Ir direto para menu de acessibilidade.
Página inicial > Temas > Brasil > Indígenas > Comentário
Início do conteúdo da página
Índios

Comentário

Escrito por cotin | Publicado: Segunda, 05 de Fevereiro de 2018, 17h11 | Última atualização em Sexta, 03 de Agosto de 2018, 19h35

Maria Regina Celestino de Almeida
Doutora pela UNICAMP e professora do Departamento de História da UFF

Para os índios, “povos na infância, não há história: há só etnografia”, disse Varnhagen no século XIX [1]. Se essa sugestão foi, por longo tempo, bem acolhida entre os historiadores, já não se sustenta em nossos dias, quando um número cada vez maior de pesquisadores tem se voltado para o estudo das populações indígenas numa perspectiva histórica. Até muito recentemente, os índios integrados à colônia portuguesa e depois ao império brasileiro eram, grosso modo, negligenciados em nossa historiografia, apesar da farta documentação que evidencia sua significativa presença nas sociedades colonial e imperial nas mais diversas regiões do Brasil. Nas últimas décadas, as novas concepções teóricas da História e da Antropologia, que repensam e complexificam alguns conceitos básicos para o estudo das relações de contato entre os índios e as sociedades envolventes, tais como cultura e etnicidade, têm possibilitado um novo olhar dos pesquisadores sobre a documentação a respeito dos índios. Ao invés de vítimas passivas de um processo de perdas culturais sucessivas que os conduzia inevitavelmente à extinção étnica e cultural, os índios inseridos no império colonial português e, mais tarde, no império brasileiro podem ser vistos como agentes sociais ativos neste processo. Sem desconsiderar a extrema violência, os imensuráveis prejuízos e a altíssima mortalidade causados aos índios pela conquista e colonização, é possível perceber, através da documentação interpretada à luz das novas concepções interdisciplinares, que os índios foram também agentes de seu processo de metamorfose e encontraram diferentes meios de rearticular suas culturas, identidades e histórias para sobreviverem às diversas relações de contato que estabeleceram na colônia e no império. Em nossos dias, multiplicam-se os processos de etnogênese, sobretudo no nordeste, evidenciando que os índios integrados às sociedades colonial e imperial não desapareceram sem deixar rastros, como costumava ser sugerido pela historiografia. Ao invés disso, muitos lograram, em várias partes do Brasil, chegar ao século XXI, afirmando sua identidade indígena, reivindicando direitos garantidos pela Constituição de 1988 e, em alguns casos, buscando suas origens nos aldeamentos missionários do período colonial. A farta documentação sobre índios e aldeias no Brasil colonial e imperial, ainda em grande parte inédita e esparsa nos diversos arquivos e bibliotecas, sobretudo no Arquivo Nacional, já tem despertado a atenção de vários pesquisadores que repensam a história indígena. Além deste site, outras iniciativas importantes para facilitar o acesso às fontes primárias sobre índios e aldeias do Brasil têm sido realizadas. Dentre elas, cabe citar o “Guia de Fontes para História Indígena e do Indigenismo em Arquivos Brasileiros”, organizado por John M. Monteiro e “Os Índios em Arquivos do Rio de Janeiro, coordenado por José R. Bessa Freire, ambos disponíveis no Arquivo Nacional [2] . A política de aldeamentos foi um aspecto chave no projeto de colonização da Coroa Portuguesa, cuja realização contou com a colaboração da Igreja e sobretudo da Companhia de Jesus. As novas aldeias estabelecidas junto aos núcleos portugueses constituíram palco privilegiado para a inserção das populações indígenas na ordem colonial. As inúmeras disputas em torno delas evidenciadas pela documentação apontam para os diversos interesses que despertavam entre os vários segmentos sociais da Colônia. Índios, colonos, missionários e autoridades políticas locais e metropolitanas enfrentavam-se para fazer valer o cumprimento de suas expectativas quanto à formação e ao funcionamento dessas aldeias.
Do século XVI ao XIX, elas integraram o projeto de colonização e, ao longo desse tempo, adquiriram diferentes funções e significados para os índios, colonos, missionários e autoridades. Para a Coroa, integrar os índios à sociedade colonial, tornando-os aliados e súditos cristãos do rei de Portugal era essencial para expandir fronteiras e garantir a soberania dos territórios conquistados contra as investidas de invasores estrangeiros e índios hostis. Além disso, as aldeias cumpriam também a função de assegurar aos colonos, aos missionários e à Coroa a mão-de-obra indígena necessária aos mais diversos tipos de trabalho. Isso se fazia de acordo com um sistema de rodízio e pagamento irrisório estabelecido pelas diversas legislações referentes aos direitos e obrigações dos índios aldeados [3]. A Coroa e os missionários tinham, portanto, objetivos ambivalentes em relação aos índios, pois visavam torná-los súditos cristãos e força de trabalho, enquanto os colonos estavam mais diretamente interessados em tê-los como mão de obra. Apesar das dificuldades para se identificar as expectativas dos índios em relação às aldeias, dadas as lacunas das fontes, é possível perceber na documentação, sobretudo naquela referente aos conflitos, indícios suficientes para se afirmar que sua colaboração com os portugueses não se resumia, absolutamente, à submissão passiva a uma ordem colonial que não lhes dava nenhuma margem de manobra. Diante do caos e da violência da colonização, aldear-se podia significar o mal menor. Os variados registros sobre suas disputas lançam algumas luzes sobre os diferentes interesses que os impulsionavam. Requerimentos e petições feitos por eles próprios e/ou pelos padres solicitavam terras, o direito de não serem escravizados e de trabalharem para quem quisessem, cargos, aumentos de salários, ajudas de custo e destituição de autoridades não reconhecidas por eles, indicando, pelos menos, algumas das suas expectativas na condição de aldeados. Some-se a isso os vários acordos de paz e de descimentos [4] estabelecidos com os portugueses que incluíam sempre promessas de terra e proteção. Na segunda metade do século XVIII, as reformas pombalinas significaram um ponto de inflexão na política de aldeamentos da Coroa Portuguesa. A expulsão dos jesuítas e o estabelecimento do Diretório dos Índios, legislação criada em 1757, inicialmente para a Amazônia e depois estendida às demais regiões da América portuguesa, lançou as bases da política assimilacionista. A intenção era transformar as aldeias em vilas e lugares portugueses e os índios em vassalos do rei, sem distinção alguma em relação aos demais vassalos. Apesar das mudanças, o Diretório manteve, em grande parte, as diretrizes básicas do Regimento das Missões de 1686 [5] , no que diz respeito à organização do trabalho indígena e sua repartição, bem como aos direitos e obrigações dos índios aldeados.
