Porto e de Goa, além da Casa de Suplicação de Lisboa, como as principais instituições judiciais superiores do império português. Apesar de criado efetivamente em 1609, desde 1588 já se pretendia instalar uma corte de apelação nos territórios americanos, quando se redigiu o primeiro regimento da instituição, que foi a base do regulamento de 1609, dentro do plano de modernização e legalização da burocracia estatal empreendido por Felipe II para todo o império luso-espanhol. A princípio funcionou por menos de vinte anos, até 1826, sendo reestabelecido em 1652, tendo encerrado suas atividades aparentemente durante o período em que tanto a Bahia quanto Pernambuco foram invadidos e comandados pelos holandeses. A principal atribuição da Relação consistia em julgar a 2ª instância, já que todos os recursos de casos no Brasil eram encaminhados para Lisboa, o que era demorado e custoso, a fim de melhorar e acelerar a justiça entre os colonos, além de contribuir para a centralização, pelo governo metropolitano, da burocracia e aparelho judicial colonial. Era também uma forma de a Coroa tomar conta mais amiúde da colônia, diminuindo os poderes dos donatários. Órgão colegiado, na segunda fase, o Tribunal contava com oito desembargadores, entre eles um chanceler, um ouvidor-geral e um procurador da Coroa, além de oficiais, e o presidente seria o vice-rei geral do Brasil, e estava subordinado diretamente à Casa de Suplicação de Lisboa, que serviu de modelo para sua organização. A seleção desse conjunto de letrados formados e treinados para a função foi uma tarefa difícil para a Coroa, que precisava confiar nesses membros para representa-la e ao mesmo tempo torna-los distintos e respeitáveis pela população muito avessa a obedecer às leis e à ordem, além da pequena elite colonial, que já dera sinais de insatisfação com a presença da justiça da metrópole passando por cima da local. A maior parte das ações que chegavam a Relação eram processos criminais (crimes passionais e de sedução, além de assassinatos pelos mais diversos motivos), disputas sucessórias, disputas cíveis (como brigas por terras e propriedades, contestações de contratos de dízimos, repressão ao contrabando, e ao comércio ilegal de pau-brasil), além de questões de tesouro (como fraudes e evasão fiscal). Os casos tratados prioritariamente eram os que envolviam diretamente a Coroa e a Casa Real. Desse modo, pode-se dizer que o Tribunal da Relação do Brasil (ou da Bahia) exerceu não somente funções judiciais (atuando ainda como juízes itinerantes pelas capitanias e responsáveis por investigações especiais), mas também funções administrativas, informando e aconselhando o rei sobre os acontecimentos e negócios da colônia, conduzindo devassas e administrando, por exemplo, missões especiais como a coleta de 1 % de impostos sobre as vendas para a construção de igrejas ou obras pias.

[11] A regulamentação em 1609, da Relação da Bahia ou Relação do Estado do Brasil, como por vezes foi chamado esse tribunal superior, criou entre os magistrados, o cargo de chanceler, que presidia o tribunal. Era o mais antigo dos juízes e cabia-lhe substituir o governador-geral na direção da Relação, quando este se ausentava da cidade de Salvador. Possuía, dentre outras incumbências, analisar todas as cartas e sentenças dadas pelos desembargadores da RelaçãoEra também juiz dos cavaleiros, quando os casos envolviam as ordens militares e era ele mesmo um cavaleiro, como assinala Stuart B. Schwartz. Com a instalação da Relação do Rio do Janeiro, em 1751, o cargo de chanceler passou a existir igualmente nessa Corte.

[12] Uma das antigas divisões administrativas e territoriais da América portuguesa: Estado do Brasil e Estado do Maranhão, posteriormente, Estado do Grão-Pará e Maranhão. Criados em 1621, ainda sob o reinado de Filipe III da Espanha (durante a União Ibérica), vigoraram até meados do século XVIII, quando a governação pombalina promoveu a centralização administrativa da colônia. O Estado do Brasil compreendia capitanias de particulares e capitanias reais (incorporadas à Coroa por abandono, compra ou confisco), e um conjunto de órgãos da administração colonial, semiburocrático que passa a se tornar mais profissional depois da segunda metade do século XVIII, com competências fazendária, civil, militar, eclesiástica, judiciária e política. O Estado do Maranhão existiu com esta denominação entre 1621 e 1652, e 1654 e 1772, e foi criado para suprir as dificuldades de comunicação com a sede do Estado do Brasil, a cidade de Salvador, aproveitando sua proximidade geográfica com Lisboa, e diminuir as ameaças de ataque estrangeiro à foz do rio Amazonas. Em 1772 o Estado foi desmembrado em duas capitanias gerais e duas subalternas: Pará e Rio Negro, e Maranhão e Piauí. É importante ressaltar ainda que, embora Portugal visse seus estados na América como um conjunto, esta visão não era compartilhada pelos colonos que moravam aqui, que não viam o Brasil como um todo e não percebiam unidade na colônia. Apesar de "Brasil" ser, nos dias de hoje, corriqueiramente usado para denominar as colônias portuguesas na América, durante o período colonial, o termo referia-se somente às capitanias que faziam parte do Estado do Brasil, onde ficava o governo-geral das colônias, primeiro na cidade da Bahia e depois no Rio de Janeiro. As capitanias que compunham o Estado do Brasil, depois da separação do Maranhão e suas subalternas, eram do sul para o norte: capitania de Santana, de São Vicente, de Santo Amaro, de São Tomé, do Espírito Santo, de Porto Seguro, de Ilhéus, da Baía de Todos os Santos, de Pernambuco, de Itamaracá, do Rio Grande e do Ceará. No início do século XIX, o Brasil, já sem as divisões de Estado internas, era formado pelas seguintes capitanias: São José do Rio Negro, Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande (do Norte), Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, GoiásMato GrossoMinas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São PauloSanta Catarina e São Pedro do Rio Grande. Em 1821, quase todas as capitanias se tornaram províncias e algumas capitanias foram agregadas em só território, deixaram de existir ou foram renomeadas. A partir daí, tivemos as províncias do Grão-Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Bahia, Goiás, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Cisplatina.

