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Diplomacia e Política Externa na América Joanina

Sala de aula

Escrito por Mirian Lopes Cardia | Publicado: Quarta, 23 de Mai de 2018, 14h06 | Última atualização em Segunda, 11 de Junho de 2018, 13h31

Carlota Joaquina e o Rio da Prata

Carta dirigida a princesa Calota Joaquina, escrita por d. João VI, na qual ela é aconselhada a repensar os planos de invasão e tomada do Rio da Prata, evitando assim uma indisposição com o governo estabelecido na Espanha e a monarquia Britânica.

 

Conjunto documental: Alberto do Rego Rangel
Notação: Ap-54 cx11
Data-limite: `1818-1821]
Título do fundo: Alberto do Rego Rangel
Código do fundo: OS
Argumento de pesquisa: relações exteriores

 

Princesa[1],

Não ignora a parte que tanto deve interessá-la, seja pelos interesses de sua Real família[2], seja pelos dos meus amados filhos. Por este motivo não pode admirar-se que lhe diga que sobre as suas relações com os espanhóis do Rio da Prata[3], e da América espanhola nada devo decidir ou obrar sem ir de acordo com sua Majestade Britânica e com o governo estabelecido em Espanha, e pode acreditar que em tempo oportuno nada lhe [ilegível] ignorar, para que possa tomar medidas sábias, prudentes, e que não comprometam a dignidade, e interesses da minha real Coroa. O seu plano de uma aparição no Rio da Prata, para segurar aquelas províncias à monarquia espanhola, além de fazer sofrer o meu coração pela ideia, a que necessariamente reúne de separar-nos por algum tempo, tem também contra si o que justamente `ilegível`, e com toda prudência, e moderação representa o ministro do meu antigo e fiel aliado Sua Majestade Britânica, acreditado junto a minha real pessoa; e por consequência é absolutamente inadmissível; nem por ora o estado e aquelas províncias exigem uma resolução tão decidida, e que pelo necessário aparato, com que deveria tomar-se, ofenderia os olhos de gente tímida, e daria lugar aos discursos dos mal-intencionados que procurariam envenenar a pureza das nossas intenções e nos atribuiriam vistas, e planos ambiciosos, bem alheios aos princípios, que animam os nossos sensíveis corações. Estes são os meus sentimentos, que estou certo servirão de norma a sua conduta e o `ilegível] de abençoar resoluções tão moderadas, tão despidas de toda ambição, e não há de esquecer-se nem de favorecer ainda a Real Casa de Bourbon, nem de proteger os direitos da nossa Real família[4].

Sem remetente, sem destinatário e sem data.

 

[1]CARLOTA JOAQUINA, D. (1775-1830): Carlota Joaquina Teresa Caetana de Bourbon e Bourbon era a filha primogênita do rei Carlos IV da Espanha e de sua esposa Maria Luísa de Parma. Casou-se em 1785, então com apenas 10 anos de idade, com o príncipe d. João, segundo filho da rainha de Portugal, d. Maria I. O primogênito da Coroa portuguesa, d. José, príncipe da Beira, veio a falecer em 1788, fazendo, assim, com que d. João se tornasse o primeiro na linha de sucessão ao trono Português; d. João tornou-se regente de fato em 1792, elevando Carlota à condição de princesa consorte de Portugal. Seu casamento com o príncipe herdeiro de Portugal foi marcado por desavenças, intrigas e boatos. Um dos momentos mais delicados desta relação deu-se em 1806, quando ocorre uma conspiração – chamada Conspiração de Alfeite – cuja intenção seria levá-la ao comando de Portugal. Aqueles que participaram e apoiaram a princesa alegavam que d. João se encontrava em meio a uma crise de profunda depressão, e como a Europa passava por uma crise política seria mais conveniente que a princesa assumisse o poder. Quando a conspiração veio a tona, ela foi considerada traidora e mantida em cárcere privado. Carlota Joaquina geralmente é descrita pelos que a estudam como uma personagem de temperamento forte, ambiciosa e com acentuada vocação política, uma mulher que não se enquadrava nos parâmetros conservadores da Corte lusitana. Nas questões relativas ao rio da Prata, teve uma participação forte e efetiva, defendendo os interesses coloniais de seus pais, chegando a idealizar a sua coroação em Buenos Aires. Cultivou muitos inimigos, como d. Rodrigo de Souza Coutinho, o conde de Linhares, encarregado das secretarias da Guerra e Negócios Estrangeiros; lorde Strangford, embaixador inglês em Lisboa; e lorde Canning, ministro das Relações Exteriores da Inglaterra. Estes tinham um projeto de construção de um amplo império na América do Sul, onde tornariam o Brasil um “empório” para mercadorias inglesas, destinadas ao consumo de todo o continente. Strangford não confiava em Carlota e, com o apoio do conde de Linhares, tentava afastar a sua influência do regente, boicotando qualquer atitude que a favorecesse politicamente. Carlota pretendia envolver seu marido na política colonial espanhola, atuando em seu próprio interesse e aproveitando-se das circunstâncias provocadas pela usurpação da Coroa espanhola por parte de Napoleão. Com o apoio do oficial da marinha inglesa Sidney Smith, ela elaborou um plano de tornar-se regente da Espanha, tendo o vice-reino do rio da Prata como sede da monarquia, plano este que nunca chegou a ser executado.