A grande mudança foi o incentivo à miscigenação e à presença de não índios no interior das aldeias, como medidas necessárias para promover a assimilação. Apesar da presença cada vez mais intensa de brancos no interior das aldeias, incentivada pela própria lei, e das usurpações agrárias que tendiam a aumentar, suas terras e rendimentos permaneceram patrimônio coletivo dos índios, que inúmeras vezes recorreram à justiça para fazer valer seus direitos. A aplicação do Diretório nas diferentes regiões da América portuguesa variou conforme as diversas situações dos grupos indígenas e seus variados níveis de integração à sociedade colonial. Se o objetivo da lei era a assimilação, alcançá-la exigia diferentes procedimentos de acordo com as regiões e as populações com as quais se lidava: em algumas áreas efetuavam-se descimentos e estabeleciam-se novas aldeias; em outras se desencadeavam guerras; e em áreas de colonização mais antiga, pregava-se o fim das aldeias, com o argumento de que os índios já estavam civilizados e misturados à massa da população. Essas práticas podiam ocorrer concomitantemente e em regiões muito próximas, como ocorreu no Rio de Janeiro, por exemplo. No final do século XVIII e início do XIX, nas margens norte e sul do rio Paraíba, algumas aldeias se estabeleciam, enquanto nas regiões mais próximas ao núcleo da cidade do Rio de Janeiro, aldeias seculares eram transformadas em freguesias como primeiro passo para sua extinção. É instigante constatar, em algumas dessas aldeias, a resistência dos índios às tentativas de extingui-las: diversos documentos evidenciam que, após a expulsão dos jesuítas, os índios nelas permaneceram, lutando juridicamente para preservar o patrimônio que lhes fora concedido séculos antes por sua condição de aldeados. Enquanto isso, em áreas não muito distantes, outras aldeias se estabeleciam para incorporar os chamados “índios bravos”. Cabe notar que alguns particulares, ainda no século XIX, interessavam-se em assumir essa tarefa, provavelmente por verem nela amplas possibilidades de obter maior controle sobre a mão de obra indígena. Foi o caso de José Rodrigues da Cruz que, em 1800, obteve do Príncipe Regente consentimento e auxílio para seu projeto de civilização e domesticação do gentio às margens do Paraíba (AN, códice 206, folha 2v e3). Por sua iniciativa foi criada, em 1801, a aldeia de Valença que deu origem à cidade do mesmo nome [6] . Percebe-se, pois, que o estudo sobre os povos indígenas e suas relações com as sociedades envolventes na América portuguesa e no Brasil imperial deve ser regionalizado, dada a imensa diversidade de grupos indígenas e as variadas formas de colonização estabelecidas em diferentes regiões. Embora algumas leis fossem gerais, suas aplicações variaram muito, como variaram também as atuações dos índios em relação a elas. Durante o século XIX, a ausência de uma política indigenista de caráter geral - desde a extinção do Diretório, em 1798, até o Regulamento das Missões de 1845 - não impediu o predomínio da política assimilacionista, dando seqüência, às propostas iniciadas por Pombal. Ao longo do oitocentos, intensificaram-se os debates políticos e intelectuais sobre os índios, discutindo-se basicamente como integrá-los e as propostas divergiam entre as possibilidades de fazê-lo de forma branda ou violenta. O projeto de José Bonifácio, na Constituinte de 1823, que afirmava a humanidade dos índios e a necessidade de integrá-los com brandura, apesar de aprovado, não chegou à prática. A Constituição de 1824 sequer mencionou a questão indígena que se tornou competência das Assembléias Legislativas Provinciais. Não obstante, apesar das teorias discriminatórias e racistas que influenciavam o pensamento de intelectuais e políticos a proposta humanista de José Bonifácio predominou na política indigenista. As autoridades estatais e locais visavam extinguir as aldeias e incorporar suas terras, integrando os índios, sem distinção, à massa populacional, mas procuravam fazer isso dentro das regras estabelecidas pela legislação através de meios brandos e persuasivos, recomendando-se a violência para os que se recusassem a colaborar. Foi o caso dos Botocudos, contra os quais foi decretada a guerra ofensiva em Carta Régia de 1808 (AN,Códice 206, folha 50 a 51v.). Em relação aos aliados, verificavam-se alguns cuidados em cumprir a legislação. O Regulamento das Missões de 1845 decretou o direito dos índios às terras nas aldeias, considerando, no entanto, a possibilidade de extingui-las, conforme seu estado de decadência. A lei de Terras de 1850 seguiu orientação semelhante ao estabelecer para os índios o usufruto temporário das terras até que atingissem o “estado de civilização”.
Na segunda metade do século XIX a intensa correspondência oficial entre autoridades do governo central, das províncias e dos municípios é reveladora da preocupacão do Estado em obter informações sobre o estado de decadência das aldeias e o grau de civilização dos índios com o objetivo de dar cumprimento à política assimilacionista, a ser implementada conforme as situações específicas de cada região. Algumas petições dos índios para resguardar seus direitos contradiziam os discursos assimilacionistas que pregavam estarem eles misturados à massa da população. A partir de 1861, o encargo da catequese e civilização dos índios passou ao Ministério dos Negócios, Agricultura, Comércio e Obras Públicas, evidenciando que, no século XIX, a questão dos índios tornara-se, em algumas regiões, essencialmente uma questão de terras, como afirma Carneiro da Cunha [7] .
A idéia de que para os índios não há história, mas apenas etnografia já vem sendo desconstruída há, pelo menos, duas décadas. Os conjuntos documentais aqui apresentados tratam de diferentes aspectos relativos à história dos índios em várias regiões do Brasil e em tempos diversos e oferecem aos pesquisadores um rico material com inúmeras possibilidades de interpretação, questionamentos e problematizações. Refletir sobre eles, à luz de abordagens interdisciplinares e comparativas permite uma compreensão mais ampla e complexa sobre as relações de contato e, principalmente, perceber os índios como agentes sociais dos processos históricos por eles vivenciados.

