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Vida Privada

Sala de aula

Escrito por cotin | Publicado: Segunda, 05 de Fevereiro de 2018, 17h37 | Última atualização em Segunda, 05 de Fevereiro de 2018, 17h37

Inventário de Manoel Gomes da Cunha

O documento apresentado é um inventário post-mortem, um indício da vida privada na América portuguesa. Enfocando o tema do ponto de vista material, traz a descrição de objetos comumente utilizados no período, como os utensílios de cozinha, objetos em ouro, móveis e ferramentas. Relaciona, ainda, com a avaliação correspondente, os escravos, acompanhados de idade e ofício.

Conjunto documental: Manuel Gomes da Cunha
Notação: caixa 3671, proc. 9
Data-limite: 1815-1817
Título do fundo: Inventários
Código do fundo: 3J
Argumento de pesquisa: inventários
Data do documento: 20 de novembro 1816
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): 8 a 19v

"Traslado da avaliações dos bens do inventário do falecido Manoel Gomes da Cunha de que é inventariante e testamenteiro, Francisco Gomes da Cunha.

 Avaliação de escravos

Pedro, mugimbi, que parece ter 49 anos, é de serviço de roça, avaliado em setenta mil quatrocentos réis. 70$400.

Domingos, congo[1], que parece ter 30 anos disse ser remador de barco e tem na perna direita uma chaga por ter quebrado a mesma de que ainda se acha na convalescência, avaliado em cinqüenta e um mil e duzentos réis. 51$200.

Manoel, benguela[2], que parece ter 38 anos disse ser oficial de sapateiro avaliado em cento e quarenta e oito mil réis. 148$000. ...

Pedrinho rebolo de idade de vinte e seis anos avaliaram em cento e quinze mil e duzentos réis. 115$200.

Bebiana cabra[3] de idade de vinte e cinco anos bordadeira e engomadeira avaliaram em duzentos e cinqüenta e seis mil réis. 256$000.

Guido filho da dita Bebiana mulato de idade de quatro anos avaliaram em vinte e cinco mil e seiscentos réis. 25$600. ...

Corte do Reino do Brasil, oito de maio de mil oitocentos e dezesseis. Joaquim José Pereira do Amaral. Alexandre Pereira da Silva Xavier.

 

Casas

Uma morada de casas na mesma fazenda formadas sobre paredes de pedra e cal e pilares de tijolo com frontais de adobes[4] com onze quartos uma varanda na frente duas salas no centro com um quarto forrado de tábua avaliado em dois contos e oitocentos mil réis. 2:800$000.

Uma casa de fazer farinha coberta de telha e formada sobre pilares de tijolo e baldrames[5] de pedra em que tem também um armazém avaliaram tudo em quatrocentos mil réis.400$000.

 

Avaliação dos relógios

José da Costa e Araújo relojoeiro de Sua Majestade a Rainha Nossa Senhora[6] e avaliador pelo Senado da Câmara[7] desta corte. Certifico que foram apresentados dois relógios pelo inventariante[8] e testamenteiro[9] Francisco Gomes da Cunha a saber um relógio de pedras autor Rei. Mirol Agenove número 1,153 achei valer no estado em que estava seis mil e quatrocentos réis (6$400).

Mais um dito de três caixas duas de prata e uma de tartaruga autor Gout. London, número 23.754 achei valer no estado em que estava seis mil quatrocentos réis (6$400). Soma doze mil oitocentos réis. (12$800) Pertencentes aos bens do falecido Manoel Gomes da Cunha e por verdade passei a presente. Rio de Janeiro, vinte de novembro de mil oitocentos e dezesseis. Desta, seiscentos e quarenta réis ($ 640) pagou. José da Costa Araújo.

 

Móveis e ferramentas de cobre

Onze enxadas velhas. 2$500

Dois facões.1$280

Doze foices. $640

Doze cavadeiras. $320

Uma corrente de prender negros. 4$000

Uma foice de limpar laranjeiras.$160

Um caldeirão de cobre. 2$800

Uma bacia de cobre. 1$600

Um braço de balança grande. 4$000

Uma roda de ralar mandioca e seus pertences. 12$800

Uma prensa de dois fusos. 9$000

Dois caixões de açúcar velhos. 1$280

Um berço. 2$000

Dezoito tábuas de canela maracanaíba19$200

Uma mesa velha. $480

Uma mesa de jantar com duas gavetas. 2$000

Uma mesa de jantar sem gavetas. 8$000

Um banco velho. $800

Uma mesa de jacarandá com assento de couro. 12$000

Cinco camas de madeira branca antigas. 8$000

Um oratório[10] pequeno de madeira branca velha com quatro gavetas. 3$200 ...

 

Avaliação dos trastes de casa

Uma cômoda de jacarandá usada. 12$800

Dois cabides.$640

Uma pipa de ter água já velha. 1$280

Um baú coberto de couro usado.3$200

Uma mesa redonda de abas usadas.$800

Uma cama de jacarandá armação lisa com três estribos já usada.25$600

 

Avaliação dos prédios rústicos

Uma data[11] de terras na freguesia de São Nicolau de Suruí com quatrocentos e vinte e quatro e meia braça[12] de testada[13] com setecentos de sertão fazendo testada no rio Suruí  e o ... intestar com terras da religião de Nossa Senhora do Carmo e parem pelo lado de baixo com terras do Sargento mor Antônio Tavares do Amaral e pelo de cima com terras de João Cardoso avaliaram cada braça a dezesseis mil réis(16$000) que importam seis contos oitocentos e vinte e quatro mil réis.6:824$000. ...

 

Benfeitorias

Três bananais nas terras curtas. 153$000

 Catorze pés de cambucazeiros. 28$000

 Cinco jabuticabeiras.5$000

 Nove enxertos de turanjas.4$500

 Cem pés de cafés.6$000 ...

 

Avaliação de casas

Uma morada da casa cuja tem de vão vinte palmos[14] e meio e de fundo, cento e um e de quintal cinqüenta e nove ... formação na frente pedra e ... com dois portais de madeira e suas rótulas as paredes dois lados pilares de tijolos frontal do mesmo, e adobes e do mesmo a s suas divisões assoalhada a salsa e duas alcovas[15] ladrilhadas de tijolo varanda corredor, e dispensa, a cozinha calçada de pedra, sua área calçada da mesma, o quintal murado de pedra, paredes dobradas de adobes, lhe damos o valor de oitocentos mil réis.800$000....

 

Avaliação de prata

Uma cama da índia ... com ponteiro de prata. 6$400

Um par de fivelas de sapatos pesam doze oitavas a cem réis cada. 6$400

Uma boceta[16] de tabaco ouvada que pesa um marco e vinte e quatro oitavas a cem réis cada.2$450

Dez colheres de chá. 5$450

Uma faca e garfo de trinchar. 6$9000

Onze facas com cabos de prata que vale cada um a mil e seiscentos réis(1$600).17$600

Doze colheres e dez garfos e colher de arroz. 43$900

 

Avaliação de cobre

Um urinol de cobre três libras e meia a cento e sessenta réis. $560

Uma bacia de fazer pão-de-ló três libras a duzentos réis. $600

Um ferro de engomar. $500

Um castiçal quebrado.$480

Um taxo pequeno. $560

 

Avaliação do ouro

Um rosário de contas de vidro roxo em cordão de ouro, com borracha e laço de filagrama do mesmo. 14$000

Sei pares de botões de ouro lavrados para pulsos pesam nove oitavas e vinte grãos. 13$000

Um cordão com quatro palmos e uma figuinha[17] tudo de ouro.12$700

Uma imagem de Nossa Senhora da Conceição de ouro1$400

Uma cruz de madre pérola quebrada.5$600

Um par de pulseiras antigas com sessenta e quatro diamantes rosas e duas crisólitas18 .6$000

Um jogo de botões antigos de quatro topázios e fundo lavrados de ouro valem seis mil réis. 6$000

Um par de pulseiras antigas de crisólitas valem dois mil réis. 2$000"

 

[1] ESCRAVO DE NAÇÃO CONGO: termo “escravo de nação” não necessariamente indica a etnia ou nação ou a precisa procedência geográfica dos cativos africanos. Na maior parte das vezes indica o lugar de embarque ou de aprisionamento do negro africanos que foi escravizado. Segundo o costume do tráfico, qualquer cativo exportado pelos mercados ligados à rede comercial do rio Zaire era considerado um congo. Logo, os escravos vindos desta região pertenciam a variados grupos étnicos. Na cidade do Rio de Janeiro, os congos eram considerados escravos com grande habilidade na agricultura, nos ofícios da arte e no trabalho doméstico. Destacava-se no grupo o costume de preservar suas tradições, celebrando o antigo reino do Congo em suas canções e coroando seus próprios reis e rainhas.

[2] ESCRAVO DE NAÇÃO BENGUELA: termo “escravo de nação” não necessariamente indica a etnia ou nação ou a precisa procedência geográfica dos cativos africanos. Na maior parte das vezes indica o lugar de embarque ou de aprisionamento do negro africanos que foi escravizado. No caso do escravo de nação Benguela, indica o cativo da região centro-oeste atlântica africana, proveniente ou que somente embarcou em Benguela, porto na região central do litoral de Angola por onde veio a maioria dos cativos da região em direção ao Rio de Janeiro. Com a entrada maciça de “benguelas” na futura capital da colônia, já no início do século XVII, estes constituíam o maior grupo étnico no Rio de Janeiro em meados do século XIX.

[3] CABRA: termo amplamente utilizado no Brasil, cabe observar, no entanto, uma dificuldade na delimitação dos sentidos e uma grande variação de significados entre os séculos XVI e XIX. No início do processo de colonização, no século XVI, “cabra” era usado de forma pejorativa para qualificar os índios, passando a designar os filhos nascidos da mescla entre índios e africanos. Com o tempo, serviu como qualificativo de mestiçagens, entre índios e negros, mulatos e negros, negros e brancos. A partir do século XVIII, passa a referenciar também os aspectos cromáticos dos negros escravos, tendo como fio condutor para essa categorização a sua condição social e/ou a subjetividade dos escrivães, religiosos, entre outros, responsáveis por esses atos em documentos eivados de fé pública. À medida que os escravos se tornavam nacionais, os senhores mudavam a maneira de classificá-los. Pretos pardos, caboclos e cabras se configuraram como designações mais específicas de cativos. Os africanos eram designados pelo local de origem, e os nascidos no Brasil pelo tom da pele. O termo ‘cabra’ designava, assim, os cativos de raça mista, provenientes de outras misturas. O cativo pertencente a essa categoria apresentava uma tez tipicamente mais escura que os outros, pois era “mestiço de mulato e negro”. Embora a principal característica de “cabra” não se refira a uma classificação social, uma vez que não apenas os negros escravos recebiam essa denominação, é possível dizer que serem caracterizadas como tal trazia implicações sociais para a vida dessas pessoas, impedindo-as de se tornarem seres civilizados e aproximando-as da escravidão.

