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Festas Coloniais

Comentário

Escrito por cotin | Publicado: Segunda, 05 de Fevereiro de 2018, 17h31 | Última atualização em Sexta, 03 de Agosto de 2018, 19h56

Beatriz Catão Cruz Santos

 

“Os historiadores costumam encontrar apenas aquilo que procuram”. O comentário feliz é do historiador da arte Jorge Coli,[1] que busca explicar por que a carta de Pero Vaz de Caminha ficou encerrada durante séculos na Torre do Tombo. A carta só veio a público em 1817, na Corografia Brasílica, de Aires de Casal. A partir deste momento, o documento seria publicado inúmeras vezes transformando-se de carta do achamento em “diploma natalício lavrado à beira do berço de uma nacionalidade futura”, conforme as palavras de Capistrano de Abreu, em O descobrimento do Brasil (1883). O fato é que, desde este momento, a carta é um documento essencial da História do Brasil e, sobretudo, da historiografia brasileira.A partir de hoje, por iniciativa do Arquivo Nacional, diferentes documentos sobre festas da sociedade colonial (séculos XVI ao XIX) vão passar a circular melhor entre historiadores, antropólogos, estudantes e todos aqueles que se interessarem pelo tema.

Todavia, nem sempre este foi um tema da nossa historiografia. Pode-se tomar como marco inicial destas ocupações o trabalho realizado pelos viajantes, memorialistas, literatos e folcloristas em fins do XIX. Muitos deles buscavam os fundamentos e as especificidades da nacionalidade brasileira. Entre tantos, vale mencionar Festas e Tradições populares do Brasil (1888), de Mello Morais Filho. Memorialista para uns, folclorista para outros realizou uma obra em que é possível encontrar um relato vívido de festas religiosas, populares e tipos de rua que remontam à 1850, no Rio de Janeiro, Bahia e em Sergipe num gênero acessível, persuasivo ao historiador interessado em cultura popular. Mello Morais destacava-se na época, por associar positivamente as manifestações populares e religiosas à nacionalidade, incluindo nas nossas tradições a herança africana, a exemplo do registro da Coroação de um rei negro, em 1748. Como vários escritos do XIX, ajudaram, segundo Martha Abreu, a inventar uma das maiores tradições da cidade do Rio de Janeiro - a festa do Divino - e serviu de referência para Vieira Fazenda, Luiz Edmundo e Gilberto Freyre, autores que também se dedicaram às festas.Pode-se acrescentar a este breve histórico da investigação sobre festas os chamados estudos de comunidade dos anos 40/50. Num tempo em que as fronteiras institucionais eram menos rígidas, a contribuição de autores como Antônio Galvão, em Santos e Visagens (1955) é reveladora do interesse da Antropologia por práticas religiosas ‘tradicionais’, entre elas, as festas. Na esteira do brasilianista Charles Wagley (Uma comunidade amazônica. 1957), Galvão, como outros cientistas sociais de seu tempo, caiu na armadilha de opor rural a urbano, classificando as festas por meio das diferenças entre as freguesias e as cidades. Na primeira, haveria a religião da comunidade, que se expressa no culto aos santos. As festas de Santo exerceriam uma função integradora que tende a desaparecer num contínuo inexorável de progresso e diferenciação social. Contudo, como destaca Alba Zaluar, os estudos de comunidade realizaram “descrições completas das localidades focalizadas”[2] à diferença dos estudos folclóricos. A meu ver, cercaram comunidades e atribuíram importância às festas de Santo. Estas, herdeiras da cultura ibérica do século XVI, que junto à contribuição do índio, comporiam a religião do caboclo amazônico, para usar os seus termos. Estes estudos ficaram, por vezes, invisíveis aos historiadores ou vedados na academia, mas constituem referências fundamentais para obras, com as quais os historiadores continuam a dialogar.

Este é o caso de O messianismo no Brasil e no mundo (1965), de Maria Isaura Pereira de Queiroz, que também lida com rituais. Considerando-se num momento de sistematização da sociologia, propõe-se a buscar a lógica dos movimentos messiânicos na sociedade brasileira. A Dança de São Gonçalo do Amarante, um de seus temas desde os anos 50, se inscreve entre os “movimentos messiânicos rústicos”. É uma manifestação da “cultura rústica”, uma cultura que emergiu do encontro entre o colono, o índio e o africano nos tempos coloniais e permanece no interior do país nos anos 50. É nos anos 1970 que a historiografia descobre a festa. Para não correr o risco de simplificar demais a discussão, remeto o leitor à bibliografia selecionada sobre o assunto[3]. Na época, os fenômenos festivos passam a configurar um campo específico de interesse da nouvelle histoire, que apesar de abrigar diferentes perspectivas reafirmaram a presença da historiografia francesa entre nós. Observa-se, em termos gerais, a influência dos Annales nos estudos brasileiros, mas certamente o diálogo inclui a produção anglo-saxônica e a micro-historia italiana. A coletânea editada por Jean Jacquot[4] é apenas um indício do crescente número de pesquisadores interessados em festa, cujos estudos ganham em escala e diversidade nos anos 80. No registro do inventário, a publicação de Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa (2001), resultante do seminário ocorrido na década de 90 na Universidade de São Paulo, é hoje uma das principais referências da historiografia em produção no Brasil sobre o tema na sociedade colonial.

