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Comentário

Escrito por cotin | Publicado: Sexta, 23 de Fevereiro de 2018, 13h34 | Última atualização em Quarta, 30 de Mai de 2018, 13h25

Renata Klautau Malcher de Araújo

Uma vez que a palavra cidade tem origem no latim civitate é possível dizer-se que, ao menos no campo linguístico, a cidade surge em Portugal com a colonização romana. Tal é em boa parte verdade, embora, evidentemente, o território que viria a ser Portugal tenha tido longa ocupação anterior. Identificam-se as matrizes da ocupação castreja no norte ou os contatos com outros colonizadores (gregos, fenícios) na área do mediterrâneo. No entanto, no conjunto do povoamento pré-romano não terão havido elementos unificadores que pudessem definir a estrutura de cidades. Assim, a romanização é o primeiro dado da efetiva "urbanização" do território, o primeiro "nivelamento da diversidade"[1], que é feito não apenas pela instituição dos núcleos urbanos, mas pela efetiva organização física e social do território.

Neste sentido, é importante notar que o termo civitate que vai dar origem à palavra cidade designava originalmente em latim não propriamente o espaço físico delimitado onde a população se instalava mas dizia respeito ao conjunto da ocupação territorial de uma determinada área. A civitate era assim toda uma região que envolvia não só o núcleo urbano, mas a área rural dele dependente, onde se distribuía a comunidade e onde eventualmente podiam haver outras povoações menores. Progressivamente a mesma palavra civitate foi então sendo associada ao centro urbano em si da região em causa, o oppidum mais populoso e onde se concentravam as infra-estruturas físicas e, sobretudo, onde se situava a sede do poder administrativo. Os dois significados terão permanecido em paralelo até que prevalecesse o sentido do centro urbano em detrimento da área territorial.

De certo modo tal evolução linguística corresponde ao próprio processo histórico de urbanização da península durante a romanização. Como indica Alarcão, esse processo dá-se tanto pela apropriação de alguns "lugares centrais" já existentes, como pela criação de outros, estabelecendo ali os pólos urbanos onde se vai implantar a rede de infra-estruturas que caracterizam a colonização romana[2]. A cidade surge assim como o principal agente de hierarquização estrutural do território, ao mesmo tempo em que também é a base física da estruturação social, política e cultural que a romanização impunha. Todos estes aspectos originários ficaram marcados na carga semântica da palavra cidade sendo ainda hoje evidentes. Por um lado, e respeitando em parte o sentido inicial do vocábulo latino, ressalta-se a idéia da cidade como uma instância hierarquicamente superior na organização do território. Foi por esta via que se seguiu a identificação das cidades como os núcleos urbanos com sede episcopal, noção que perdurou a partir da Idade Média e que se prolongou por todo o Antigo Regime.

É também essa a noção que permanece, sobretudo em Portugal, da cidade como um título de classificação dos núcleos urbanos de maior dimensão ou importância, que tem papel privilegiado nos contextos regionais e que aparecem numa categoria "superior" aos outros núcleos identificados pelos títulos de vila, povoação ou aldeia. Por outro lado, e ainda evocando o processo de evolução do termo latino, a cidade surge claramente identificada como o lugar de instalação do poder, o espaço onde este se concentra e de onde emana, o centro administrativo. E essa é possivelmente uma das mais significativas relações que o termo estabelece pois a idéia de cidade na cultura portuguesa está profundamente vincada por esta relação com a sede do poder, o que será especialmente sensível no processo de Expansão, como veremos.

Na sequência da desintegração do império romano as cidades fundadas na península entraram naturalmente em ruptura, registrando-se casos tanto de abandono de certos núcleos como de hiper-concentração noutros. No entanto, a gradual mas completa penetração do cristianismo, a partir do séc. II, voltará de certo modo a repor um padrão de romanização. Embora em termos físicos a apropriação cristã dos espaços urbanos tenha sido diferente da dos romanos, perdendo-se em vários casos a regularidade da matriz romana, no que diz respeito à organização territorial o modelo do império continuava de pé. E é por esta via que se irá estabilizar ao longo da baixa Idade Média a noção de cidade como o núcleo urbano onde está situada a sede do bispado. A ocupação muçulmana de parte do território português (séc. VIII-XI) irá, por sua vez, também marcar uma outra faceta da apropriação dos antigos núcleos romanos. De uma maneira geral estes serão as suas principais bases de instalação, aos quais irão no entanto desenvolver de acordo com a sua cultura, que embora com valores formais diferentes não deixava de ser marcadamente urbana.