[4] ADOBE: palavra de origem árabe, assimilada pelo espanhol e transmitida às Américas, significa tijolos de terra crua. Sua produção consiste numa mistura de terra e água, à qual se adiciona palhas ou fibras para evitar rachaduras nos tijolos durante o período de cura (secagem). Os tijolos são colocados em moldes retangulares e o período de cura é dado ao ar livre, durando cerca de 30 dias, levando-se em consideração as condições climáticas. O adobe chega ao Brasil com os portugueses, no período colonial, quando os materiais para construção de moradias eram precários. Sua utilização teve predominância nos engenhos e cidades rurais.

[5] BALDRAMES: vigas de madeira usadas para dar apoio às paredes das casas de pau-a-pique ou seus assoalhos.

[6] MARIA I, D. (1734-1816): Maria da Glória Francisca Isabel Josefa Antônia Gertrudes Rita Joana, rainha de Portugal, sucedeu a seu pai, d. José I, no trono português em 1777. O reinado mariano, época chamada de Viradeira, foi marcado pela destituição e exílio do marquês de Pombal, muito embora se tenha dado continuidade à política regalista e laicizante da governação anterior. Externamente, foi assinalado pelos conflitos com os espanhóis nas terras americanas, resultando na perda da ilha de Santa Catarina e da colônia do Sacramento, e pela assinatura dos Tratados de Santo Ildefonso (1777) e do Pardo (1778), encerrando esta querela na América, ao ceder a região dos Sete Povos das Missões para a Espanha em troca da devolução de Santa Catarina e do Rio Grande. Este período caracterizou-se por uma maior abertura de Portugal à Ilustração, quando foi criada a Academia Real das Ciências de Lisboa, e por um incentivo ao pragmatismo inspirado nas ideias fisiocráticas — o uso das ciências para adiantamento da agricultura e da indústria de Portugal. Essa nova postura representou, ainda, um refluxo nas atividades manufatureiras no Brasil, para desenvolvimento das mesmas em Portugal, e um maior controle no comércio colonial, pelo incentivo da produção agrícola na colônia. Deste modo, o reinado de d. Maria I, ao tentar promover uma modernização do Estado, impeliu o início da crise do Antigo Sistema Colonial, e não por acaso, foi durante este período que a Conjuração Mineira (1789) ocorreu, e foi sufocada, evidenciando a necessidade de uma mudança de atitude frente a colônia. Diante do agravamento dos problemas mentais da rainha e de sua consequente impossibilidade de reger o Império português, d. João tornou-se príncipe regente de Portugal e seus domínios em 1792, obtendo o título de d. João VI com a morte da sua mãe no Brasil em 1816, quando termina oficialmente o reinado mariano.

[7] CÂMARA MUNICIPAL: peças fundamentais da administração colonial, as câmaras municipais representam o poder local das vilas. Foram criadas em função da necessidade de a Coroa portuguesa controlar e organizar as cidades e vilas que se desenvolviam no Brasil. Por intermédio das câmaras municipais, as cidades se constituíam como cenário e veículo de interlocução com a metrópole nos espaços das relações políticas. Do ponto de vista da administração municipal e da gestão política, foram, durante muitos anos, a única instituição responsável pelo tratamento das questões locais. Desempenhavam desde funções executivas até policiais, em que se destacam resolução de problemas locais de ordem econômica, política e administrativa; gerenciamento dos gastos e rendas da administração pública; promoção de ações judiciais; construção de obras públicas necessárias ao desenvolvimento municipal a exemplo de pontes, ruas, estradas, prédios públicos, etc; criação de regras para o funcionamento do comércio local; conservação dos bens públicos e limpeza urbana. As câmaras municipais eram formadas por três ou quatro vereadores (homens bons), um procurador, dois fiscais (almotacéis), um tesoureiro e um escrivão, sendo presidida por um juiz de fora, ou ordinário empossado pela Coroa. Somente aos homens bons, pessoas influentes, em sua grande maioria proprietários de terras, integrantes da elite colonial, era creditado o direito de se elegerem e votarem para os cargos disponíveis nas câmaras municipais.

[8] INVENTARIANTE: pessoa encarregada de registrar com pormenores todos os bens pertencentes à pessoa falecida, arrolando, administrando e partilhando sua herança.

[9] TESTAMENTEIRO: pessoa indicada pelo testador, incumbida de fazer ou mandar cumprir o seu testamento.

[10] ORATÓRIO: originalmente concebido na Idade média, os pequenos oratórios eram especialmente confeccionados para as reflexões e orações dos reis. Posteriormente, passaram a ser utilizados por associações religiosas leigas e famílias mais abastadas, que desejavam possuir seus próprios altares. No Brasil, estas capelas domésticas compuseram o mobiliário das fazendas, senzalas e residências, demonstrando a importância da religião católica na colonização.

[11] DATA: antiga medida agrária equivalente a 1.250 m2, foi largamente utilizada para repartição e distribuição das terras para exploração a partir do século XVII, durante o período do ouro. Pelo Regimento das Minas de Ouro, de 19de abril de1702, a concessão das datas, a cargo do guarda-mor, era proporcional ao número de escravos de cada indivíduo, o que induzia o mineiro a concentrar seus recursos em mais braços, representando para a Coroa maior potencial tributário, em termos de quintos, e mais receita, na forma de taxas sobre os escravos enviados às minas. O Regimento impedia a venda de datas e exigia o início da exploração no prazo máximo de quarenta dias, sob o risco de perda do direito à concessão, exceto em alguns casos especificados - problemas de saúde, falta de alimentos, distância ou invernada. Ao receber uma data, o minerador ficava automaticamente impedido de pleitear outras áreas até realizar a lavra da primeira. A data da Coroa devia ser colocada em leilão público. Caso não surgissem lances compensadores, cabia explorá-la diretamente por conta da Fazenda Real, "para o que puxará pelos índios que lhe forem necessários, e lhes pagará pela minha fazenda o mesmo que costumam pagar os particulares quando os servem (…)". (O Governo dos outros: imaginários políticos no Império português)

[12] MEIA BRAÇA: antiga unidade de medida equivalente a dez palmos, ou seja, 2,2cm. Cada palmo vale 22 cm.

[13] TESTADA: parte da rua ou de uma estrada que fica à frente de um imóvel. É uma linha que separa uma propriedade particular de um logradouro público.

[14] PALMOS: medida antiga que ia do polegar ao dedo mínimo equivalente a oito polegadas ou 22 centímetros.

[15] ALCOVAS: pequeno quarto de dormir sem janelas, em que dificilmente havia a penetração da luz do dia.

[16] BOCETA: caixinha redonda, oval ou alongada destinada a guardar fumo ou rapé e pequenos objetos como jóias e moedas. Não raro constam arroladas em inventários bocetas de prata, parte integrante do vestuário masculino para a guarda de tabaco.

[17] FIGUINHA: amuleto de origem europeia, seu nome é devido à árvore figueira de cuja madeira as figas seriam feitas. A representação de uma mão fechada com o dedo polegar entre os dedos indicador e médio é associada à proteção contra doenças, feitiços e o mal olhado. Considera-se que tenha vindo para a América portuguesa trazida pelos colonizadores e afinal incorporada à cultura afro-brasileira. No Brasil as figas são relacionadas nos inventários post-mortem junto com outros amuletos, medalhas, feitios de santos. As figas estavam presentes "tanto no repertório das mulheres brancas, quanto em posse das pretas, crioulas e mestiças, e poderiam ter sido utilizadas todas de uma vez em uma única peça, em pencas", segundo Luiz Ozanan (A joia mais preciosa do Brasil: joalheria na comarca do Rio da Velhas. 1735 – 1815. Belo Horizonte: EdUEMG,2017).

Sugestões de uso em sala de aula:

Utilização(ões) possível(is):

- No eixo temático sobre a “História das relações sociais da cultura e do trabalho”.
- No eixo temático sobre a “História das representações e das relações de poder”.


Ao tratar dos seguintes conteúdos:

- Práticas e costumes coloniais
- A economia colonial
- A sociedade colonial: cotidiano e cultura
- O Rio de Janeiro colonial

Inventário de Manoel da Rocha Vieira

 A descrição detalhada das casas, de escravos com seus locais de origem, idade, profissão e preço, de utensílios em madeira, ouro, prata, cobre e latão são alguns exemplos do que encontramos nos inventários, fonte de pesquisa que permite a observação de um momento da vida material e cotidiana dos indivíduos.

 

Conjunto documental: Manuel da Rocha Vieira
Notação: maço 308, proc. 5622
Data-limite: 1800-1800
Título do fundo: Inventários
Código do fundo: 3J
Argumento de pesquisa: inventários
Data do documento: 30 de julho de 1800
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): -

"Casas
Uma morada de casas na rua dos Barbonos fazendo canto para a rua das Mangueiras cuja as benfeitorias de um sítio na Lagoa de Rodrigo de Freitas[1] que são as seguintes:
Uma casa sic formada sobre esteios com paredes de pau a pique coberta de telha que tem de frente trinta e seis palmos e meio e fundos cinqüenta e três e meio avaliada em cento e vinte oito mil réis – 128$000
Quatro paredes e pelo outro lado outra senzala[2] e casa de fazer farinha, tudo coberto de sapê com paredes de pau a pique e esteios de madeira avaliada em quatro mil réis – 4$000
... pequenas estrebarias cobertas de sapê com paredes de pau a pique, esteios de madeira avaliados em nove mil e seiscentos réis – 9$600

Traste de Madeira
Um pequeno paiol[3] avaliada em dois mil réis – 2$000
Seis caixões que servem de despejo[4]  avaliadas em nove mil seiscentos réis – 9$600
Dois pilões avaliadas em mil e seiscentos réis – 1$600
Cinco gamelas[5]  de animais avaliadas  em mil e seiscentos réis – 1$600
Uma serra braçal velha avaliada em ....
Um arado velho e grande avaliada em mil e seiscentos  réis – 1$600
Uma frasqueira[6]   usada avaliada em quatrocentos e oitenta réis - $480
Um catre[7] de chão liso avaliada em mil e seiscentos réis – 1$600
Uma mesa de pés retocado avaliada em novecentos réis - $ 900
 
