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Comentário

Escrito por cotin | Publicado: Sexta, 23 de Fevereiro de 2018, 18h47 | Última atualização em Quarta, 08 de Agosto de 2018, 20h39

Monique Sochaczewski
Doutora em História, Política e Bens Culturais pelo CPDOC/FGV
Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares -
Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME).

 

Portugal contou com presença moura em seu território por mais de cinco séculos; na época áurea de sua expansão marítima encontrou-se e por vezes guerreou com muçulmanos árabes, berberes, persas, mongóis e turcos; envolveu africanos muçulmanos - os chamados malês - no tráfico ultramarino de escravizados entre África e América; além de ter feito grande parte do comércio lucrativo com muçulmanos da Ásia, no século XVI. A ligação do país com o mundo árabe e islâmico é, portanto, antiga e profunda.

O Arquivo Nacional conserva em seu acervo com relevante documentação a este respeito, referente à virada do século XVIII para o XIX. Antes de apresentar e refletir sobre o material em questão, vale aqui fazer um breve panorama das relações de Portugal com entidades muçulmanas como o Império Otomano, o Marrocos e a Pérsia, para que melhor se compreenda o pano de fundo em que se insere a documentação ali depositada.

O Império Otomano perdurou de 1299 a 1922. Foi um dos mais longevos e vastos impérios da história, mas, apesar da clara relevância e marcas deixadas em três continentes, ainda conta com estudos incipientes a partir do Brasil e também de Portugal. Seu auge se deu no século XVI, sobretudo durante o sultanato de Suleiman, "o magnífico" (conhecido na Turquia como Suleiman, "o legislador"), que governou o império de 1520 a 1566. O século de ouro otomano foi também o do apogeu ibérico, com Portugal e Espanha expandindo-se pelo mundo.

Sendo justamente impérios em época de franca expansão, não foram poucos os embates que tiveram, sobretudo na região do leste da África, Mar Vermelho, Golfo Pérsico, Índias e mesmo no Mediterrâneo. Se por um lado Portugal ampliava sua presença global justamente no período em que os "mouros" eram finalmente expulsos da Península Ibérica, por outro, os muçulmanos otomanos liderados pelo sultão Mehmet II tomavam Constantinopla dos bizantinos em 1453, forçando os cristãos a busca por um caminho alternativo para as Índias, e também passavam a dominar territórios nos Bálcãs. A conquista desta região se deu em um crescente ameaçador: em 1389 haviam tomado Kosovo, em 1463 foi a vez da Bósnia, em 1526 tomaram um pedaço da Hungria na batalha de Mohacs e em 1529 tentaram pela primeira vez tomar Viena.

A nova investida "moura" fazia ressurgir o "velho inimigo muçulmano", que como ressalta Fabio Baladez (2015), se mostrava como uma ameaça à Europa e reacendia o "trauma do Islã" e a "ideologia de Cruzada". O Islã intimidava militarmente o Ocidente e, em 1453 mesmo, o Papa Nicolau V emitiu uma bula pedindo uma guerra contra os otomanos e chamando o sultão Mehmet II de "filho de Satã". Os otomanos integravam na realidade um império multiétnico, multireligioso, multilinguístico e multicultural, com larga presença de cristãos ortodoxos, armênios e levantinos, além de judeus e outras minorias, mas passaram a ser cada vez mais descritos em crônicas e afins como "turcos", como o "outro", a antítese de tudo o que a Europa cristã representava.

A isso se juntava a questão prática de serem em grande parte muçulmanos aqueles que representavam empecilho, ameaça ou concorrência imediata aos portugueses em lugares chaves nas Índias. Em 1502 os portugueses já se estabeleceram ali e iniciaram campanha naval para dominar todo o comércio entre estas e a Europa e a partir da rota do sul da África que já controlavam. Em 1507 capturaram Socota no Golfo de Aden e no ano seguinte tomaram Hormuz, no Golfo Pérsico, causando assim forte impacto econômico aos mamelucos que dominavam o Cairo (Shaw, 1979, p. 83). Inicialmente os otomanos enviaram armas, munição e apoio naval aos mamelucos, mas em 1517 eles próprios acabaram tomando seus domínios, que incluíam Meca e Medina, cidades sagradas do Islã.
Em 1509 portugueses enfrentaram tropas também apoiadas pelos otomanos em Diu, e no ano seguinte em Goa. Para além dos conflitos bélicos, em que foram bastante bem sucedidos e impuseram importantes derrotas aos otomanos, usou-se também amplamente uma retórica "anti-turca", presente, sobretudo, em crônicas, a fim de desumanizá-los representando-os como crueis, violentos, corruptos, insanos, e adeptos de uma "falsa religião" (Baladez, 2015).