[2]CASA DE BOURBON: originária da região da atual França, reinou também na Espanha, além de deter ducados e títulos de nobreza em diversos países da Europa. Sua ascensão em território hispânico deu-se antes mesmo da unificação do estado espanhol, com a conquista do reino de Navarra por Henrique IV, rei de França, que substituiu a Casa de Valois. A dinastia seria derrubada e restaurada na Espanha diversas vezes ao longo da história, desde a subida de Felipe V ao trono espanhol, no início do século XVIII, até os dias atuais. A ascensão de Felipe V representou a predominância da região de Castella sobre outros reinos hispânicos, assim como a vitória do modelo centralista que se impôs durante o século XVIII.

[3]PRATA, RIO DA: descoberto pelo navegador espanhol João Dias de Solis em 1515, na busca por uma comunicação entre o oceano Atlântico e o Pacífico. O rio, como também seu estuário – na região da tríplice fronteira entre os atuais países Brasil, Uruguai e Argentina – recebeu o nome de Prata por inspiração de Sebastião Caboto, navegador italiano a serviço da Coroa espanhola, impressionado pela abundância deste metal na localidade. A região do rio da Prata foi alvo, durante o período de dominação colonial ibérica nas Américas, de intensas disputas entre as duas metrópoles (Portugal e Espanha), em função de sua importância econômica – jazidas de prata – e estratégica – principal via de acesso ao interior da América. Uma das consequências dessas intensas disputas pela região foi a quase ausência de uma ocupação política efetiva, já que se alternavam invasões de um lado ou de outro do rio – nas províncias de São Pedro do Rio Grande e na Colônia do Sacramento – que mais se assemelhavam a incursões de pilhagem do que tentativas de estabelecimento de domínio de autoridade. A fundação de Sacramento por Portugal em 1680 representou uma iniciativa para apoiar a ampliação dos limites do império até o rio da Prata. No entanto, a região foi palco de inúmeros processos de ocupação e, até sua independência política em 1825, fez parte de diferentes nações ou confederação de estados. O Tratado de Madrid não conseguiu solucionar as questões em torno da região e os portugueses continuaram a insistir na ideia de uma “fronteira natural,” que os levaria até o lado esquerdo do estuário. Interesses da coroa britânica na região agiam como fator complicador nos litígios entre Portugal e Espanha, interesses estes registrados e documentados desde o século XVIII em função de atividades mercantis daquela que era, à época, a nação que mais produzia e comercializava produtos manufaturados. A participação da Inglaterra na concepção do projeto de transmigração da corte portuguesa para o Brasil integrava as tentativas de estender a influência inglesa a outras regiões da América do Sul, embora tal atuação não significasse o apoio à ideia de formação de um bloco coeso na região, supostamente sob influência de Portugal. A Inglaterra fez dura oposição ao projeto de anexação da região cisplatina ao Reino do Brasil, projeto levado a cabo por d. João VI em 1821, e apoiou o movimento de independência do atual Uruguai, interessada na liberação e fragmentação completa das colônias espanholas.

[4] CASA DE BRAGANÇA: linhagem de duques iniciada pelo 8º conde de Barcelos, d. Afonso I (1380-1461), filho bastardo de d. João I e de dona Inês Perez Esteves. A Casa de Bragança foi a quarta dinastia de reis portugueses e subiu ao trono logo depois da Restauração, com d. João IV, em 1640, permanecendo no poder até a derrubada da monarquia em 1910. A família Bragança deu fim ao domínio de 60 anos dos Reis de Espanha (Casa de Habsburgo) sobre Portugal com a Guerra de Aclamação. No Brasil, a dinastia dominou todo o período do Império, governado por d. Pedro I (1822-1831) e d. Pedro II (1841-1889). Mas, o primeiro rei de Bragança a governar a partir do país foi d. João VI, monarca do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves (1808-1821), que aportou no Rio de Janeiro em 1808, em consequência da invasão de Napoleão a Portugal.