Depois destas pinceladas históricas sobre os estudos, vamos às festas na sociedade colonial. Em artigo da Gazeta de Notícias (1881), Capistrano de Abreu, diferenciando-se daquele que fora seu mestre e um dos pais da historiografia da Nação, reconhece a importância das festividades do período colonial, numa passagem irresistível:“Quem lê uma história do Brasil, mesmo a melhor que é a de Varnhagen, não pode suspeitar a importância de um fato que todos os historiadores omitem: os festejos. E entretanto nada há mais freqüente, mais típico, o mais notável durante todo o período de nossa dependência”. O Brasil naquele tempo era uma festa quase interrompida.”[5] A partir da observação, Capistrano identifica os inúmeros motivos geradores de festa: dias santos, acontecimentos relacionados à família real, chegadas de governadores e bispos, e ainda ensaia uma classificação, ao assinalar os festejos de “caráter particular”, como batizados, aniversários e benzimentos de engenhos. Contudo, reconhece que historiadores omitem e estão para estudar o significados das festividades.

Entre as hipóteses arroladas por Capistrano, cuja formação se confunde com a gestação de uma História do Brasil estaria uma “sociabilidade instável e imperfeita”. Curiosa observação! Certamente, não vamos compreendê-la por inteiro, mas ela pode ser relacionada à precária vida civil dos membros da sociedade colonial. Colonos, colonizados e colonizadores estavam em graus diversos constrangidos às instituições (Igreja/ Monarquia), normas e valores do Antigo Regime.A historiografia mais recente também identifica a recorrência das festas no período colonial, inclusive pelo número feriados que em muito ultrapassam os do nosso calendário. Porém, reconhece que mesmo os rituais motivados pelas autoridades coloniais, proprietários e padres são tomados por outros agentes como ocasião de divertimento, exercício de liberdade, acesso à distinções e dignidades numa sociedade hierárquica e escravista.Este é o caso da festa e procissão do Corpo de Deus na América portuguesa, cerimônia religiosa apropriada pela Monarquia portuguesa, cuja organização mais geral cabia às Câmaras. No entanto, engana-se aquele que nela veja tão somente uma festa da Câmara, dos cidadãos, pois estava sujeita a intervenções da Igreja, irmandades e ofícios.

No século XVIII, o Corpo de Deus era uma das cerimônias mais solenes e célebres do reino português, mas continha aspectos ‘populares’ fornecidos pelos ofícios, como as figuras, danças, gigantes e representações.Pelo dito e por meio de uma consulta aos documentos sobre festas, que ora o Arquivo Nacional expõe através da base de dados Roteiro de fontes do Arquivo Nacional para a história luso-brasileira tem-se uma amostra da variedade de festas na sociedade colonial. Há aquelas relacionadas à família real como casamentos, batismos, aniversários, funerais e até pela notícia do “feliz parto da princesa Nossa Senhora”, que é celebrado com luminárias e “Te Deum” pelo Senado do Rio de Janeiro, em 1800. Há diversas cerimônias que através do calendário religioso, tornam-se dos súditos da Monarquia, como Corpus Christi e Semana Santa. Há registros de festas realizadas por irmandades, como a Festa e o Círio de Nossa Senhora da Penha, de 1819-20 Neles, se evidencia a preocupação das autoridades da Corte em ordenar o “arraial”, que reunia “imenso povo”. Assim como festas que reafirmariam a união do reino português, sob a égide da monarquia, como as aclamações, a posse de um vice-rei e a comemoração pela restituição de Pernambuco organizada pela Câmara de Parati, em 1817.

Enfim, pode-se dizer que as festas na sociedade colonial escapam às tipologias e às classificações, como aquela que opõe festas oficiais às populares ou civis às religiosas. E que os ‘novos’ documentos sejam um convite a interpretações atualizadas das festas!

 

 

[1] COLI, Jorge.“Primeira Missa e Invenção da Descoberta”. in: NOVAES, Adauto. (Org.) A Descoberta do Homem e do Mundo.São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

[2] ZALUAR, Alba. Os homens de Deus, um estudo dos santos e das festas no catolicismo popular. Rio de Janeiro: Zahar, 1983

[3] JANCSÓ, István; KANTOR, Íris (org). “Falando de festas”. in: Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa. São Paulo: Hucitec/Edusp/Fapesp/Imprensa Oficial, 2001. 2 v; SILVA, Maria Manuela de Souza e. “A historiografia descobre a “festa” in: Hélade, 1 (1), 2000. p. 38-52.

[4] JACQUOT, Jean. Les fêtes de la Renaissaince. Paris, CNRS, 1975. 3v.

[5] ABREU, Capistrano de. Ensaios e Estudos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1976.

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