[13] Criada em 1537 pela Carta de Foral concedida a Duarte Coelho Pereira, donatário da capitania de Pernambuco, a vila de Olinda foi erigida em posição privilegiada, sobre colinas, e a primeira construção foi o Castelo de Duarte Coelho, que servia como fortaleza para a defesa do povoado e do porto do Recife de possíveis ataques de estrangeiros pelo mar. Em torno da fortaleza, foram sendo erigidas as principais construções públicas: a Igreja da Sé, a Câmara Municipal, a cadeia, conventos de diversas ordens religiosas, como carmelitas, franciscanos, beneditinos, o Colégio dos Jesuítas e as casas dos moradores que desciam as encostas e vales da região. As primeiras atividades econômicas da região foram a extração do pau-brasil e, depois, o plantio da cana e sua transformação em açúcar nos engenhos que até hoje marcam a paisagem da região. Olinda foi capital e sede do governo da capitania de Pernambuco até 1827, com exceção do período da ocupação holandesa, entre 1630 e 1654, quando a cidade foi incendiada, ficando quase em ruínas, enquanto o governo passava para o Recife. A reconstrução da vila só começou em 1664 e arrastou-se ao longo dos séculos XVII e XVIII. Entre 1710 e 1711, eclodiu uma revolta provocada pela ascensão do Recife à condição de vila, que significava a perda de poder da elite senhorial olindense para os chamados "mascates", comerciantes do porto do Recife que desejavam maior autonomia e incentivos para o comércio. Apesar da ofensiva de Olinda, os mascates do Recife tiveram mais sucesso: a elevação à vila prevaleceu e esta prosperou, enquanto a vila de Olinda perdia importância e sua economia entrava em declínio. No início do oitocentos, Olinda ainda era cercada por engenhos, sítios e propriedades rurais. Em 1800, a fundação do Seminário de Olinda recuperou um pouco da importância perdida para o Recife que, apesar de não ser capital oficial da província, posição alcançada somente em 1837, era na prática a sede administrativa. Em 1827, a cidade recebe uma das duas primeiras faculdades de Direito do país independente (a outra em São Paulo), que foi transferida para a nova capital em 1854. Olinda passava então a ser uma cidade de veraneio para os habitantes do Recife e, durante a segunda metade do século XIX e ao longo do XX, recebeu melhorias como a chegada das ferrovias, dos bondes, da água potável e da eletricidade. Em 1982, foi declarada Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade pela UNESCO, sendo uma das mais bem preservadas cidades coloniais do país.

[14] Conde de Pernambuco, marquês de Bastos, foi o 4º donatário da capitania de Pernambuco, entre os anos 1603 e 1658. A capitania foi doada, em 1534, a Duarte Coelho, seu avô, e permaneceu na família Albuquerque Coelho até que a filha única do conde de Pernambuco casou-se com Francisco de Paula de Portugal e Castro. Duarte de Albuquerque, como era chamado, foi o donatário de Pernambuco durante o período das invasões holandesas, recebeu a capitania em 1603, quando chegou à maioridade, mas chegou ao Brasil somente em 1624, quando participou na Restauração da Bahia, seguindo para suas terras em 1831 para tentar reconquistá-las. Permaneceu no Brasil até 1638, quando foi para Madri, onde viria a falecer. Por esta ocasião, deixou seu irmão Matias de Albuquerque Coelho no comando das tropas, como Superintendente de Guerra. Após a reconquista do território, a Coroa passou a administrar a capitania, embora ainda pertencesse aos herdeiros de Duarte. Apesar de ter tido um papel de coadjuvante nas guerras contra os holandeses, publicou, em 1654, na Espanha, As memórias diárias da guerra do Brasil, sobre o período em que a capitania esteve sob domínio holandês e em guerra contra os colonos do Brasil (1624-1654).