Os otomanos passaram a dominar ao longo do século XVI o norte da África, também chamado de Magreb. Nessa região viviam berberes que praticavam a pirataria no Mediterrâneo, saqueavam portos, roubavam embarcações e sequestravam estrangeiros. Desde então o corso era motivo de tensão entre o Império Otomano e as potências europeias. O mesmo também se dava com o Marrocos, mas este era na realidade um sultanato independente não submetido ao Império Otomano. Os portugueses também tiveram diversos conflitos com os marroquinos, sendo a batalha de Alcacer-Quibir, em 1578, a mais simbólica já que foi nela que desapareceu o rei d. Sebastião.

Se com otomanos e seus aliados nas Índias, bem como marroquinos, a lida conflituosa era com muçulmanos sunitas, o encontro com os persas foi diferente. Quando os portugueses chegaram à região de Hormuz, em 1507, o império persa vivia um momento crucial de sua história, quando a dinastia dos safávidas ascendia ao poder e impunha o islã xiita duodecimal[1] ao seu reino. Portugal foi o primeiro país a enviar embaixador ao império em questão, em 1513, e interagiu de maneira relativamente pacífica com este até 1622.

O interessante da relação de certa forma harmoniosa dos portugueses com os persas é que se verifica com ela que na realidade a linguagem religiosa e civilizacional que desumanizava os muçulmanos (leia-se "turcos") era na realidade mais retórica do que prática. A rivalidade entre sunitas e xiitas se mostrou útil aos portugueses, pois não havia uma resposta unida de todos os povos muçulmanos a seus interesses nas regiões em que viviam. Os persas não eram inimigos e não foram ofendidos ou desacreditados em crônicas portuguesas, por exemplo (Baladez, 2015, p. 27 e 40-41).

Como se vê, em diversos momentos, há clara conexão entre Portugal, o Império Otomano e o mundo islâmico mais amplo. Já há razoável histórico de estudos acadêmicos a este respeito feitos a partir de terras portuguesas ou por portugueses, embora reste muito o que desenvolver. Dejanirah Couto, portuguesa radicada em Paris onde leciona na École de Pratique des Hautes Études talvez seja a grande autoridade nas interações entre portugueses, otomanos e persas nos séculos XVI e XVII, debruçando-se sobre aspectos políticos, sociais e diplomáticos destas.[2] António Dias Farinha, diretor do Instituto de Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade de Lisboa, é autor também de aprofundadas pesquisas sobre as relações de Portugal com o Golfo Pérsico e também com o Marrocos.
Paula Limão defendeu a tese na Universidade de Lisboa "Portugal e o império turco na área do Mediterrâneo: século XV", nos anos 1990, que é ainda referência. A Universidade de Évora conta com um mestrado em História do Mediterrâneo e Medieval e recentemente lançou a Revista de Estudos Judaicos e Islâmicos Hamsa. Esta se encontra em seu segundo número, e vem desempenhando relevante papel de congregar e dar a conhecer as pesquisas feitas sobre "judeus e muçulmanos de matriz ibérica", a partir, sobretudo, dos domínios da História, Língua e Literatura [3]