Ferramentas
Dezoito foices a cento e quarenta réis, importam em dois mil e quinhentos e sessenta réis – 2$560
Onze machados a trezentos e sessenta réis, importam em três mil novecentos e sessenta réis – 3$960
Uma balança avaliada em mil réis – 1$000
Três panelas que pesaram cinqüenta libras[8]  a sessenta réis, importam três mil réis – 3$000
Seis peças de ferramentas e uma balança que tudo pesou quarenta e uma libra a cem réis, importam em quatro mil réis – 4$000

Benfeitorias de Terras da Chácara na Lagoa Rodrigo de Freitas
Novecentos e sessenta e um pés de laranjeiras umas por outras a duzentos réis importam em cento e noventa e quatro mil e duzentos réis – 194$200
Trinta e oito pés de macieiras umas por outras a cento e sessenta réis, importam em seis mil e oitenta réis – 6$080
Seis mil pés de café[9]  uns por outro a cem réis importam em seiscentos mil réis – 600$000
Por todos os bananais que se acham na dita chácara cem mil réis – 100$000

Gado Vacum
Duas vacas a seis mil réis cada uma importam em doze mil réis – 12$000
Um touro avaliado em quatro mil réis – 4$000
Um cavalo castanho selado e sic avaliado em vinte mil réis – 20$000

Escravos[10]
Miguel Benguela[11] que pareceu ter sessenta anos de serviço de roça avaliado em duzentos e um mil réis – 201$000
Joana Rebola[12], mulher do dito que pareceu ter quarenta e cinco anos do dito serviço avaliada em setenta e seis mil e oitocentos – 76$800
Rita Crioula[13]  filha que pareceu ter vinte e cinco anos do dito serviço, avaliada em setenta e seis mil e oitocentos réis – 76$800
Agostinho Crioulo, irmão da dita que pareceu ter 16 anos do dito serviço avaliada em cento e dois mil e quatrocentos réis – 102$400
Francisca Crioula, irmã que pareceu ter doze anos do dito serviço e de casa avaliada em noventa mil réis – 90$000
Albano Crioulo, irmão que pareceu ter oito anos, avaliada em cinqüenta e um mil e duzentos réis – 51$200
Refina Crioula, irmã que pareceu ter cinco anos, avaliada em trinta e oito mil e quatrocentos réis – 38 $400
Valério Crioulo, irmão que pareceu ter dois anos e meio, avaliado em trinta e oito, digo, avaliado em vinte e cinco mil e seiscentos réis – 25$600
José Benguela que pareceu ter vinte e seis anos do dito serviço, avaliado em cento e quinze mil e duzentos réis – 115$200
Maria Benguela pareceu ter quarenta anos do dito serviço avaliada em noventa e seis mil e oitocentos réis – 96$800
Manoel Crioulo, filho da dita que parece ter quatorze anos do serviço de casa avaliado em cem mil réis – 100$000
Januário Pardo[14]  irmão que parece ter treze anos, avaliado em cento e quinze mil e duzentos réis – 115$200

Ouro
Um jogo de botões de ouro que pesam duas oitavas[15]  e nove grãos[16]  a mil e quatrocentos réis importam em dois mil oitocentos e oitenta réis – 2$880
Uma imagem da Conceição com uma volta de cordão tudo de ouro pesam seis oitavas e meia a mil quatrocentos réis importam em nove mil e cem réis – 9$100

Prata
Uma colher e um garfo já usados pesam vinte cinco oitavas a cem réis a oitava, importam em dois mil e quinhentos réis – 2$500
Um par de esporas com duas fivelas pesam um marco[17] e cinco oitavas e meia, importam em seis mil novecentos e cinqüentas réis – 6$950
Um par de fivelas de calção quadrada sic de prata pesam dez oitavas e meia, importam em mil e cinqüenta réis – 1$050
Uma boceta de tabaco pesam vinte oitavas a cem réis a oitava importam em dois mil réis – 2$000

Espingarda
Uma espingarda velha de coronha portuguesa avaliada em dois mil e quinhentos e sessenta réis – 2$560

Cobre
Um forno de torrar farinha na roça com vinte e oito libras a duzentos réis importam em cinco mil e seiscentos réis – 5$600

Latão
Uma espada da cavalaria avaliada em dois mil e oitocentos réis – 2$800
Um ferro de engomar avaliado em setecentos e vinte réis - $720
Uma palmatória[18]  de latão avaliada em duzentos e sessenta réis - $260
Um baú grande de folha avaliada em dois mil e quatrocentos réis – 2$400

E não se continha mais coisa alguma em as certidões de avaliações escritas pelos próprios e competentes avaliadores os quais se acham apensas do inventário que com o teor das mesmas fiz extrair a presente cópia bem e fielmente que pelo conferir, e em tudo achar conforme subscrevi, assinei e concertei nessa Cidade do Rio de Janeiro aos dez dias do mês de dezembro do ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos. Eu, José Joaquim da Silva. Escrivão."

 

[1] LAGOA RODRIGO DE FREITAS: localizada na atual zona sul da cidade do Rio de Janeiro, a lagoa Rodrigo de Freitas, no início da colonização, era conhecida como Sacopenapã, que significa "Lagoa do Sacó" (uma ave que se alimenta, preferencialmente, de peixes mortos). A região da lagoa, primeiramente ocupada pelos indígenas Tamoio foi conquistada pelos portugueses durante o governo de Antônio de Salema (1576-1577). Após a conquista, suas terras foram vendidas e transformadas em um engenho de cana-de-açúcar por volta de 1575, denominado Engenho Del Rei, que teve entre seus donos, no início do século XVIII, Rodrigo de Freitas. Também ali foi erguida, no início do século XVII, a capela de Nossa Senhora da Cabeça. Sob sua administração, foram comprados e instalados novos engenhos nos arredores, sendo estas terras batizadas com o seu nome. Depois de sua morte, a lagoa e o seu entorno ficaram praticamente abandonados, até que, em princípios do século XIX, o príncipe regente d. João desapropriou o engenho da lagoa que passou a ser a Fazenda Nacional da Lagoa Rodrigo de Freitas e construiu no local a Real Fábrica de Pólvora, fundando na mesma localidade um jardim para aclimatação de plantas exóticas, o Real Horto Botânico, área do atual Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

[2] SENZALA: alojamento destinado à moradia dos escravos de uma fazenda ou de uma casa senhorial. O termo senzala é originário da língua banto (ramo de vários idiomas da África centro ocidental) e popularizou-se no Brasil através destes povos, sobretudo a partir do final do século XVIII. As moradas dos cativos também eram chamadas pelos viajantes e pela população local de choça, cabana, choupana, palhoça e mocambo, sendo ainda denominadas simplesmente de “casa de negros”. Robert Slenes, em Na Senzala, uma flor (2011), distingue três tipos de moradia: as senzalas " pavilhão" , edifício único com pequenos recintos ou cubículos separados para os escravos solteiros e casados, as senzalas " barracão" , onde viveriam escravos e escravas solteiros em grandes recintos separados, e as senzalas " cabana" , onde viveriam escravos casados ou solteiros de um mesmo sexo. Havia também a senzala em quadra, isto é, edifícios contínuos erigidos em formato retangular e subdivididos em compartimentos ou cubículos, todos voltados para um terreiro ou pátio com entrada única guardada por um portão de ferro. No Brasil, as senzalas geralmente ficavam próximas da habitação da família proprietária, ao contrário de outros lugares das Américas. Essa proximidade permitia maior vigilância sobre os escravos, mas também abria caminho para que os diferentes grupos – brancos e negros – partilhassem alguns traços culturais e linguísticos. A senzala acabou por se tornar local de reconstrução, na medida do possível, de uma identidade partida, onde laços entre grupos oriundos de regiões e etnias diferentes acabavam se formando em consequência da convivência forçada.

[3] PAIOL: local de armazenamento para diferentes produtos. O paiol para guardar gêneros da lavoura era, em geral, coberto com sapé, com parede e assoalho de bambu, pau roliço ou ripa de madeira, com frestas que facilitavam a ventilação. Com frequência localizava-se junto à casa. Na arquitetura militar, o paiol consistia numa fortificação destinada ao armazenamento de explosivos e munições. No seu dicionário, Bluteau define paiol num navio como um local separado e fechado, onde se guarda pólvora em barris ou cartuxos, e onde não se entra sem ordem do capitão. As naus de guerra têm o paiol na popa e as naus mercantis o têm na proa. Bluteau também faz referência que os navios da Índia portavam paióis de pimenta. (Raphael Bluteau. Vocabulario Portuguez & Latino. 1728, v. 6. acesso http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/)

[4] DESPEJO: refere-se à prática de despejar os dejetos em locais fora dos domicílios. Devido à falta de esgotos sanitários, caixas feitas de madeira, em geral em forma de barril, eram utilizadas para o transporte e descarte desses materiais. Na maioria das vezes, o despejo era efetuado nas ruas, terrenos desocupados próximos às casas ou nas praias por um escravo designado para tal. O cheiro fétido e a sujeira provocada por este costume foram relatados nos livros de memória dos viajantes que visitaram o Brasil ao longo do período colonial.

[5] GAMELA: utensílio doméstico, presente na cultura material de povos indígenas e escravizados. Vasilha esculpida comumente em madeira macia retirada de árvores como a gameleira. A gamela pode ser redonda ou ovalada e é utilizada na alimentação das pessoas ou de animais de criação.

[6] FRASQUEIRA: há três interpretações de época para o termo “frasqueira”: uma caixa com divisões para acomodar frascos; lugar onde se guardam frascos e garrafas; e ainda, garrafas de vidro próprias para servir vinho na mesa.

[7] CATRE: uma cama de viagem dobrável de lona.

[8] LIBRA: unidade de medida de massa utilizada antes da adoção do sistema métrico, decretado em Portugal em 1852 e no Brasil em 1862, muito embora o uso das medidas ainda tenha demorado para ser plenamente substituído. Equivalia a um arrátel, no antigo sistema português de medidas, ou 459 gramas, ou a 16 onças.

