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Vida Privada

Comentário

Escrito por cotin | Publicado: Segunda, 05 de Fevereiro de 2018, 17h36 | Última atualização em Sexta, 03 de Agosto de 2018, 20h05

Maria Beatriz Nizza da Silva

 

A documentação do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro é muito rica de informações sobre a vida privada na sociedade colonial, como já mostraram alguns artigos publicados na revista Acervo. Alguns fundos são mais informativos do que outros, nos quais só acidentalmente surgem dados sobre família, vida conjugal, heranças, etc., sendo de salientar em primeiro lugar a documentação do Desembargo do Paço, a partir do momento em que esta instituição foi criada na Corte do Rio de Janeiro; a série dos inventários, na qual muitas vezes são anexos os testamentos; os livros de notas dos tabeliães do Rio de Janeiro com as escrituras mais relevantes para a vida familiar, como escrituras de dote, de doação, de perfilhação, etc., e também testamentos; o fundo Polícia da Corte, na medida em que o intendente geral tinha autoridade para interferir na vida familiar; a documentação da Real Junta do Comércio, sobretudo no que se refere à administração dos bens dos negociantes falecidos; a Relação do Rio de Janeiro, a partir de 1808 a Casa de Suplicação, fornece ainda elementos importantes sobre conflitos familiares.

Há fundos que se referem a todo o período colonial, como a série inventários post-mortem; outros, somente depois de determinados anos, como a Relação, a partir de 1753, e o Desembargo do Paço, Real Junta do Comércio, e Intendência Geral da Polícia, desde 1808. Quanto à dimensão geográfica da documentação, certos temas como níveis de fortuna e estilo de vida dos coloniais só podem ser abordados com profundidade em relação à capitania do Rio de Janeiro; outros permitem uma visão ampla do Brasil colonial, como, por exemplo, os crimes contra as mulheres e contra a família que surgem na documentação do Desembargo do Paço.

Para quem pesquisa a vida privada no período colonial é necessário complementar a leitura dos códices com a da documentação formada por avulsos que, em geral, fornece maior número de informações sobre as questões em análise. Assim, por exemplo, o pesquisador precisa de ver todas as caixas referentes a tutelas, emancipações, legitimações, à instituição de vínculos (capelas e morgados), a doações, se quiser aprofundar as relações familiares e patrimoniais.

Vejamos agora um pouco mais detalhadamente as temáticas que podem ser trabalhadas com esta documentação do Desembargo do Paço. Na sociedade colonial a morte do pai dava ocasião à escolha de um tutor para os filhos que eram considerados órfãos, mesmo que a mãe estivesse viva. Se esta quisesse assumir a tutoria e o marido não a tivesse nomeado como tal em seu testamento, ela tinha de encaminhar uma petição ao Desembargo do Paço. Se fosse considerada uma viúva honesta e recolhida, capaz de gerir os bens dos órfãos, a tutoria era-lhe concedida. São esses os documentos referentes às tutelas.

Quanto às emancipações, estas eram pedidas por filhos e filhas menores de 25 anos que pretendiam receber suas heranças ou tornarem-se independentes em atividades mercantis. As provisões de suplemento de idade eram passadas pela Mesa do Desembargo do Paço às filhas depois de completados os 18 anos e aos filhos depois dos 20. As caixas do Arquivo Nacional que contêm as petições para emancipação referem-se praticamente a todo o Brasil, embora com maior incidência de indivíduos morando na cidade do Rio de Janeiro e seu termo.

A documentação sobre legitimações também é abundante pois ao Desembargo do Paço competia passar cartas de legitimação no caso de os filhos ilegítimos serem adulterinos ou sacrílegos (filhos de eclesiásticos) ou quando se tratava de filhos naturais de pais nobres. Estas petições eram encaminhadas pelo pai em geral, mas algumas mães também o fizeram, ainda em vida, ou então pelos filhos depois da morte dos progenitores. Eram ouvidas testemunhas e os desembargadores procuravam também saber se os parentes até o 4º grau estavam de acordo com a legitimação.

As doações de bens acima de um determinado valor precisavam de confirmação régia, a fim de se verificar se os parentes do beneficiado não se sentiam prejudicados com as doações feitas em vida do doador, que assim pretendia expressar sua amizade ou sua preferência por um determinado familiar. Esta documentação permite-nos apreender as relações entre os familiares e também entre padrinhos e afilhados, descrevendo, por vezes, situações relevantes para a compreensão dos sentimentos.

