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Atritos no Mediterrâneo

Publicado: Quarta, 24 de Janeiro de 2018, 12h51 | Última atualização em Sexta, 23 de Abril de 2021, 16h12

Carta escrita por d. Rodrigo de Souza Coutinho ao marquês de Niza com ordens do príncipe regente de Portugal, pedindo que o chefe de divisão Donald Campbell siga a Trípoli para ajustar tratado previamente negociado, além de seguir na direção de Túnis e Argel para tentar a paz e a restituição dos cativos ou, ao menos, para explorar novos lugares. Também determina que seja tentado o resgate de um bergantim em especial, o Lebre, tomado por corsários ou de Túnis ou de Argel.

Conjunto documental: Secretaria de Estado do Ministério do Reino
Notação: caixa 634, pct. 03
Data-limite: 1797-1801
Título de fundo: Negócios de Portugal
Código de fundo: 59
Local: Lisboa
Data do documento: 1° de setembro de 1799
Folha (s): 8

 

"Para o marquês de Niza[1]

 Ilustríssimo Excelentíssimo Senhor

O príncipe regente nosso senhor ordena a V. Ex. que no seu regresso para Portugal não só expeça ao chefe de divisão Campbell[2] à Trípoli[3], como lhe está ordenado, para assinar o Tratado[4] que se ajustou, mas também que V. Ex. passe adiante de Túnis[5] e Argel[6], e que V. Ex. tente se, com fortes ameaças, pode ou concluir pazes e restituição dos cativos[7], ou ao menos explorar os lugares, a fim de que V. Ex., chegando aqui, possa dar conta a S. A. Real da Força que seria necessária empregar para por à razão, e lhes ditar a lei, de que tão imperiosamente necessita a extensão e grandeza que vai se tornando e deve tomar o nosso comércio. Acresce a isto, que, tendo ouvido a desgraça de que um pequeno insignificante Brigantim[8], o Lebre, da Real Armada, fosse tomado à vista de Barcelona, por um corsário[9] do trinta ou trinta e seis, Tunesino, ou segundo e mais provável Algerino, V. Ex. deve procurar reaver com ameaças a gente do mesmo Bergantim e evitar-lhes o cativeiro e até se, por meio de Lord Nelson[10] , se poderia conseguir este objeto interessante para a honra do nosso pavilhão, e para evitar que tão valorosa gente fique em cativeiro, e seja vitima do seu arrojo e valor, com que atacaram força tão superior. S.A. Real recomenda a execução destas reais ordens, e confia que V. Ex., unindo uma hábil conduta ao mais intrépido valor e resolução, conseguirão o grande resultado que se espera, e que voltará aqui tem a menor demora, ou trazendo tudo conseguido, ou com planos efeitos sobre o local, que mostrem o meio, com que tão grande objeto se poderá conseguir.

Palácio de Queluz em 1° de setembro de 1799.

Dom Rodrigo de Souza Coutinho[11]."

 

[1] LIMA, D. DOMINGOS XAVIER DE (1765-1802):  7º marquês de Nisa por casamento com d. Eugénia Maria Josefa Xavier Teles de Castro da Gama, foi um destacado almirante português, atuante entre 1782 e 1802. O título de capitão de fragata chega aos 24 anos, sendo-lhe então concedido o comando do primeiro navio. Recebeuo comando de uma esquadra em 1797, cuja atuação se estendia até o estreito de Gibraltar, e tinha por missão, além de auxiliar a Marinha Real Britânica nos conflitos com forças franco-espanholas, proteger a navegação mercante das atividades de corsários oriundos do norte da África. Por sua iniciativa, em 1799, investiu-se em uma aproximação com corsários de Túnis e Trípoli. Segundo Alexandre da Fonseca (em “O Marquês de Niza no bloqueio a Malta”, http://www.revistamilitar.pt/artigo.php?art_id=534), "não existiam relações diplomáticas entre Portugal e as regências de Argel, Tunis e Tripoli, em cujos portos estavam baseados numerosos navios corsários que atacavam, com frequência, a navegação mercante portuguesa. Contudo, existia um tratado de paz entre o Reino Unido e aquelas regências. O marquês de Nisa sugeriu, então, ao almirante britânico Horatio Nelson o envio da nau "Afonso de Albuquerque" a Trípoli, com a dupla missão de eliminar a influência francesa e negociar uma trégua com Portugal. Depois de um breve bloqueio à cidade, iniciam-se negociações que acabam por assegurar a paz entre a regência de Trípoli e o reino de Portugal. O sucesso alcançado levou o marquês de Nisa a propor a Nelson uma ação semelhante em Túnis. Em novembro de 1799, uma embarcação cedida pelo militar inglês e tendo a frente Rodrigo Pinto Guedes, chefe do estado-maior da esquadra portuguesa, se deslocou a Túnis e negociou, com sucesso, um acordo de paz entre o governo português e a Regência. O então almirante marquês de Nisa continuou a trabalhar em associação com a frota britânica, inclusive com o almirante Nelson, na região do sul da Itália e no cerco à ilha de Malta, ainda em 1799.