[9] CAFÉ: planta de origem etíope da família das rubiáceas, começou a ser utilizada como bebida na Arábia. A expansão do consumo pela Europa deu-se entre os séculos XVII e XVIII, por suas qualidades estimulantes. Consta que sua introdução no Brasil, em 1727, foi feita pelo oficial português Francisco de Melo Palheta, que plantou as primeiras mudas no Pará. Ao longo do século XX, o café tornou-se uma bebida popular e seu consumo e produção se expandiram, principalmente a partir de 1865, quando passou a ser comercializado torrado e empacotado (anteriormente era vendido em grãos). Destacam-se no Brasil duas grandes fases de expansão cafeeira. A primeira, no início do Oitocentos até os anos 1850, teve início nas encostas do morro da Tijuca em plantações caseiras, até a expansão por todo o vale do rio Paraíba do Sul, a leste e oeste, com foco na região da cidade de Vassouras, o maior centro produtor da época. Nestas regiões, o café iniciou seu grande desenvolvimento pela abundância de terras férteis, pelo bom clima e pela mão de obra escrava disponível. Ocupou o lugar das plantações de cana, algodão e alimentos, gerando escassez e carestia dos gêneros de abastecimento, além de ter promovido a derrubada e queimada de grandes extensões da mata atlântica. A segunda fase, que se iniciou a partir de metade do século XIX, após a proibição do tráfico de escravos, foi marcada pela expansão das lavouras para São Paulo, seguindo o vale do Paraíba e avançando pelo oeste paulista, depois de 1870. A grande demanda de mão de obra promoveu um aumento no preço dos cativos e um despovoamento das áreas de produção de açúcar no Nordeste, sobretudo. As lavouras do café no Rio de Janeiro e de São Paulo gerou significativas divisas, e uma nova, poderosa e politicamente forte aristocracia rural, a dos “barões do café”. Embora lucrativo, o plantio do café desgastava muito rapidamente o solo, razão para a constante movimentação nas áreas de cultivo e declínio da produção na região fluminense. Outro problema era a carência do uso de novas técnicas e instrumentos. A adoção de ferramentas como o arado e de máquinas a vapor para o beneficiamento, e mesmo de procedimentos simples como o enfileiramento dos pés, só foram adotados a partir dos anos 1870. Essa era uma das razões para o café brasileiro ser considerado de qualidade inferior, se comparado ao de outros países, o que não impediu, no entanto, que, ao longo do período imperial, o Brasil fosse o responsável por 50% da produção mundial, número que aumentou para 75% nas primeiras décadas da República.

[10] ESCRAVOS [AFRICANOS]: pessoas cativas, desprovidas de direitos, sujeitas a um senhor, como propriedades dele. Embora a escravidão na Europa existisse desde a Antiguidade, durante a Idade Média ela recuou para um estado residual. Com a expansão ultramarina, no século XV, revigorou-se, mas adquiriu contornos bem diferentes e proporções muito maiores. No mundo moderno, um grupo humano específico, que traria na pele os sinais de uma inferioridade na alma estaria destinado à escravidão. Diferentemente da escravidão greco-romana, onde certos indivíduos eram passíveis de serem escravizados, seja através da guerra ou por dívidas, o sistema escravocrata moderno era mais radical, onde a escravidão passa a ser vista como uma diferença coletiva, assinalada pela cor da pele, nas palavras do historiador José d'Assunção Barros, “um grupo humano específico traria na cor da pele os sinais de inferioridade” (“A Construção Social da Cor - Desigualdade e Diferença na construção e desconstrução do Escravismo Colonial. XIII Encontro de História da Anpuh-Rio, 2008). Muitos foram os esforços no sentido de construir uma diferenciação negra, buscando no discurso bíblico, justificativas para a escravidão africana. No Brasil, de início, utilizou-se a captura de nativos para formar o contingente de mão de obra escrava necessária a colonização do território. Por diversos motivos – lucro com a implantação de um comércio de escravos importados da África; dificuldade em forçar o trabalho do homem indígena na agricultura; morte e fuga de grande parte dos nativos para áreas do interior ainda inacessíveis aos europeus – a escravidão africana começou a suplantar a indígena em número e importância econômica quando do início da atividade açucareira em grande extensão do litoral brasileiro. Apesar disso, a escravidão indígena perduraria por bastante tempo ainda, marcando a vida em pontos da colônia mais distantes da costa e em atividades menos extensivas. O desenvolvimento comercial no Atlântico gerou, por três séculos, a transferência de um vasto contingente de africanos feitos escravos para a América. A primeira movimentação do tráfico de escravos se fez para a metrópole, em 1441, ampliando-se de tal modo que, no ano de 1448, mais de mil africanos tinham chegado a Portugal, uma contagem que aumentou durante todo o século XV. Tal comércio foi um dos empreendimentos mais lucrativos de Portugal e outras nações europeias. Os negros cativos eram negociados internacionalmente pelos europeus, mas estes, poucas vezes, tomavam para si a tarefa de captura dos indivíduos. Uma vez que o aprisionamento de inimigos e sua redução ao estado servil eram práticas anteriores ao estabelecimento de rotas comerciais ultramarinas, em geral consequência de guerras e conflitos entre diferentes reinos ou tribos, os comerciantes passaram a trocar estes prisioneiros por produtos de interesse dos grandes líderes locais (os potentados) e por apoio militar nos conflitos locais. Embora a escravização de inimigos fosse uma prática anterior à chegada dos europeus, deve-se salientar que o estatuto do escravo na África era completamente diferente daquele que possuía o escravo apreendido e vendido para trabalho nas Américas. Nos reinos africanos, a condição não era indefinida e nem hereditária, e senhores chegavam a se casar com escravas, assumindo seus filhos. O comércio com os europeus transformou os homens e sua descendência em mercadoria sem vontade, objeto de negociação mercantil. Os europeus passaram a instigar guerras e conflitos locais, de forma a aumentar a captura de possíveis escravos, desintegrando a antiga estrutura econômica e social dos reinos africanos. A produção historiográfica sobre a escravidão vem crescendo nos últimos anos, não só escravismo colonial, mas também o comércio de cativos para a própria Europa, sobretudo na bacia mediterrânea, têm sido estudados. A presença de escravos negros em Portugal tornar-se-ia uma constante no campo mas, sobretudo, nas cidades e vilas, onde podiam trabalhar em obras públicas, nos portos (carregadores), nas galés, como escravos de ganhos e domésticos, entre outros. No século XV, os negros africanos já tinham suas habilidades reconhecidas tanto em Portugal quanto nas ilhas atlânticas (arquipélagos de Madeira e Açores). Localizadas estrategicamente e com solo de origem vulcânica, logo foi implantado um sistema de colonização assentado na exploração de bens primários, como o açúcar.  A escravidão foi um dos alicerces essenciais do sucesso desse empreendimento, que acabou sendo transferido para o Brasil, quando essa colônia se mostrou economicamente vantajosa. Dessa forma, no litoral da América portuguesa logo seria implantado o sistema de plantation açucareiro, com a introdução da mão de obra africana. E, ao longo do processo de colonização luso, o trabalho escravo tornou-se a base da economia colonial, presente nas mais diversas atividades, tanto no campo quanto nas cidades. Uma das peculiaridades da escravidão nesse período é representada pelos altos gastos dos proprietários com a mão de obra, muitas vezes mais cara do que a terra. Iniciar uma atividade de lucro demandava um alto investimento inicial em mão de obra, caso se esperasse certeza de retorno. A escravidão e a situação do escravo variavam, dentro de determinados limites, de atividade para atividade e de local para local. Mas de uma forma geral, predominavam os homens, já que o tráfico continuou suas atividades intensamente pois, ao contrário do que ocorria na América inglesa, por exemplo, houve pouco crescimento endógeno entre a população escrava na América portuguesa. Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco foram os principais centros importadores de escravos africanos do Brasil. Além de formarem a esmagadora maioria da mão de obra nas lavouras, nas minas, nos campos, e de ganharem o sustento dos senhores menos abastados realizando serviços nas ruas das vilas e cidades (escravos de ganho), preenchendo importantes nichos da economia colonial, os escravos negros também eram recrutados para lutar em combates. A carta régia de 22 de março de 1766, pela qual d. José I ordenou o alistamento da população, inclusive de pardos e negros para comporem as tropas de defesa, fez intensificar o número dessa parcela da população nos corpos militares. Ingressar nas milícias era um meio de ascensão social, tanto para o negro escravo quanto para o forro. A escravidão é um tema clássico da historiografia brasileira e ainda bastante aberto a novas abordagens e releituras. A perspectiva clássica em torno do tema é a do “cativeiro brando” e o caráter benevolente e não violento da escravidão brasileira, proposta por Gilberto Freyre em Casa Grande e senzala no início da década de 1930. Contestações a essa visão surgem na segunda metade do século XX, nomes como Florestan Fernandes, Emília Viotti, Clóvis Moura, entre outros, desenvolvem a ideia de “coisificação” do negro e as circunstâncias extremamente árduas em que viviam, bem como a existência de movimentos de resistência ao cativeiro, como é o caso das revoltas de escravos e a formação dos quilombos. Já perspectivas historiográficas recentes reviram essa despersonalização do escravo, considerando-o como agente histórico, com redes de sociabilidade, produções culturais e concepções próprias sobre as regras sociais vigentes e como os negros buscaram sua liberdade, contribuindo decisivamente para o fim da escravidão.

[11] BENGUELA: província situada ao sul de Angola. Face ao clima temperado, foram desenvolvidas nessa região, várias culturas de subsistência importantes, tais como as da banana, açúcar, milho, algodão, além de hortaliças e da pesca. Destacou-se como principal porto de embarque de escravos para a América portuguesa. A partir do século XVII, verifica-se no Rio de Janeiro uma entrada maciça de escravos provenientes dessa província africana, tornando os “benguelas” o maior grupo étnico na cidade.

[12] ESCRAVO DE NAÇÃO REBOLA: o termo “escravo de nação” não necessariamente indica a etnia ou nação ou a precisa procedência geográfica dos cativos africanos. Na maior parte das vezes indica o lugar de embarque ou de aprisionamento do negro africanos que foi escravizado. No caso dos escravos rebolos (ou rebolas), a procedência mais específica indica uma nação ou etnia da região do alto do rio Kwanza, na região norte de Angola. Os rebolas eram um grupo minoritário entre os que vieram para o Brasil e possivelmente embarcavam no porto de Luanda, mais próximo da região de captura, e não no de Benguela.