Na Espanha os estudos e levantamentos de fontes aparentemente já andam mais adiantados. No Departamento de Estudos Árabes e Islâmicos e Estudos Orientais da Universidade Autônoma de Madri, lecionam quinze docentes que atuam em várias linhas de pesquisa que vão desde a história do Islã ao Islã na Espanha e Europa. A Universidade de Alcalá, por sua vez, conta com o alentado projeto do professor de História Moderna, Emilio Sola, "Archivo de la Frontera", que vem, entre várias atividades, sistematicamente publicando em seu portal transcrições comentadas de documentos, bem como análises mais aprofundadas sobre as relações otomano-espanholas no século XVI.[4] Pablo Martin Asuero, porém, é o acadêmico espanhol com ampla pesquisa e vivência na Turquia e Oriente Médio, tendo lecionado nas filiais do Instituto Cervantes de Beirute, Madri e Istambul, e publicado amplamente sobre as relações entre Espanha e Império Otomano, bem como relatos de viajantes espanhois em terras otomanas e história dos judeus expulsos da Península Ibérica que se abrigaram em terras otomanas, os chamados sefaradim.

Pesquisadores brasileiros, porém, ainda se iniciam nas investigações sobre as relações de Portugal e do Brasil com o Império Otomano. Paulo Daniel Farah (2008) e Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto (2010) foram os primeiros a ressaltar a importância de se estudar a história do Império do Brasil para além das fontes em línguas europeias e de se contextualizar a imigração médio-oriental para o Brasil com a fase final otomana. Em minha própria tese de doutorado (Sochaczewski, 2012), investiguei os contrastes e conexões entre o Brasil e o Império Otomano cotejando fontes brasileiras e otomanas, estas últimas abrigadas nos Arquivos do Primeiro-Ministro, em Istambul. Fabio Baladez, porém, é o primeiro pesquisador brasileiro a se instalar na antiga capital otomana e de lá realiza pesquisas sobre as relações entre o Império Otomano e Portugal.

No século XVIII e início do XIX, as relações entre Portugal e Império Otomano perderam em grande medida o componente militar e ganharam vieses político e diplomático. Nem um nem outro eram mais potências de primeira grandeza. Os documentos depositados no Arquivo Nacional brasileiro dizem justamente respeito a esta fase. Trata-se de conjuntos documentais da Secretaria de Estado do Ministério do Reino e das Memórias de Domingos Vandelli, restritos ao período de 1742 a 1821.

No conjunto da Secretaria de Estado do Ministério do Reino, têm-se uma relação de tratados e informações sobre negociações diplomáticas levadas a cabo entre o  Império Otomano e potências como a Rússia e a Espanha, servindo aparentemente de base para que Portugal estreitasse suas próprias relações com a Porta Otomana. Estão lá o tratado de paz assinado em 1774, o ato de 1783, o tratado de aliança defensiva de 1791. Segundo informações do Instituto Diplomático Português, entre 1804 e 1805, foi o embaixador russo em Constantinopla que, a mando do czar, passava a defender "o interesse português no estabelecimento de relações diplomáticas com o Império Otomano". A ambição portuguesa era a de não só ter condições pacíficas de navegabilidade do Mar Mediterrâneo, como acessar o Mar Negro. Almejava ainda obter "capitulações", como a dos russos e de outras potências europeias, que estipulava vantagens e privilégios comerciais.[5] O Tratado de paz assinado entre a Espanha e o Império Otomano em 1782, também está ali copiado, e servia aparentemente de base para reflexões sobre um acordo de paz "em vista dos efeitos da Revolução Francesa sobre o continente europeu".
Como já apontado, desde o século XVI a atuação dos corsários nas regências de Argel, Túnis e Trípoli, que faziam então parte do Império Otomano, era uma questão de suma importância para Portugal. Parte da documentação do conjunto "Secretaria de Estado do Ministério do Reino" diz respeito ao envio de emissário para estas cidades a fim de negociar a "restituição de cativos" e retomada de embarcações sequestradas. Após a invasão francesa de Portugal, corsários argelinos tinham inclusive aprisionado embarcações portuguesas no Atlântico e um dos temas de negociações com a Grã-Bretanha dizia respeito de proteger o comércio e a costa de Portugal, como também ajudar na paz ou ao menos armistício com a regência de Argel.