[2] CAMPBELL, DONALD: oficial da marinha britânica, contratado para servir à Coroa portuguesa, como parte de um processo de modernização da marinha portuguesa, cujos quadros passaram a receber treinamento formal e pagamento em todos os níveis de hierarquia a partir da década de 1780. Durante determinado período, serviu diretamente sob as ordens do vice-almirante Lord Nelson e, posteriormente, tornou-se contra-almirante.

[3] TRÍPOLI: antiga cidade fenícia fundada sete séculos antes da era cristã. Ao longo da sua história, foi ocupada por gregos, romanos e cartagineses. No século VII da era comum, caiu sob dominação de dinastias muçulmanas baseadas no Cairo. Na década de 1550, o Império Otomano estabeleceu, na antiga Trípoli, mais uma das suas bases reforçadas, após vencer tropas espanholas que haviam dominado a região por algumas décadas a partir do início daquele século. Como ocorreu em outras localidades do norte da África, o poder direto do Império Otomano acabaria se flexibilizando a partir do século XVIII; no caso de Trípoli, os novos governantes locais manteriam, contudo, ligações com Istambul, conservando, inclusive, o título de bei – originalmente uma denominação otomana para o governador de província. No início do século XIX, a regência de Trípoli, junto a outras regências do Magreb (Túnis, Argel, e o sultanato independente do Marrocos), envolveu-se em um conflito com os Estados Unidos, de quem os corsários locais vinham recebendo dinheiro em troca de proteção aos navios norte-americanos que circulavam no Mediterrâneo, conforme um tratado assinado em 1796. O conflito durou quatro anos, até a assinatura de um acordo de paz em 1805.

[4]  TRATADO DE PAZ E AMIZADE (1799): em maio de 1799 foi assinado um Tratado de Paz e Amizade entre o reino de Portugal e o Bei (regência) de Trípoli, ao qual seguiu-se um tratado de mesmo teor com a regência de Túnis, no mês seguinte. Estas ações diplomáticas buscavam dar um fim à atividade corsária berbere ainda existente no Mediterrâneo e no Atlântico, praticada por grupos oriundos do norte da África. Os corsários ameaçavam a atividade comercial lusitana e eram responsáveis pelo cativeiro de súditos europeus, capturados durante os conflitos e transformados em reféns escravizados a espera de resgate. Esta iniciativa também integra um conjunto de esforços empreendidos por Portugal no sentido de garantir formalmente maior segurança e maior espaço no comércio internacional, esforço este empreendido especialmente no último quartel do século XVIII.

[5] TÚNIS: a regência de Túnis, atual Tunísia, localiza-se no norte da África – Magreb –, berço da civilização cartaginesa, que teve seu apogeu no século III a.C., antes de sucumbir ao Império Romano. A partir de meados do século XVI, foi um beilhique – estado vassalo de um sultanato do Império Otomano. Os seus governantes, como de outras províncias da região, eram chamados de Bei, até o ano de 1881, quando se torna protetorado da França. Originalmente "bei" era um governador civil do Império Otomano, mas ao longo da sua história a denominação definiu várias formas de vassalagem como também de aliança, sob diversos graus de dependência e subordinação ao sultão de Constantinopla. Túnis era um centro irradiador de poder e uma das duas cidades economicamente mais importantes do norte da África, ao lado de Trípoli. A regência de Túnis armava corsários, que costumavam agir na região do estreito de Gibraltar, assaltando cidades costeiras de Portugal, e tinham em seu poder numerosos cristãos. O marquês de Nisa, com sua esquadra no Mediterrâneo, entre 1798 a 1800 e com o apoio diplomático da Inglaterra, estabeleceu tréguas com as regências de Túnis e Trípoli.