Notas
[1] Francisco A. de Varnhagen. História Geral do Brasil [1854]. 3ªed. São Paulo: Melhoramentos, 1962, v.1, p.42.
[2] John M. Monteiro (org.) Guia de Fontes para a História Indígena e do Indigenismo em arquivos brasileiros. São Paulo: Companhia das Letras, 1994; J. Ribamar Bessa Freire (coord.) Os Índios em Arquivos do Rio de Janeiro. Ed. UERJ, 1995-96. 2vols.
[3] Sobre isso ver B. Perrone-Moises. “Índios Livres e Índios Escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII). In: M. Carneiro da Cunha. História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, pp.115-132, 1992.
[4] As expedições de descimento visavam transferir os índios das aldeias de origem para as novas aldeias estabelecidas sob a administração portuguesa.
[5] O Regimento das Missões, de responsabilidade do Padre Antonio Vieira, ficou em vigor até o estabelecimento do Diretório. Embora tenha sido elaborado especificamente para a Amazônia, seus princípios mais gerais eram aplicados nas demais aldeias jesuíticas da América portuguesa. Sobre isso, ver B. Perrone-Moises, op.cit. e J. Oscar Beozzo. Leis e Regimentos das Missões: política indigenista no Brasil. São Paulo: Loyola, p.38;112, 1983.
[6] Sobre isso ver: Marcelo S. Lemos. “O Índios virou pó de café? – A resistência dos índios Coroados de Valença frente à expansão cafeeira no Vale do Paraíba (1788-1836”. Rio de Janeiro:UERJ, 2004. Dissertação de Mestrado.
[7] Manuela Carneiro da Cunha. Legislação Indigenista no Século XIX- Uma Compilação (1808-1889)São Paulo, EDUSP,1992.

 

registrado em: ,,
Fim do conteúdo da página