O conjunto "Memórias de Domingos Vandelli" pertence ao naturalista e químico, natural de Pádua, mas que fez carreira na Universidade de Coimbra. Os documentos de 1796, em especial, apresentam reflexões sobre as relações de Portugal com o Marrocos. Vandelli entendia que se deveria cultivar o sultão local com o envio de presentes e criar uma estratégia de proximidade que assegurasse apoio militar. O Marrocos poderia fornecer produtos como gado e trigo para Portugal, como também deveria ser monitorado de perto a fim de evitar que praticasse o corso contra embarcações portuguesas.

Vê-se na documentação que se esboçava uma aproximação com o Império Otomano na virada do século XVIII para o XIX, mas um Tratado de Comércio e Navegação, que de fato estabeleceria as relações diplomáticas entre ambas as monarquias, só seria assinado em 20 de março de 1843. Em junho do ano seguinte, José Maurício Correia Henriques, tornou-se o primeiro representante português residente na capital otomana.[6] Logo seria sucedido por Luiz Carlos Rebello que por cerca de uma década atuou como cônsul geral na capital otomana.[7] Essa experiência portuguesa prévia com a diplomacia otomana serviria de ajuda aos primeiros contatos entre o Brasil e a Sublime Porta, nos anos de 1850. O primeiro representante português na região, André Papoulani, sediado em Alexandria, servira a Lisboa anteriormente, assim como o dragomano, Antônio de Summerer. Foi o chamado "comandante Rebello" que o indicou ao Brasil quando de sua primeira tentativa de aproximação com o Império Otomano, da necessidade de se estabelecer relações oficiais para que se pudesse de fato ter troca de representantes oficiais (Sochaczewski, 2012).

A história das relações do Império Otomano com Portugal ainda merece mais atenção e esforço. A documentação tratada aqui certamente pode servir de estímulo para que também a partir do Brasil se desenrolem as relações entre ambos os impérios e as bases que deixaram para a aproximação brasileira.

[1]De forma diferente dos sunitas, esse dogma se caracteriza por conferir importância ao genro do profeta Muhammad, Ali, e a seus descendentes - 12 imams e um último que não teria morrido, mas estaria "escondido" e cujo retorno marcaria a chegada de um reino de justiça.

[2] Disponível em <http://www.publico.pt/temas/jornal/portugueses-e-persas-500-anos-de-fascinio-265739>. Acesso em 3/12/2015.

[3] Disponível em: <http://www.hamsa.cidehus.uevora.pt>. Acesso em: 2/12/2015.

[4] Emilio Sola. La plataforma del Archivo de la frontera y el Imperio Otomano. In: Coleccion Archivos Mediterraneo, Clásicos Minimos, 2013. Disponível em: <http://www.archivodelafrontera.com/bibliografia/la-plataforma-del-archivo-de-la-frontera-y-el-imperio-otomano>. Acesso em 4/12/2015.

[5] Disponível em: <https://idi.mne.pt/pt/titulares/31-relacoes-diplomaticas/348-relacoes-diplomaticas-portugal-turquia.html>. Acesso em 4/12/2015.

[6] Disponível em: <https://idi.mne.pt/pt/titulares/31-relacoes-diplomaticas/348-relacoes-diplomaticas-portugal-turquia.html>. Acesso em 2/12/2015.

[7] Disponível em: <https://idi.mne.pt/pt/titulares/654-representacao-na-turquia-titulares.html.  Acesso em: 4/12/2015.

Bibliografia

BALADEZ, Fabio. The image of the turks and muslims in the sixteenth century portuguese chronicles. Dissertação de Mestrado. Istambul: Fatih University, 2015.

FARAH, Paulo Daniel Elias. As conexões entre o Império do Brasil e o Império Otomano no século XIX e utilização de fontes para além do espaço da eurofonia. In: MACANJO, Lorenzo et alli. Histórias conectadas e dinâmicas pós-coloniais. Curitiba: Fundação Araucária, 2008. p.75-95.

PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Árabes no Rio de Janeiro: uma identidade plural. Rio de Janeiro: Instituto Cidade Viva, 2010.

SHAW, Stanford. History of the Ottoman Empire and modern Turkey. Cambridge (UK): Cambridge University Press, 1976. v. 1.

SOCHACZEWSKI, Monique. O Brasil, o Império Otomano e a sociedade internacional: contrastes e conexões (1850-1919). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2012.

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