[6] ARGEL: a Numídia, antigo reino de origem berbere que ocupou parte da porção norte do continente africano (em especial a atual Argélia), localizava-se a oeste de Cartago e manteve-se independente durante os dois séculos anteriores ao início da era comum. Após as Guerras Púnicas, o território passou a integrar o Império Romano, que o dividiu em várias províncias. Argel era uma cidade menor até o domínio otomano na figura dos irmãos Barbarossa – corsários muçulmanos oriundos das ilhas gregas. Em 1525, com o estabelecimento oficial da regência de Argel, no entanto, e da concessão do título de governador a Hayreddin Barbarossa pelo sultão Suleyman, a cidade se tornaria a principal base de poder naval e atividade corsária dos otomanos no Mediterrâneo nos séculos XVI e XVII. Esta atividade ganhara impulso com a expulsão de milhares de mulçumanos da Espanha para o norte de África e com a expansão do Império Otomano da região. As cidades Argel (Argélia), Tunis (Tunísia), Trípoli (Líbia) e Salé (Marrocos), situadas no norte da África, foram, até meados do século XIX, centros de atividade corsária. O corso na região integrava o conflito entre cristãos e mouros, e muitos barcos (em especial os da península Ibérica) eram frequentemente aprisionados e levados para o norte da África. O domínio otomano na região deu à atividade corsária outra dimensão, tornando-se o braço marítimo das tentativas de dominação otomana na Europa. Em 1784, uma força conjunta de Portugal e da Espanha atacou o porto de Argel e, em 1787, os portugueses enviaram uma embaixada para negociar o fim dos ataques dos piratas, sem resultados. Em 1794, é assinado um Tratado Definitivo de Paz, de Navegação e de Comércio com o reino de Marrocos, e criados os postos diplomáticos em Tânger. Com os regimes de Argel, Tunis e Trípoli, que armavam corsários e tinham em seu poder numerosos cativos cristãos, o estabelecimento de relações diplomáticas foi mais difícil. Apoiado pela diplomacia inglesa, o marquês de Niza estabeleceu trégua com Trípoli e com Tunis em 1798-1800. As negociações com Argel se prolongaram por alguns anos, pois aquela regência pretendia um preço elevado pelo resgate dos cativos e pelo estabelecimento de tréguas. O Tratado de Paz e Amizade Luso-Argelino, firmado no ano de 1813, permitiu recuperar os cativos; contudo Portugal obrigava-se a um pagamento de 500.000 duros argelinos, além de pagamentos anuais. Em 1830, a França invade Argel e assume o controle das comunidades costeiras. Neste momento a atividade corsária argelina deixa de ser uma ameaça no Mediterrâneo.

[7] CATIVO: os conflitos entre europeus cristãos e os povos islâmicos da África e Oriente Médio desde o final da Idade Média tiveram entre suas práticas a captura de reféns, de ambos os lados, com o objetivo de obter regates ou vantagens em negociações posteriores. Não era incomum a troca de reféns e nem a negociação coletiva de cativos. A partir do século XVII, o conflito entre os povos islâmicos e cristãos foi representado, no norte da África, basicamente por esta prática de captura e troca de prisioneiros, muitas vezes envolvendo súditos das coroas ibéricas. Alguns destes cativos passavam anos à espera de resgate, período em que eram mantidos e por vezes negociados como servos de famílias de elite locais. Na sociedade colonial luso-brasileira, o termo era sinônimo de escravo.

[8] BERGANTIM: os bergantins eram navios de remos de traça, muito rápidos e de fácil manobra. Eram equipados com dez a dezenove bancos corridos de bordo a bordo. Envergavam tanto vela redonda quanto latina com um ou dois mastros. Nos primeiros tempos da presença portuguesa no Oriente realizavam as missões de contato, reconhecimento e transporte. Prestavam-se ainda a servir as fortalezas mais importantes, particularmente nas zonas onde a presença naval não era permanente. O bergantim era também uma embarcação de ostentação, favorito de monarcas e grandes senhores.