[15] Governador geral do Brasil entre 1612 e 1617, durante a União Ibérica, era sobrinho de Cristóvão de Moura, 1º marquês de Castelo Rodrigo, nome importante na corte de Felipe II. Gaspar de Souza e o pai, Álvaro de Souza, prestaram muitos serviços aos Moura e ao rei. Seu pai serviu na Índia e foi membro do Conselho do rei. Teve destacada participação na batalha do Alcacer-Quibir, no Marrocos, em 1578, comandando a armada portuguesa. Foi preso e pagou seu resgate com recursos próprios, o que lhe valeu diversas comendas e tenças, como ter sido nomeado fidalgo cavaleiro, cavaleiro da Ordem de Cristo, além de ter recebido algumas mercês pecuniárias em nome dos serviços prestados para auxílio em seus empreendimentos. Uma dessas mercês visava financiar sua vinda ao Brasil em 1612, quando assumiu o posto de governador-geral. Foi casado com d. Maria de Menezes, filha de d. João da Costa, alcaide-mor e comandante mor de Castro Marin. Chegou a ter tanto prestígio com Felipe III que o rei garantiu a transmissão de seu cargo a seu genro, quando sua filha se casasse, desde que fosse com alguém de mesma posição – o que não aconteceu. Por sua morte, em 1627, recebeu a mercê da capitania de Caetés, no Estado do Maranhão, que passou diretamente a seu filho Álvaro de Souza. Este chegou a receber o almejado título de conde de Anciães, no momento da Restauração portuguesa, mas, devido aos estreitos laços com a família real espanhola, não conseguiu que o título fosse reconhecido em Portugal, já sob reinado dos Bragança.

[16] A fundação da cidade de Salvador data de 1549, sendo, portanto, a primeira cidade administrativa criada por Portugal na América, com a instalação do governo-geral na capitania da Bahia. A 29 de março, data simbólica de aniversário da cidade, desembarcou na enseada do Porto da Barra, o primeiro governador-geral, Tomé de Souza, que trouxe as instruções régias de como fundar uma cidade. Ficou a cargo do mestre Luiz Dias executar as primeiras construções. Inicialmente erguida sobre uma colina, visando a defesa contra ataques de índios e estrangeiros, no século XVII, a cidade, embora ainda pequena, já se dividia entre a parte alta e a baixa. Contava apenas com uma praça, ao redor da qual se erguiam os prédios da administração colonial e o palácio do governador, depois vice-rei. Com auxílio de ordens religiosas como a dos jesuítas e beneditinos, que construíram igrejas, praças, capelas, escolas e conventos, os limites da cidade se ampliavam rapidamente. Salvador também foi a primeira diocese da América portuguesa. A cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos, como era também chamada, tinha importância política, econômica e comercial de destaque devido a seu grande porto, por onde circulava intenso comércio transatlântico e interno, intensificado depois da abertura dos portos do Brasil. O viajante inglês Thomas Lindley refere-se à cidade como “empório do universo” dada sua centralidade econômica, local de encontro de rotas comerciais internas e externas à capitania e entreposto fundamental na redistribuição de produtos importados para outras capitanias e na saída de produtos locais para o exterior, uma face atlântica, que contemplava desde o comércio com a Europa, África e Ásia, como dizia Russell-Wood. Enquanto de Salvador eram exportadas mercadorias como o açúcar, o tabaco, couro, a aguardente, o melado, o algodão, o arroz, o cacau, o café, a madeira e o azeite de baleia, de Portugal, importavam-se gêneros manufaturados, como tecidos, louças, ferragens, pólvora, chumbo, alcatrão, farinha de trigo, vinho, vinagre e azeite de oliva; da Índia, tecidos e especiarias e, da Áfricaescravos e cera. Salvador foi uma das principais cidades escravistas na América portuguesa, um dos principais eixos do tráfico com o golfo da Guiné, principalmente com a baía de Benim (ALENCASTRO, L. F. África, números do tráfico atlântico. In: SCHWARCZ, L. M., GOMES, F. (Orgs). Dicionário da escravidão e liberdade, 2018). As trocas inter-regionais, feitas com mercadorias importadas, sobretudo escravos, que chegavam através do porto de Salvador, empregavam navios e outras embarcações em número superior aos que faziam conexão com Lisboa. De acordo com Moema Angel, autora de Visitantes estrangeiros na Bahia Oitocentista (1980), chegando a Salvador, os viajantes dos séculos XVIII e XIX podiam evocar com admiração a beleza das igrejas e dos conventos, os palácios do governador, do arcebispo e da câmara, bem como a riqueza do seu comércio. Mas não deixavam de ver aí, também, uma “nova Guiné”, “uma cidade negra” (Souza, E., Marques, G. e Silva, H. (org.). Salvador da Bahia: retratos de uma cidade atlântica / Salvador, Lisboa: EDUFBA, CHAM, 2016). Com a chegada da Corte, algumas mudanças favoreceram a cidade, como a criação de manufaturas, da primeira tipografia e gazeta, e aumento das atividades culturais, como o teatro, a dança e a música. Salvador foi a capital do Brasil até 1763, quando a sede do vice-reinado foi transferida para o Rio de Janeiro.

 

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