 

[13] CRIOULO: termo que designava os escravos nascidos no Brasil e, em alguns casos, os cativos originados de outras colônias portuguesas. De origem portuguesa, crioulo é derivado da palavra “crea”, como era escrita a palavra “cria”, ou seja, pessoas criadas na terra. Antonio Moraes Silva, em seu Diccionario da língua portugueza, publicado em 1813, registrou o termo crioulo empregado ao escravo que nascia em casa do senhor; significando também o animal, cria, que nascia “em nosso poder”. O sentido dado a “crioulo” era menos uma exclusividade do negro “nacional” do que um designativo social “de cor” aplicado aos descendentes de escravos, mas que também podia ser atribuído àqueles escravos vindos de uma parte da África. Nesse sentido, era usual o nome do escravo estar seguido do adjetivo “crioulo”, da nação a que pertencia ou do porto do qual fora embarcado para as terras americanas, a exemplo de João crioulo Angola.

[14] PARDO: um dos termos empregados para designar a cor dos escravos brasileiros. Grosso modo, era utilizado para descrever as pessoas cuja pigmentação da pele encontrava posição entre o branco e o negro, assim como os mulatos. Não raro o termo pardo aparecia em registros acompanhado de adjetivos como “pardo claro”, “pardo alvo”, “pardo trigueiro”, “pardo escuro”, “pardo disfarçado”, entre outros, quase sempre apontando para o distanciamento entre as categorias “preto” e “branco”. Considerados possuidores de “sangue impuro”, por serem fruto da mistura das etnias branca e negra, os pardos foram discriminados e perseguidos como os judeus, os mouros e os cristãos-novos. Ao longo do período colonial, sofreram várias tentativas de controle, dentre elas, a proibição de exercerem cargos nas câmaras municipais, de serem membros da Ordem de Cristo, ou mesmo de usarem roupas luxuosas. Tais restrições, entretanto, eram frequentemente ignoradas para aqueles que possuíam muitas riquezas ou eram considerados bem-sucedidos na sociedade.

[15] REFORMA DOS PESOS E MEDIDAS: com a unificação do território português surge a necessidade de padronização dos pesos e medidas no reino. Posteriormente, com a incorporação de novos territórios decorrente da expansão marítima e comercial, dos séculos XV e XVI, a preocupação com a uniformização dos pesos e medidas se estende a todo império ultramarino. A imprecisão das unidades de medidas usuais, que permitia fraudes, opunha-se à crescente importância de um sistema unificado e científico de pesos e medidas que facilitasse as transações comerciais, tanto no interior do império como entre as diferentes nações europeias. Apontando para uma tendência de uniformização dos pesos e medidas a nível mundial, em função do comércio e das trocas científicas, é adotado o “marco” em Portugal, medida de peso de uso corrente na Europa, por provisão, em outubro de 1488. Assim, observam-se diversas reformas e regramentos no sentido de estabelecer uma uniformização, e a partir do século XIX, a Academia Real das Ciências de Lisboa toma parte em algumas das comissões encarregadas das reformas. Ainda em 1812, é criada uma Comissão para o exame dos forais e melhoramentos da agricultura que, em conjunto com a Academia Real, propõe uma reforma baseada no modelo francês, mas que mantinha a terminologia portuguesa, de forma a atenuar a mudança. Finalmente, através de decreto de d. Maria II, em meados do século XIX, é implantado o sistema métrico decimal adotando a nomenclatura francesa. Até então, as unidades de medidas mais usadas em Portugal e, por conseguinte, no Brasil, eram: para comprimento, a légua (6.600 m), a braça (2,2 m), a vara (1,1 m) e o palmo (0,22 m); para peso, a arroba (≈15 kg), o marco (≈230 g), o arratel (≈460 g), a onça (28,691 g), o grão (50g) e a oitava (3,586 g). Já na pesagem do açúcar, utilizava-se o pão (63,4 Kg); o saco (75 Kg); o barril, a barrica e o tonel (120Kg); a caixa (300 Kg) e a tonelada (1000 Kg). Por fim, como medidas de volume, temos a cuia (1,1 l), a canada (2,662 l), o quartilho (0,665 l), o almude (31,944 l), o alqueire (36,4 l) e a pipa (485 l).

[16] GRÃOS: peso do valor de 50 gramas.

[17] Ver REFORMA DOS PESOS E MEDIDAS.

[18] PALMATÓRIA: pequena peça circular de madeira, não raro com cinco orifícios dispostos em cruz e com um cabo, a qual servia, nas escolas e em casa, para castigar as crianças e os escravos batendo-lhes na mão. O uso da palmatória e de outros castigos físicos era largamente empregado não apenas no universo escolar, mas em todo o processo que envolvesse relações humanas, fossem elas entre senhor e escravo, entre marido e esposa, fossem entre pais e filhos, entre outras situações. A promulgação da lei de 15 de outubro de 1827 que, entre diversas prescrições, incidia sobre a proibição de castigos físicos nas escolas, substituindo-os pelo de cunho moral, não detiveram as discussões sobre com que moderação devia o professor servir-se da palmatória para corrigir comportamentos ou fazer o aluno compreender a matemática, por exemplo. “A palmatória, o chicote, a vara, as carteiras, os livros, o quadro de giz e outros objetos faziam parte da cultura escolar daquele tempo histórico. Mesmo após a proibição de castigos físicos, a palmatória adentrava no século XX como um artefato ainda inserido na cultura material escolar.” (Aragão, M. e Freitas, A.G. Práticas de castigos escolares: enlaces históricos entre normas e cotidiano. Conjectura, v. 17, n. 2, p. 17-36, maio/ago. 2012) Recomendava-se que os golpes se limitassem a seis, no máximo, e não deveriam atingir o roto ou a cabeça.

Sugestões de uso em sala de aula:
Utilização(ões) possível(is):
 No eixo temático sobre a “História das relações sociais da cultura e do trabalho”.
 No eixo temático sobre a “História das representações e das relações de poder”.


Ao tratar dos seguintes conteúdos:
 Práticas e costumes coloniais
 A Economia Colonial
 A sociedade colonial: cotidiano e cultura
 O Rio de Janeiro colonial

Defloramento

Requerimento judicial feito por Antônio de Freitas e Leocádia Rosa contra Antônio João Escórcio de Vasconcelos, acusado de seduzir e deflorar a jovem filha do casal. De acordo com o processo, Antônio João forjou sua defesa, fazendo um indivíduo trajado de padre ir fingir falar com a vítima e, dessa forma, induzir três testemunhas a acreditarem ter visto o padre José Gomes conversando com a jovem. O réu foi condenado a cinco anos de degredo para África e a indenizar a deflorada em quatrocentos mil réis, além de vinte mil réis para as despesas da Justiça. O documento permite uma visualização do tratamento dispensado pela justiça àqueles que cometessem esse tipo de ação no Brasil colônia.

 


Conjunto documental: Tribunal do Desembargo do Paço
Notação: caixa 219, pct. 03
Data-limite: 1808-1827
Título do fundo: Mesa do Desembargo do Paço
Código do fundo: 4K
Argumento de pesquisa: família, adultério
Data do documento: 3 de fevereiro de 1813
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): -

 

“Saibam quantos este instrumento dado e passado em público forma por Autoridade Judicial e a requerimento de parte que no Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e treze aos três de Fevereiro nesta cidade do Rio de Janeiro em o meu escritório o requerimento de parte me foi apresentado uma certidão autêntica subscrita pelo escrivão da cidade de Funchal ... com o teor de uns autos crimes entre partes Antônio João Escórcio, e Antonio de Freitas e sua mulher Leocádia Rosa, de cuja certidão que se acha passada ... da mesma cidade de Funchal em dezesseis de novembro de mil oitocentos e nove me foi pedido pelo suplicante, lhe desse em pública forma o teor de dois Acórdãos[1] nele copiados cujo teor é o seguinte:

 

1º Acórdão

 

Acórdão em junta mostra-se acusarem os Autores ao réu Antônio João Escórcio de que este abusando da amizade e entrada que tinha na casa dos mesmos seduzira, e deflorara a uma sua filha por nome Joana que dele concebeu e pariu um filho. Defende-se o réu com a matéria de sua contrariedade ..., e não podendo negar, e escurecer o trato ilícito que lhe é argüido recorre ao expediente de imputar ao padre José Gomes o defloramento[2] da dita filha, e suposto algumas das testemunhas por ele produzidas confirmem a sua afirmação nesta parte, contudo não merecem crédito, nem podem pela sua qualidade e condição contrabalançar e iludir a concludente prova dos Autores firmadas nos depoimentos das testemunhas fidedignas, maiores de toda ocupação, que uniformemente afiançam a honra e bom comportamento da dita filha dos autores sem que ela em tempo algum fosse infamada, ou tivesse nota alguma no seu procedimento, como até depõem contra ... algumas das testemunhas do mesmo réu: o qual é também convencido de falsário e embusteiro; pois que fez ir um indivíduo revestido em trajes de clérigo fora de horas á horta dos Autores, e chegar-se a uma das famílias[3]  das casas dos sobreditos; fingindo falar com a estuprada; e induziu a três rústicos para que estivessem de parte vendo todo este fato, a fim de irem depois jurar que tinham visto o dito padre José Gomes ir a casa dos Autores falar à estuprada o que eles mesmos ao depor declararam quando conheceram toda a trama e embuste do réu como se vê dos seus juramentos e declarações ..., e assim como o réu induziu aquelas testemunhas para provar a sua patranha[4] da mesma sorte induziu ... as outras da Inquisição ... que por serem mulheres objetos pobres e de baixa condição facilmente depuseram tudo quanto o réu quis, e lhe insinuou. Portanto e o mais dos Autos condenaram ao réu em cinco anos de degredo[5] para África com pregão na Audiência quatrocentos mil réis para a indenização da injúria feita aos autores, vinte mil réis para as despesas da Justiça e nas custas e não deferem a pretensão do dote por ter a deflorada muito mais de dezessete anos ....”    

 

 

[1] ACÓRDÃO: decisão emitida em grau de recurso por um tribunal coletivo, administrativo ou judicial.