Ao Desembargo do Paço pertencem ainda os pedidos de vinculação de bens de raiz (morgados) ou de desvinculação de capelas instituídas antes da legislação sobre o assunto no reinado de d. José I, embora deva ser também referido um códice, o 601, só sobre o morgado de Marapicu na capitania do Rio de Janeiro. Para a instituição de um morgado a lei de 1770 exigia um inventário e a avaliação dos bens a serem vinculados e também a indicação do rendimento anual desses bens para, em função dessas informações, e ainda da qualidade nobre do instituidor, ser passada a licença régia para tal instituição. Esta documentação revela as aspirações à nobreza de indivíduos em vários pontos do território brasileiro, pois o sistema de primogenitura na herança era característico dos nobres.

Como nos primeiros séculos de colonização se vincularam em capelas muitos bens de raiz para que fossem ditas missas pela alma dos instituidores “até o fim do mundo”, a partir de uma lei de 1769, que exigia para as capelas um rendimento anual de 100$000, surgiram muitos pedidos de abolição de capelas. A religiosidade da população tinha diminuído nos fins do período colonial e a documentação do Desembargo do Paço atesta o desejo de acabar com esses encargos pios. A lei de 1769 liquidou efetivamente uma prática vigente durante séculos e canalizou para os familiares bens que anteriormente iam beneficiar os eclesiásticos com o pagamento de missas.

Na Mesa do Desembargo do Paço se discutiam as petições de perdão ou de comutação de penas, em geral de degredo, para muitos crimes contra as mulheres e as famílias, como rapto e sedução, rapto e estupro, adultério, mortes de cônjuges, etc., para que em seguida o governante tomasse sua decisão sobre elas. Petições e pareceres revelam o grau de conflito entre os casais e a defesa da honra das filhas, ao mesmo tempo em que apontam para atitudes diferentes dos magistrados em relação aos homens e às mulheres. Estes conflitos podem, igualmente, ser estudados através da documentação da Relação do Rio de Janeiro, que em 1808 passou a Casa da Suplicação com a chegada da Corte, e ainda através dos códices e caixas da Intendência Geral da Polícia.

Como a Relação já foi objeto de estudo, menciono aqui apenas a importância do intendente geral da Polícia como árbitro nos conflitos conjugais, quer mediante a assinatura de termos de bem viver por parte do cônjuge agressor ou mal comportado, quer mediante a reclusão punitiva em recolhimentos e conventos daquelas mulheres cujos padrões de comportamento fugiam ao prescrito na sociedade colonial.

Enquanto estes fundos documentais nos elucidam sobre a vida familiar e conjugal, a longa série de inventários de indivíduos que deixavam filhos menores nos abre uma ampla perspectiva sobre as suas posses e estilo de vida. Nos inventários são listados todos os bens: bens de raiz, prata, peças de vestuário, móveis, objetos de uso cotidiano, instrumentos de trabalho, livros, imagens religiosas, armas, cavalos, gado, selas, escravos. Ocasionalmente algum dinheiro era mencionado. Tudo era sumariamente descrito e avaliado pelo concelho a fim de permitir a partilha entre os filhos da meação do cônjuge morto, separando-se sempre a terça com que ele podia satisfazer seus desejos mais pessoais, como, por exemplo, beneficiar um parente ou um afilhado, ou então determinar alguns encargos pios tendo em vista a salvação de sua alma. Por vezes o testamento era anexado ao inventário para que se conhecessem as determinações quanto ao enterro, missas por alma, esmolas.

Complementando esta abundante série documental, os testamentos registrados nas notas dos tabeliães abrangem uma população maior na medida em que todos, ricos e pobres, redigiam suas últimas vontades, fossem casados ou solteiros, com filhos ou sem filhos, enquanto os inventários englobam apenas os que tinham filhos menores. Ora, os livros de notas dos tabeliães do Rio de Janeiro encontram-se à disposição dos pesquisadores no Arquivo Nacional.

Neste universo de testadores e inventariados há que ressaltar os negociantes, pois em relação a este grupo sócio-profissional o processo de transmissão da herança não era tão simples quanto o dos demais grupos, implicando desde o reinado de d. José a interferência da Real Junta de Comércio, no Brasil representada pelas mesas de Inspeção nas várias capitanias. A partir de 1808, a instituição existe no Rio de Janeiro e a documentação referente à administração dos bens dos negociantes falecidos revela como os sócios e os credores se antecipavam ao processo sucessório dos familiares. Havia que primeiro satisfazer todas as dívidas mercantis, fazer a divisão dos bens entre os sócios e, só depois, viúvas e filhos entravam no processo. Os documentos da Real Junta do Comércio do Rio de Janeiro são imprescindíveis para o estudo das famílias dos negociantes nela matriculados.

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