[9] CORSÁRIO: o saque, a pilhagem e o apresamento de embarcações e povoados vulneráveis há séculos têm sido realizados por grupos organizados, atuando sob as ordens de um soberano ou de forma independente. O termo pirataria define uma atividade autônoma, sem qualquer consideração política ou razões de estado (comerciais ou estratégicas), já o chamado corso integrava uma política deliberada de interceptação de carga comercial e disputa por territórios entre estados legais. Ocorria de forma intermitente em consequência do conflito de interesses de nações com algum poderio naval. Embora a intensificação das guerras de corso significasse um acirramento do conflito entre os estados, não necessariamente em tempos de paz os ataques cessavam. Muitas vezes, corsários e piratas se confundiam, pois a pilhagem facilmente saía do controle dos soberanos que a legitimavam. A partir do século XV, com as descobertas marítimas, tais atividades deslocaram-se do mar Mediterrâneo para o oceano Atlântico. Seu apogeu deu-se nos séculos XVII e XVIII, quando a Europa passava por intensa expansão da atividade marítima. Alguns corsários conquistaram uma posição bastante influente frente a seus soberanos, caso do inglês Francis Drake, que viveu na segunda metade do século XVI. Foi nomeado vice-almirante britânico depois de anos infernizando os espanhóis em suas possessões americanas e desempenhar um papel de destaque na batalha que derrotou a até então Invencível Armada e garantindo para os ingleses a supremacia dos mares, durante o episódio, chegou a aliar-se a escravos refugiados no Panamá em uma operação que terminou na pilhagem da caravana que transportava a carga anual de ouro peruano. Muitas vezes corsários presos pelos inimigos a quem atacavam contavam com um tribunal específico para determinar se estavam a serviço de um soberano ou se agiam por interesse próprio, em busca de lucro ilegal. O corso, conquanto uma atividade reconhecida como dentro de uma ordem legal, ainda assim representava um risco para aqueles que nele atuavam, já que não havia garantias de proteção por parte dos seus soberanos, que por vezes lhes davam as costas quando o vento que orientava as alianças políticas mudava de direção. Para os governos que o realizavam, entretanto, as vantagens se apresentavam de forma clara, embora não necessariamente constante: a conquista de territórios ultramarinos, assim como o estabelecimento de rotas estáveis de comércio e navegação implicavam um investimento que nem todas as coroas conseguiriam sustentar. O corso era uma forma de auferir os lucros decorrentes da empreitada da colonização e expansão marítima, sem arcar com seus custos, e ainda desestabilizar o inimigo e potencial concorrente.

[10] NELSON, LORD HORÁTIO (1758-1805): oficial da Marinha britânica, recebeu o comando do seu primeiro navio aos 20 anos de idade. Em 1777, já como tenente, é enviado à América para lutar contra colonos rebeldes durante as guerras de independência das Treze Colônias. Retornou à Inglaterra com boa reputação devido as suas práticas inovadoras em batalhas navais, no entanto precisou afastar-se da Marinha por motivos de saúde. Com a eclosão da Revolução Francesa, Lord Nelson retornaria ao seu posto, vencendo importantes batalhas que impediram o avanço do domínio francês na Europa. Durante as guerras napoleônicas, ganhou a notoriedade que o seu nome carrega até os dias atuais, sendo considerado um herói nacional na Inglaterra. Foi morto durante a batalha de Trafalgar, contra as forças espanholas e francesas, que planejavam a invasão do Reino Unido.  Apesar da morte do vice-almirantado da Marinha Real Britânica, as forças inglesas venceram a batalha, que seria uma das suas maiores vitórias.

[11] COUTINHO, RODRIGO DE SOUZA (1755-1812): afilhado do marquês de Pombal, este estadista português exerceu diversos cargos da administração do Império luso, como o de embaixador em Turim, ministro da Marinha e Domínios Ultramarinos (1796-1801) e presidente do Real Erário (1801-3). Veio para o Brasil em 1808, quando foi nomeado secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, permanecendo no posto até 1812, quando faleceu no Rio de Janeiro. D. Rodrigo foi aluno do Colégio dos Nobres e da Universidade de Coimbra, tendo viajado pela Europa e mantido contato com iluministas como o filósofo e matemático francês Jean Le Rond d’Alembert, um dos organizadores da Encyclopédie. Considerado um homem das Luzes, destacou-se por suas medidas visando a modernização e o desenvolvimento do reino. D. Rodrigo aproximou-se da geração de 1790, vista como antecipadora do processo de Independência, e foi o principal idealizador do império luso-brasileiro, no qual a centralidade caberia ao Brasil. Sob o seu ministério, o Brasil adquiriu novos contornos com a anexação da Guiana Francesa (1809) e da Banda Oriental do Uruguai (1811). Preocupado com o desenvolvimento econômico e cultural, bem como com a defesa do território, Souza Coutinho foi um partidário da influência inglesa no Brasil, patrocinando a assinatura dos chamados “tratados desiguais” de que é exemplo o Tratado de Aliança e Comércio com a Inglaterra [ver Tratados de 1810]. Responsável pela criação da Real Academia Militar (1810), foi ainda inspetor-geral do Gabinete de História Natural e do Jardim Botânico da Ajuda; inspetor da Biblioteca Pública de Lisboa e da Junta Econômica, Administrativa e Literária da Impressão Régia; conselheiro de Estado; Grã-Cruz das Ordens de Avis e da Torre e Espada. Em 1808, o estadista recebeu o título nobiliárquico de conde de Linhares.

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