[2] DEFLORAMENTO: até ao menos a metade do século XX, a virgindade das mulheres tinha um valor especial na sociedade, sendo elemento indicativo de honra, da mulher e de sua família, sobretudo das ricas famílias patriarcais, e de certa forma, moeda de troca para a realização de bons casamentos entre iguais. Em uma sociedade na qual o poder pátrio determinava o destino das filhas que, depois de casadas, passavam para a “posse” do marido, as fronteiras entre o que era consentido e o excesso de violência também eram precárias. Havia uma diferenciação não explícita entre estupro e defloramento, no qual o primeiro envolvia formas de coação violenta e no segundo mais uma persuasão, fosse por sentimentos ou promessas. Na prática, os casos de defloramento muitas vezes envolviam agressão física contra a mulher e o seu não-consentimento no ato sexual. Os crimes de sedução e desonra já estavam previstos desde as Ordenações Afonsinas (1446-1448), mas foram consideravelmente aprimorados nas Ordenações Manuelinas (1512-1603) e Filipinas (1595), que estabeleciam punições mais duras e tratavam menos as mulheres como culpadas ou aliciadoras dos agressores. Não custa reforçar que as leis eram aplicadas entre iguais. Homens de posições sociais e cor diferentes não teriam as mesmas punições, os fidalgos, quase sempre, eram punidos com degredo, prisão e indenizações, já aos comuns, à plebe, ficavam reservadas as penas mais graves que incluíam a de morte. Uma questão frequentemente mencionada para os crimes de defloramento trata sobre o casamento do agressor com as ofendidas, “solução” para o crime que acabava com a ofensa e suspendia automaticamente as penas, o que não era sempre o caso, ao menos entre as famílias da boa sociedade colonial. Tanto os pais quanto as próprias mulheres deveriam concordar com o casamento, o que frequentemente ocorria, caso o candidato a noivo fosse homem de nascimento e posses inferiores às da possível noiva. Quando havia o casamento, era preciso que o pai concordasse com a suspensão da pena, o que poderia não acontecer. Nos casos de não haver casamento, ficava o agressor, além de sujeito às punições já mencionadas, obrigado a custear o casamento da mulher agredida e pagar uma espécie de indenização pela perda da virgindade, o que se chamava “demandar a virgindade”. A família agredida precisaria solicitar tal indenização, que teria o efeito de eliminar a mancha da honra da família e tornar a moça novamente “de qualidade” para um bom casamento. No Brasil, o crime de sedução e defloramento passou a ser tratado como estupro somente no Código Criminal de 1890 e no Civil de 1916, embora as punições continuassem a existir também no Código Criminal de 1830.

[3] FAMÍLIA: uma das principais instituições do Brasil colonial, a família foi marcada pela pluralidade e por experiências diversas, decorrentes de fatores como regionalização, origem social, gênero e etnia. Dentre as diversas camadas sociais, destacam-se as famílias patriarcais, que se tornaram as “poderosas instituições econômicas e políticas” do período. Através de casamentos e alianças, estas famílias criaram verdadeiros núcleos de poder, cuja estrutura fundiária serviu-lhes de base econômica, constituindo-se uma das principais heranças do período colonial. Uma interpretação clássica é a do sociólogo Gilberto Freyre, para quem a colonização do Brasil teve como pilar social a família patriarcal. O chefe da família e senhor de terras e escravos era a autoridade máxima, seguido de seus filhos, mulher, filhos bastardos, empregados, escravos domésticos e na base da pirâmide hierárquica, os escravos da lavoura. Ou seja, a instituição família não se restringia apenas ao núcleo formado por pai, mãe e filhos, mas faz referência a todos – grande número de criados, parentes, aderentes, agregados e escravos – que giram em torno do núcleo centralizador dos vários tipos de relação: o patriarca. Para o autor, a família teve papel central na formação do país, o “grande fator colonizador”, que povoou e tornou produtivas as terras descobertas. E, devido à distância do Estado luso, a família colonial brasileira transferiu o exercício de “mando” das relações privadas para o domínio público, ou seja, para o exercício político. O chefe de família também seria chefe de Estado, dividindo seu foco de atuação entre a casa e o governo. O governo da casa/ família, pautado na violência e submissão ao pater familia, refletia-se nas relações de poder entre o que Ilmar Rohloff de Mattos chamou de mundo do governo e mundo do trabalho, ou seja, os escravos. Trazer a ordem entre dominantes e dominados, assim como acontecia dentro da família, era manter, através de um controle que se exercia continuamente, a situação de classe dominante da elite econômica. Freire foi o grande idealizador da família patriarcal brasileira, considerando-a paradigmática do nordeste açucareiro. No entanto, afastado do contexto do engenho, existiam formas plurais de família. Em São Paulo e Minas Gerais, por exemplo, predominou a família nuclear (pais e filhos), além de um considerável número de famílias chefiadas por mulheres – a ausência dos homens é explicada pela necessidade econômica de sair em busca de riquezas, como no caso das bandeiras ou dos mascates. No Brasil colonial uma variedade de arranjos familiares se fez presente, independente da formalização do casamento, que usualmente se aplicava às famílias mais abastadas. Nas décadas de 1950 e 1960 autores como Florestan Fernandes e Roger Bastide apostaram na inexistência de famílias escravas, dada a superioridade numérica da população masculina e à opressão do cativeiro. Posteriormente Katia Matoso em Ser escravo no Brasil sugeriu que, a despeito da violência dos senhores, não deixou de haver laços de solidariedade entre os escravizados, ainda que não contestasse as teses anteriores. Em décadas recentes diversos estudos mostraram a constituição de famílias escravas tanto no Oeste paulista quanto no Vale do Paraíba no século XIX, com casamentos formais e núcleos familiares extensos (SLENES,Robert W., FARIA, Sheila de Castro. Família escrava e trabalho. Tempo, Vol. 3 - n° 6, Dezembro de 1998. https://www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/artg6-4.pdf). Finalmente, deve-se lembrar da união do português e da mulher indígena. Portanto, é fundamental considerarmos o dinamismo das formações familiares na América portuguesa, ainda que marcadamente patriarcal.

[4] PATRANHA: termo utilizado para referir-se à falta de verdade, histórias mentirosas, “conto fabuloso”, segundo Rafael Bluteau.

[5]  DEGREDO: punição prevista no corpo de leis português, o degredo era aplicado a pessoas condenadas aos mais diversos tipos de crimes pelos tribunais da Coroa ou da Inquisição. Tratava-se do envio dos infratores para as colônias ou para as galés, onde cumpririam a sentença determinada. Os menores delitos, como pequenos furtos e blasfêmias, geravam uma pena de 3 a 10 anos, e os maiores, que envolviam lesa-majestade, sodomia, falso misticismo, fabricação de moeda falsa, entre outros, eram definidos pela perpetuidade, com pena de morte se o criminoso voltasse ao país de origem. Além do aspecto jurídico, em um momento de dificuldades financeiras para Portugal, degredar criminosos, hereges e perturbadores da ordem social adquiriu funções variadas além da simples punição. Expulsá-los para as “terras de além-mar” mantinha o controle social em Portugal e, em alguns casos também, em suas colônias mais prósperas, contribuindo para o povoamento das fronteiras portuguesas e das possessões coloniais, além de aliviar a administração real com a manutenção prisional. Constituindo-se uma das formas encontradas pelas autoridades para livrar o reino de súditos indesejáveis, entre os degredados figuraram marginais, vadios, prostitutas e aqueles que se rebelassem contra a Coroa. Considerada uma das mais severas penas, o degredo só estava abaixo da pena de morte, servindo como pena alternativa designada pelo termo “morra por ello” (morra por isso). Porém o degredo também assumia este caráter de “morte civil” já que a única forma de assumir novamente alguma visibilidade social, ou voltar ao seu país, era obtendo o perdão do rei.

Sugestões de uso em sala de aula:
Utilização(ões) possível(is):
- No eixo temático sobre a “História das relações sociais da cultura e do trabalho”.
- No eixo temático sobre a “História das representações e das relações de poder”.

Ao tratar dos seguintes conteúdos:
- Práticas e costumes coloniais
- A manutenção  do sistema colonial
- Estrutura administrativa colonial
- Brasil colonial: sociedade, delitos e transgressões

Recolhimento de mulheres

Oficio enviado ao conde de Aguiar informando sobre o processo de recolhimento de Fortunata Maria da Conceição. Tendo fugido do Recolhimento de Itaipu e buscando abrigo no Recolhimento do Parto, Fortunata Maria da Conceição estava movendo um processo de divórcio contra seu marido que a acusava de prostituição. Abordando temas referentes às relações familiares no Brasil colônia, este documento discute a questão do divórcio e da conduta feminina, enfocando comportamentos que atentavam contra a moral e os bons costumes do período.

 

Conjunto documental: Ministério dos Estrangeiros e da Guerra
Notação: 6J-78
Datas-limite: 1795-1811                           
Título do fundo ou coleção: Diversos GIFI
Código do fundo: OI
Argumento de pesquisa: família
Data do documento: 11 de julho de 1809
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): -

Leia esse documento na íntegra

 

"Ilustríssimo Excelentíssimo Senhor Conde de Aguiar

Por aviso que Vossa Excelência me expediu na data de 30 de Junho, manda o Príncipe Regente  Nosso Senhor que se informe com meu parecer sobre o requerimento incluso de Bernardo Antônio do Amaral, em que pede a Sua Alteza que faça recolher ao Recolhimento Itaipu[1], ou ao da Misericórdia[2] sua mulher Fortunata Maria da Conceição, que se acha depositada no Recolhimento do Parto[3] desta Corte tratando com ele causa de divórcio.

Esta mulher ou fosse por hora verdade minha procedido mal no Cantagalo, onde se casou com o suplente que era ali Meirinho[4] da Intendência, ou por que o marido assim o divulgasse, pediu com consentimento de seu pai que então era vivo, que se queria recolher em Itaipu, e o conseguiu, tudo de comum acordo com o suplente que deste modo encobriu a sua afronta.

Fugiu depois dali, e por fim fez-se depositar no recolhimento do Porto para propor a seu marido causa de divórcio[5], que ainda não está ultimada.

Na pendência desta causa, sendo Vice Rei deste estado o conde dos Arcos, procurou o suplente muda-la para Itaipu, e me lembro de que me mandou informar vosso sic requerimento, enquanto fundamento era o mesmo que agora da, de ter ela arte de sair fora e prostituir-se[6]ali mesmo, cobrindo o de frequentes afrontas, que com esta mudança procurava evitar. Não achei que isso fosse certo, e com o meu parecer se escusou a sua pretensão. Por me parecer que era isso um ardil complô. Suplente procurava arredá-la para mais longe, donde não podem tratar de sua causa.

O mesmo digo agora; Por que se a demanda não está finalizada e se ela está ali em depósito judicial, não se deve inovar este, bem que agora eu pelos muitos fatos saiba que dito Recolhimento está muito desacreditado, e que desgraçadamente podem ser verdadeiros os fatos de torpeza de que ela é arguida, praticado no mesmo Recolhimento.