Desde a Reconquista Cristã, que dá efetivamente início a Portugal como nação, e ao longo de toda a primeira dinastia (séc. XII-XIV) o conceito vigente de cidade terá sido quase que exclusivamente o de núcleo urbano que abrigava uma sede episcopal, no que se dava seguimento à tradição cristã. Embora as cidades (apenas 9 durante este período), coincidissem de fato com os maiores centros do país, aparentemente esta classificação não implicava numa desconsideração dos outros núcleos urbanos. Várias vilas integravam as cortes do reino incluindo-se entre elas alguns núcleos de grande importância econômica e populacional, como era o caso de Santarém. Os títulos quer de cidade, quer de vila, eram concedidos por carta de foral e apenas ao rei, em última instância, cabia tal prerrogativa (embora em determinadas circunstâncias o rei pudesse conceder a outrem o direito de criar vilas, como foi o caso das ordens militares no reino e como seria o caso dos capitães-donatários nas ilhas atlânticas e no Brasil).

A concessão de cartas de foral foi, na verdade, o principal instrumento da "construção" do território português. Os forais eram a base legal do município, o meio para estabelecer institucionalmente as cidades, e eram usados tanto no caso dos povoados previamente existentes que eram conquistados para o reino, como no caso da fundação de novos. É especialmente importante notar que a instituição de uma "cidade" ou "vila" não implicava necessariamente a criação física de um núcleo (uma vez que este podia já existir) mas tratava-se da imposição de uma instituição jurídica que integrava aquele espaço no reino. Assim, tal como na colonização romana, a criação da cidade é vista como um instrumento de expansão e controle do território. Note-se no entanto, que aqui não se tratava de submeter uma região ao conjunto do Império, como era no contexto romano, mas de conquistar independência e autonomia. De todos os modos, em ambos os casos, as cidades foram utilizadas para marcar as áreas de domínio: no primeiro momento para expandir os tentáculos do Império, no segundo, para "desenhar" as fronteiras do novo reino.

Este mesmo procedimento, em vários aspectos, repetir-se-á no contexto da Expansão, onde as cidades serão usadas como instrumento de conquista e estruturação dos territórios conquistados e também como agentes colonizadores em si pretendendo através delas impor novos modelos culturais. A gestão da concessão de cartas de foral por parte do rei representa também uma base profunda da urbanização portuguesa, desde que ela pode ser assim chamada. O Estado (o rei) é historicamente em Portugal um "urbanizador" e gestor da urbanização. Durante a primeira dinastia, e em especial nos reinados de D. Afonso III (1245-1279) e D. Dinis (1279-1325), foram instituídos, com as respectivas cartas de foral, a maior parte dos municípios até hoje existentes. São evidentes as diferenças no tipo de ação e distribuição dos municípios dependendo da região. No centro e sul (Alentejo e Algarve), de uma maneira geral, os novos municípios sobrepunham-se aos núcleos preexistentes que estavam sob domínio muçulmano, mantendo uma ocupação do território que em linhas gerais remontava já ao período romano, que valorizava as áreas centrais da península e os portos do sul. No norte (Minho e Trás-os-Montes), há um investimento crucial na criação de novos municípios, que pretendiam garantir a ocupação destas zonas despovoadas assim como marcar os limites com os reinos vizinhos de Espanha. O mesmo procedimento é tomado ao longo de toda a fronteira oriental, com o estabelecimento de uma série de vilas e castelos que literalmente desenham o território e fazem com que Portugal seja, dentre os países europeus, um dos que mais cedo definiu os seus limites. Estabelecida a fronteira interior o procedimento urbanizador seguinte é a progressiva ocupação das áreas do litoral, onde também se faz notar a ação régia, com a criação, durante os séculos XIII e XIV, de uma série de póvoas marítimas.

Em vários casos a criação dos novos núcleos implicou não apenas o estabelecimento do seu órgão de funcionamento jurídico, a câmara, como também o seu desenho formal no terreno. Nessas circunstâncias seguiram-se padrões morfológicos regulares, similares aos utilizados em outros países europeus no mesmo período, como é o caso das "bastides" francesas. Tratavam-se, no fundo, de operações de colonização interna incentivando o povoamento de determinadas áreas. Na conjuntura francesa era evidente o imperativo da defesa e as novas povoações caracterizavam-se pela existência quase sempre de muralhas e pelo processo regularizado de desenho das ruas e de distribuição de lotes. No caso português nem sempre existem as defesas externas, mas o processo de distribuição de lotes é similar (na sua maioria profundos e estreitos) e as ruas desenham-se de forma regular.

Quando, com a tomada de Ceuta em 1415, tem início o processo de Expansão, o quadro urbano do território português está estabilizado. As novas povoações vão-se fazer, sobretudo no ultramar. Grosso modo, mantinham-se as linhas mestras de ocupação definidas durante a primeira dinastia com uma maior concentração de núcleos urbanos no centro e sul e o despontar dos núcleos do litoral. Lisboa era naturalmente a maior cidade do país, seguida pelo Porto, Évora e Coimbra. Em termos formais é impossível estabelecer um padrão comum que abarque todos os núcleos urbanos, mas a maioria é, com vimos, produto de um longo passado que remonta aos romanos, passando pelos muçulmanos e pela retomada cristã. Este processo espelha-se não apenas na forma urbana, mas também na própria estrutura social das cidades onde convivem os dados que formaram a cultura portuguesa.