Mas o de I(t)aipu se de clausura fraca e a prova seja a fuga que ela mesma dali fez, e o qual tem feito outras mulheres.

O da Misericórdia não deve ser emporcalhado com mulheres desta classe, sendo de recolhidas somente bem educadas, que ali estão a merecer casamentos e donde tem saído boas mães de família; e o meu parecer por tudo isto é, que se continue a conservar no Parto, mas que se mande recomendar ao Bispo Diocesano de cuja inspeção ele é, que vigia pelos abusos da sua clausura, quando ponha em melhor disciplina e que mesmo particularmente faça vigiar sobre a pessoa da mulher do suplente, pois que está ali em depósito, e nos depósitos deve haver sempre boa guarda.

Não serei de parecer da mudança por durar a causa do divórcio, e deve ela está perto de seus procuradores, a quem deve falar e dar informações, e para que se não diga, anuindo as instancias do marido, se lhe tirarão os meios, e se procurarão os dela decair da coisa. Isso é tudo quanto entendo.

Digníssimo G. N. Excelentíssima Rio, 11 de julho de 1809

Ilustríssimo Excelentíssimo Senhor Conde de Aguiar

Paulo Fernandes Vianna[7].”

 

[1] RECOLHIMENTO DE SANTA TERESA DE ITAIPU: fundado em 1764, em Niterói, a partir de uma capela erguida em 1721, tinha como objetivo abrigar mulheres que pretendiam seguir a vida religiosa, órfãs, casadas abandonadas, entre outras em situação vulnerável. A instituição servia, ainda, como forma de castigo para moças solteiras, que se insurgiam contra as determinações dos pais, principalmente por motivo de casamento. A internação no estabelecimento requeria o pagamento de um dote pela família e a aprovação da Corte. No início do século XIX, o Recolhimento deixa de funcionar. Hoje, em suas ruínas, funciona o Museu de Arqueologia de Itaipu.

[2] RECOLHIMENTO DA MISERICÓRDIA: fundado em 1739, o Recolhimento das Órfãs da Santa Casa surgiu a partir de doações feitas à Irmandade da Misericórdia do Rio de Janeiro, com o objetivo de amparar as órfãs carentes. Não custa lembrar que a Casa dos Expostos foi criada um ano antes, e as meninas órfãs depois de certa idade passaram a ser encaminhadas, quando não conseguissem adoção, para o recolhimento. Trata-se do primeiro estabelecimento leigo para jovens órfãs da cidade, visto que o Recolhimento do Parto iniciou suas atividades em 1754 e o de Santa Teresa de Itaipu em 1764 (o primeiro Recolhimento da Misericórdia do Brasil foi fundado na Bahia em 1716). Ao contrário destes últimos, o Recolhimento da Misericórdia não se destinava a abrigar mulheres arrependidas ou infratoras, funcionando, antes, como uma casa onde as jovens órfãs se preparavam para o matrimônio. Lá, além dos exercícios espirituais (orações e missas) as órfãs aprenderiam a cozer, bordar, fazer rendas, e outras atividades que as pudesse tornar boas esposas e mães. Para que conseguissem o almejado matrimônio, a Irmandade garantia inclusive um dote para as jovens. Esse dote era fundamental para garantir um casamento para as órfãs, sem isso elas não teriam como se manter e acabariam morrendo de fome ou prostituindo-se, sobretudo depois de 1785 quando os administradores do recolhimento instituíram uma regra que limitava a seis anos o período máximo de permanência na instituição. Essas instituições de assistência aos órfãos eram consideradas de grande importância na sociedade luso-brasileira pois garantiriam a ordem da sociedade e preservariam a moral cristã.

[3] RECOLHIMENTO DO PARTO: fundado por Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz (1719-17?), no Rio de Janeiro em 1754, ao lado da capela de Nossa Senhora do Parto, destinava-se a abrigar tanto as mulheres casadas abandonadas, quanto as moças solteiras castigadas pelos pais. Rosa Egipcíaca foi uma escrava, nativa da Costa da Mina, que chegou ao Rio de Janeiro com 6 anos de idade e aos 14 foi vendida a uma senhora de Minas Gerais. Nas terras do ouro, trabalhou prostituindo-se, até ser acometida por uma estranha enfermidade que a levou a largar o meretrício e adotar vida beata. Após sua conversão, passou a ter visões proféticas apocalípticas, se tornando visível, admirada e venerada. De volta ao Rio de Janeiro, agora liberta e sob a proteção dos franciscanos do Convento de Santo Antônio, Rosa era adorada como uma santa. Foi por inspiração sobrenatural que a “santa africana” fundou o Recolhimento do Parto, com o beneplácito do bispo D. Antônio do Desterro, onde abrigava mulheres enjeitadas pela sociedade, em sua maioria, negras e mulatas. Segundo as narrativas da época, o recolhimento logo tornou-se objeto de desafeto das mulheres, tendo em vista sua transformação em uma arma de disciplina usada pelos homens que desejavam livrar-se de suas esposas. Disse Joaquim Manoel de Macedo em Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro: “Se o piedoso e santo recolhimento abrisse as suas portas somente àquelas senhoras que voluntariamente fossem procurar o religioso retiro, não havia que dizer, ao menos naquele tempo. Se, além de recolhimento de velhas arrependidas, desvirtuado embora o pensamento que presidira à sua fundação, servisse para receber e educar meninas e jovens, havia muito que louvar, uma vez que a educação fosse ali bem dirigida. Mas o asilo que se levantara foi mais do que isso, foi uma terrível ameaça de pedra e cal, tornou-se em uma espécie de casa de correção feminina, em uma espécie de cadeia que fazia medo não só às más esposas como às esposas de maus maridos, e também às moças solteiras filhas de pais enfezados, cabeçudos e prepotentes.” Sua manutenção fazia-se por meio dos aluguéis das lojas anexadas a seu prédio e da contribuição das famílias de algumas moradoras. Rosa Egipcíaca foi a madre do Recolhimento, onde instalou-se um verdadeiro culto idolátrico à sua pessoa. Em 1763, após alguns desentendimentos com o clero, foi presa e acusada de heresia. Enviada à Lisboa para ser julgada pelo Tribunal do Santo Ofício, seu processo inquisitorial foi interrompido em 1765, não sendo identificada a pena aplicada. Acredita-se que tenha morrido no cárcere. O Recolhimento do Parto, continuaria a funcionar, mas na madrugada de 24 de agosto de 1789, sofreu um grande incêndio. Coube ao Mestre Valentim da Fonseca e Silva dar início à obra de recuperação, que começou um dia após o incêndio e foi concluída três meses depois. O Recolhimento funcionou neste novo prédio até 1812, quando foi transferido para o Largo da Misericórdia, em prédio onde funcionaria, depois, a Escola de Medicina.

[4] MEIRINHO: cargo criado em 1534, cuja nomeação cabia ao capitão donatário e fazia parte da estrutura judiciária do Império português. Sua principal atribuição era auxiliar o ouvidor ou juízes ordinários em suas funções. Atuavam como oficiais da justiça, fazendo diligências e prendendo suspeitos. Houve a nomeação de meirinhos em diversas funções dentro da estrutura administrativa da colônia, para auxiliar as cadeias, as companhias de ordenanças, a Casa da Relação do Brasil, as Alfândegas, o provedor das Minas, depois Intendente do Ouro, e até mesmo o provedor dos defuntos.

[5] DIVÓRCIO: separação entre casais realizada por meio de processo, necessitando de autorização eclesiástica para ser impetrado e julgado pelo vigário-geral no tribunal da diocese. No período colonial, o divórcio era concedido em casos de faltas graves, como o adultério, que comprometia a honra do cônjuge e da família. Após apresentação da queixa ao Juízo Eclesiástico, a mulher ficava “depositada” na casa de parentes, para onde levava seus objetos de uso pessoal, até o final do litígio. Segundo a Maria Beatriz Nizza, as mulheres também poderiam pedir o divórcio em casos como os de adultério. “Enquanto na Capitania de São Paulo as mulheres não encontravam qualquer dificuldade em iniciar uma ação de divórcio, saindo de casa para um "depósito" numa casa honrada, geralmente de parentes, onde aguardavam a sentença, que lhes era quase sempre favorável, na opulenta Capitania da Bahia eram frequentes os obstáculos às ações de divórcio intentadas pelas mulheres, pois as fortunas eram maiores e os maridos temiam a divisão dos bens entre os cônjuges separados por uma sentença do Tribunal Eclesiástico.” https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1763

[6] PROSTITUIR-SE: Nas sociedades primitivas, a ausência de obstáculos à sexualidade tornava desnecessária a configuração de qualquer forma de prostituição. Esta seria, portanto, constitutiva do processo de socialização das civilizações antigas, com o surgimento da propriedade privada e o estabelecimento da monogamia e da sociedade patriarcal, fundada na subordinação das mulheres, públicas ou privadas, pela família, respaldada na figura do homem. Foi nas civilizações avançadas da Antiguidade que a prostituição se desenvolveu sob a forma tipicamente comercializada. No Brasil, a prática foi uma constante no período colonial. As primeiras prostitutas desembarcaram na América portuguesa ainda no primeiro século da colonização, estimuladas pelo Coroa portuguesa, que buscava, com a vinda de mulheres brancas, barrar a crescente mestiçagem entre homens brancos e indígenas. Prática tolerada na sociedade colonial, foram úteis para a valorização e consolidação do seu oposto: as mulheres “puras” ditas moças de família. Tornou-se uma forma de trabalho tanto para as mulheres que procuravam garantir sua sobrevivência, quanto para os senhores de escravos que exploravam sexualmente as cativas. O ato de prostituir-se não era considerado uma atividade criminosa no Brasil colonial, no entanto, alguns preceitos básicos deveriam ser respeitados, como não manter relações com outras mulheres ou parentes, não induzir que uma filha também se prostituísse e, ainda, não abandonar o caráter esporádico das relações, evitando gerar uma acusação de concubinato. As prostitutas, circulando livremente pelos logradouros e recebendo homens em suas casas, viviam uma realidade diretamente oposta à das mulheres ditas honradas, que aguardavam pelo casamento.

[7] VIANA, PAULO FERNANDES (1757-1821): Nascido no Rio de Janeiro, Paulo Fernandes Viana era filho de Lourenço Fernandes Viana, comerciante de grosso trato, e de Maria do Loreto Nascente. Casou-se com Luiza Rosa Carneiro da Costa, da eminente família Carneiro Leão, proprietária de terras e escravos que teve grande importância na política do país já independente. Formou-se em Leis em Coimbra em 1778, onde exerceu primeiro a magistratura, e no final do Setecentos foi intendente do ouro em Sabará. Desembargador da Relação do Rio de Janeiro (1800) e depois do Porto (1804), e ouvidor-geral do crime da Corte foi nomeado intendente geral da Polícia da Corte pelo alvará de 10 de maio de 1808. De acordo com o alvará, o intendente da Polícia da Corte do Brasil possuía jurisdição ampla e ilimitada, estando a ele submetidos os ministros criminais e cíveis. Exercendo este cargo durante doze anos, atuou como uma espécie de ministro da ordem e segurança pública. Durante as guerras napoleônicas, dispensou atenção especial à censura de livros e impressos, com o intuito de impedir a circulação dos textos de conteúdo revolucionário. Tinha sob seu controle todos os órgãos policiais do Brasil, inclusive ouvidores gerais, alcaides maiores e menores, corregedores, inquiridores, meirinhos e capitães de estradas e assaltos. Foi durante a sua gestão que ocorreu a organização da Guarda Real da Polícia da Corte em 1809, destinada à vigilância policial da cidade do Rio de Janeiro. Passado o período de maior preocupação com a influência dos estrangeiros e suas ideias, Fernandes Viana passou a se ocupar intensamente com policiamento das ruas do Rio de Janeiro, intensificando as rondas nos bairros, em conjunto com os juízes do crime, buscando controlar a ação de assaltantes. Além disso, obrigava moradores que apresentavam comportamento desordeiro ou conflituoso a assinarem termos de bem viver – mecanismo legal, produzido pelo Estado brasileiro como forma de controle social, esses termos poderiam ser por embriaguez, prostituição, irregularidade de conduta, vadiagem, entre outros. Perseguiu intensamente os desordeiros de uma forma geral, e os negros e os pardos em particular, pelas práticas de jogos de casquinha a capoeiragem, pelos ajuntamentos em tavernas e pelas brigas nas quais estavam envolvidos. Fernandes Viana foi destituído do cargo em fevereiro de 1821, por ocasião do movimento constitucional no Rio de Janeiro que via no intendente um representante do despotismo e do servilismo colonial contra o qual lutavam. Quando a Corte partiu de volta para Portugal, Viana ficou no país e morreu em maio desse mesmo ano. Foi comendador da Ordem de Cristo e da Ordem da Conceição de Vila Viçosa, seu filho, de mesmo nome, foi agraciado com o título de barão de São Simão.

 

Sugestões de uso em sala de aula:

Utilização(ões) possível(is):
- No eixo temático sobre a “História das relações sociais da cultura e do trabalho”.
- No eixo temático sobre a “História das representações e das relações de poder”.


Ao tratar dos seguintes conteúdos:

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- A manutenção do sistema colonial
- Estrutura administrativa colonial
- Brasil colonial: sociedade, delitos e transgressões

 

Crime de adultério

Carta do conselheiro corregedor do Crime da Corte e Casa ao príncipe regente d. João sobre a prisão de Ana Rosa, acusada de fugir de casa. A prisão foi feita a pedido de seu marido, ocorrendo em uma casa da cidade, na presença de um homem quase despido. Presa em flagrante, a mulher confessou seu adultério, pedindo perdão ao cônjuge. Crime considerado de grave condenação na época, o adultério implicava em danos morais à família e ao Estado.

 

Conjunto documental: Tribunal de Desembargo do Paço
Notação: caixa 219, pct. 02
Data-limite: 1808-1828
Título do fundo: Mesa do Desembargo do Paço
Código do fundo: 4K
Argumento de pesquisa: família, adultério
Data do documento: 3 de agosto de 1808
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): -

 

“Senhor,

A suplicante Ana Rosa fugiu da companhia do marido trazendo consigo uma escrava, e roupas, e foi presa com o adúltero[1] em uma casa desta cidade, e os oficiais o acharam quase despido, tendo só vestido uma camisa de mulher, e ela se lançou aos pés do marido, e confessando o delito, queria que lhe perdoasse. Ele, contudo, a fez prender, e prossegue na acusação. A prova que os autos subministram é ilegível para grave condenação; o crime (...) é de muita gravidade pelos danos que produziu na família[2] e o ilegível ao Estado, (...) O parágrafo 21 do Regimento desta Mesa[3] , e quanto a sua prenhez consta esse ser verdadeira, e que este motivo merece compaixão, e que na prisão que ainda não tem comodidades não pode parir (...)

E tanto me pereceu indeferível o requerimento, V.S., porém deferiu (...).

Rio 3 de agosto de 1808. O Conselho Corregedor do Crime da Corte e Casa[4].”

 

[1] ADULTÉRIO: de acordo com o direito romano, quando o adultério era cometido pela mulher permitia-se ao marido traído “lavar com sangue” a sua honra. Mas, para que os homens fossem punidos, era necessária prova material de que ele estivesse incurso no que se chamava “concubinagem franca” com a mulher, pois relações passageiras, pequenos desvios e alguns pecadilhos eram tolerados. Considerada uma falta grave desde o Concílio de Trento (1545-1563), a Igreja reconheceu a possibilidade de separação permanente dos consortes, sendo um dos motivos mais alegados para o “divórcio”, uma vez comprovada a traição.

[2] FAMÍLIA: uma das principais instituições do Brasil colonial, a família foi marcada pela pluralidade e por experiências diversas, decorrentes de fatores como regionalização, origem social, gênero e etnia. Dentre as diversas camadas sociais, destacam-se as famílias patriarcais, que se tornaram as “poderosas instituições econômicas e políticas” do período. Através de casamentos e alianças, estas famílias criaram verdadeiros núcleos de poder, cuja estrutura fundiária serviu-lhes de base econômica, constituindo-se uma das principais heranças do período colonial. Uma interpretação clássica é a do sociólogo Gilberto Freyre, para quem a colonização do Brasil teve como pilar social a família patriarcal. O chefe da família e senhor de terras e escravos era a autoridade máxima, seguido de seus filhos, mulher, filhos bastardos, empregados, escravos domésticos e na base da pirâmide hierárquica, os escravos da lavoura. Ou seja, a instituição família não se restringia apenas ao núcleo formado por pai, mãe e filhos, mas faz referência a todos – grande número de criados, parentes, aderentes, agregados e escravos – que giram em torno do núcleo centralizador dos vários tipos de relação: o patriarca. Para o autor, a família teve papel central na formação do país, o “grande fator colonizador”, que povoou e tornou produtivas as terras descobertas. E, devido à distância do Estado luso, a família colonial brasileira transferiu o exercício de “mando” das relações privadas para o domínio público, ou seja, para o exercício político. O chefe de família também seria chefe de Estado, dividindo seu foco de atuação entre a casa e o governo. O governo da casa/ família, pautado na violência e submissão ao pater familia, refletia-se nas relações de poder entre o que Ilmar Rohloff de Mattos chamou de mundo do governo e mundo do trabalho, ou seja, os escravos. Trazer a ordem entre dominantes e dominados, assim como acontecia dentro da família, era manter, através de um controle que se exercia continuamente, a situação de classe dominante da elite econômica. Freire foi o grande idealizador da família patriarcal brasileira, considerando-a paradigmática do nordeste açucareiro. No entanto, afastado do contexto do engenho, existiam formas plurais de família. Em São Paulo e Minas Gerais, por exemplo, predominou a família nuclear (pais e filhos), além de um considerável número de famílias chefiadas por mulheres – a ausência dos homens é explicada pela necessidade econômica de sair em busca de riquezas, como no caso das bandeiras ou dos mascates. No Brasil colonial uma variedade de arranjos familiares se fez presente, independente da formalização do casamento, que usualmente se aplicava às famílias mais abastadas. Nas décadas de 1950 e 1960 autores como Florestan Fernandes e Roger Bastide apostaram na inexistência de famílias escravas, dada a superioridade numérica da população masculina e à opressão do cativeiro. Posteriormente Katia Matoso em Ser escravo no Brasil sugeriu que, a despeito da violência dos senhores, não deixou de haver laços de solidariedade entre os escravizados, ainda que não contestasse as teses anteriores. Em décadas recentes diversos estudos mostraram a constituição de famílias escravas tanto no Oeste paulista quanto no Vale do Paraíba no século XIX, com casamentos formais e núcleos familiares extensos (SLENES,Robert W., FARIA, Sheila de Castro. Família escrava e trabalho. Tempo, Vol. 3 - n° 6, Dezembro de 1998. https://www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/artg6-4.pdf). Finalmente, deve-se lembrar da união do português e da mulher indígena. Portanto, é fundamental considerarmos o dinamismo das formações familiares na América portuguesa, ainda que marcadamente patriarcal.

[3] MESA DO DESEMBARGO DO PAÇO E DA CONSCIÊNCIA E ORDENS (RIO DE JANEIRO): criada no Rio de Janeiro, após a transferência da Corte portuguesa ao Brasil, pelo alvará de 22 de abril de 1808, era um órgão superior da administração judiciária. O recém-criado tribunal encarregava-se dos negócios que, em Portugal, pertenciam a quatro secretarias: os tribunais da Mesa do Desembargo do Paço, da Mesa da Consciência e Ordens, do Conselho do Ultramar e da Chancelaria-Mor da Corte e do Reino. O alvará de criação do Desembargo do Paço e da Mesa da Consciência e Ordens, definia ambos como um mesmo tribunal, no entanto, na prática, mantiveram funcionamento e normas distintas. Referente ao Conselho Ultramarino, sua jurisdição englobava apenas os temas que não fossem militares, uma vez que estes já eram contemplados pelo Supremo Conselho Militar, uma de suas atribuições foi a confirmação das sesmarias da Corte e província do Rio de Janeiro, que até então eram dadas pelos vice-reis, pelos governadores e pelos capitães-generais de diversas capitanias.

[4] CORREGEDOR DO CRIME DA CORTE E CASA: magistrado superior criminal, o cargo estava previsto como um dos ministros que integravam a Casa de Suplicação. Também servia à Casa Real, e atuava na comarca onde estava instalada a Corte, comandando, em matéria de justiça, as vilas da região.

 
 
Sugestões de uso em sala de aula
Utilização(ões) possível(is):
- No eixo temático sobre a “História das relações sociais da cultura e do trabalho”.
- No eixo temático sobre a “História das representações e das relações de poder”.

Ao tratar dos seguintes conteúdos:
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- Estrutura administrativa colonial
- Brasil colonial: sociedade, delitos e transgressões

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