Na altura do descobrimento do Brasil, apesar de algum crescimento demográfico, as cidades e vilas principais eram ainda bastante pequenas em termos populacionais. Apenas 33 aglomerações urbanas tinham mais de 500 fogos (2000 a 2500 habitantes)[3]. Lisboa era a única que escapava a este quadro, concentrando, em 1527, cerca de 60.000 habitantes, num processo que teria contínuo crescimento, incrementado naturalmente pelo seu papel de capital do Império.

Dois momentos são especialmente marcantes na evolução urbana de Lisboa: o período manuelino e a reconstrução pombalina da cidade após o terremoto de 1755. Durante o reinado de D. Manuel I (1498-1521) Lisboa assiste a uma série de intervenções que moderniza o seu tecido urbano. Alargam-se algumas ruas e abrem-se novos eixos, estabilizam-se em termos formais as duas grandes praças da cidade, o Rossio e o Terreiro do Paço e, especialmente nesta última, voltada para o Tejo, são criados os grandes equipamentos urbanos a partir de onde se fazia a gestão do Império (a Ribeira das Naus, o Paço, a Alfândega). O sismo de 1755 viria atingir Lisboa com especial violência, abalando, sobretudo a sua zona central, a baixa. A reconstrução da capital é gerida politicamente pelo marquês de Pombal e executada pelos engenheiros militares do reino, tendo a frente Manuel da Maia, Eugênio dos Santos e Carlos Mardel. Trata-se de um dos mais importantes processos de desenho urbano do século XVIII que fez surgir dos escombros da cidade soterrada uma nova Lisboa. Com malha urbana regular e edifícios submetidos a uma rigorosa simetria, o projeto da reconstrução alia os dados da modernidade com a tradição procurando manter no desenho da cidade reconstruída os principais elementos da cidade destruída, em especial as duas grandes praças.

Além dos valores em si do projeto, não se pode deixar de considerar os elos que a reconstrução de Lisboa estabelece com o urbanismo da Expansão. As várias vilas e cidades fundadas por todo o império, e, sobretudo no Brasil, foram o fundamento da prática de uma verdadeira escola de arquitetura e urbanismo de que os engenheiros pombalinos eram os herdeiros e continuadores.É esta Lisboa, ainda em obras de reconstrução, que é o cenário da maioria dos documentos que se referem às cidades em Portugal que se encontram no Arquivo Nacional[4]. Escritos entre 1801 e 1819, os documentos, na maior parte dos casos, espelham a complicada conjuntura da capital durante os anos de ausência da corte. As principais preocupações dizem respeito, naturalmente, às questões de ordem pública. Viveram-se neste período as sucessivas ocupações francesas e a capital era palco de importantes disputas políticas entre os partidários da presença estrangeira e os que lhes resistiam. Percebe-se um clima de denúncia constante. Vários documentos se referem diretamente a estas questões ressaltando-se neste caso a importância cada vez maior dos meios de divulgação (a imprensa, os panfletos, etc.).

Mas por trás e para, além disso, a vivência urbana, a indiscutível herança, desde sempre apontada como traço de união entre a metrópole a colônia, é também visível nos documentos. Um interessante conjunto trata de questões relacionadas com a higiene urbana e com a iluminação pública que apontam para a continuidade dos cuidados da câmara na gestão do espaço urbano e que remetem para o quadro maior das preocupações higiênicas que viria marcar o urbanismo do século XIX. É especialmente significativo notar que estas mesmas preocupações também estão presentes na gestão do Rio de Janeiro, então convertido em capital do Império. 

[1] Cf. Walter Rossa. A Cidade Portuguesa, in "História da Arte Portuguesa" (dir. Paulo Pereira), vol. III. Lisboa : Círculo de Leitores, 1995.
[2]Cf. ALARCÃO, Jorge - A cidade Romana em Portugal. A formação de "lugares centrais" em Portugal: da Idade do Ferro à Romanização, In "Cidades e História", Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1992. 
[3] Orlando Ribeiro. Cidade, in "Dicionário da História de Portugal", vol. II. Porto : Livraria Figueirinhas, 1992, pp. 60-65.
[4] No conjunto documental da Secretaria de Estado do Ministério do Reino, reunidos em coleção intitulada "Negócios de Portugal" (código de fundo 59), encontram-se cerca de 27 documentos que tem "cidades (Portugal)" como argumento de pesquisa.

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