Flying Fish

Documento em que José Tomás Nabuco de Araújo esclarece a d. João VI o incidente acontecido no Pará, onde o contra-mestre e um marinheiro, todos de nacionalidade inglesa, foram presos sob a acusação de pirataria. No decorrer do processo depois de serem ouvidas muitas testemunhas estes foram julgados inocentes. O vice-cônsul inglês, porém exige uma indenização aos "donos e interessados" da galera Flying Fish, referente aos prejuízos causados pela retenção da galera no porto. O autor do documento se coloca contra o pagamento, defendendo que a soma exigida é "fantástica e exagerada"; José Thomaz justifica o envio dos processos ao rei esperando que este determine o que seja do seu agrado.

 

Conjunto documental: Generalidades - gabinete do ministro
Notação: IG1 8
Data-limite: 1819 - 1827
Título do fundo: Série Guerra
Código do fundo: DA
Argumento de pesquisa: Portugal, relações exteriores - Grã-Bretanha

 

Depois de ter dirigido a vossa excelência os meus ofícios de 11 de fevereiro próximo passado pelo ajudante de ordens deste governo José de Brito Inglês, teve lugar a correspondência oficial do governador de Barbados Lorde Combermere com este governo e a continuação que já se havia principiado com o vice-cônsul da nação britânica sobre o objeto de que trata o processo nº 3 cópia (L) cujo negócio vou fazer patente a vossa excelência em toda a sua luz.

Durante a minha ausência na Ilha de Marajó pelo motivo que referi a vossa excelência na minha carta de 11 de fevereiro se fez a denúncia constante do processo `ilegível] pela qual James Wormington, que foi mestre da galera Flying Fish, José Roman Harris, contra mestre e Alexandre Marr, marinheiro, todos vassalos de sua majestade britânica foram acusados de serem piratas[1] e os mesmos que tinham apresado a galera portuguesa Lorde Wellington, pertencente ao negociante desta praça João de Araújo Rozo, isto em consequência da delatação que fez Antônio de Moura Carvalho que vinha de passageiro na dita galera quando foi tomada, asseverando que conhecia perfeitamente aqueles três indivíduos por serem os mesmos que a tinham apresado.

Somou conhecimento deste negócio o desembargador ouvidor geral, o qual em Consequência procedeu a prisão dos três acusados e a apreensão dos papéis do dito Wormington.

 Estavam as coisas neste estado quando me recolhi a esta cidade na noite do dia 6 de janeiro. No dia 7 tomei conhecimento. No dia 8 recebi o primeiro ofício do vice-cônsul britânico cópia (A) e como julguei ser do meu dever não desprezar este negócio e procurar ter um verdadeiro conhecimento do fato que fazia o objeto da denúncia lhe dei a resposta constante do ofício cópia (B) e dirigi ao ouvidor o ofício cópia (F) por isso que os réus não apresentavam em sua defesa suficientes provas que os pudessem logo declarar inocentes. Foi preciso prosseguir em todas as diligências do estilo, e são as que constam do processo cópia (L). Como porém não era bastante a acusação que se tinha feito para se proceder contra os acusados e constando-me que estavam a chegar de Lisboa umas mulheres que tinham estado a bordo da dita galera, assim como uns marinheiros pertencentes a sua tripulação que também aqui se esperavam foi preciso esperar alguns dias até que chegassem uns, e outros ou para confirmarem a acusação ou para a desmentirem. Foi ela com efeito desmentida por todos como consta dos depoimentos a f.11 e 11v e f.14 e 15. do dito processo: em Consequência do que e do mais, que dele consta se lavrou em Junta de Justiça[2] e acordou f 15 verso, pelo qual os acusados foram julgados inocentes, mandados por em sua liberdade vindo por tanto a ultimar-se este negócio no espaço de dezenove dias, desde 2 de janeiro até 21 do dito mês.

Foi neste intervalo que o vice-cônsul britânico participou ao governador de Barbados este acontecimento, fazendo partir o `brigue] Fingal, de que faz menção no seu ofício cópia (A) com efeito no primeiro do corrente entra neste porto o `brigue] de guerra denominado o Raleigh comandado pelo capitão Bumgardt, o qual me entregou.

 O ofício do governador de Barbados Lord Combermere, cópia (M). Do meu ofício cópia (N) pode Vossa excelência ver a resposta que dei aquele governador e julguei ser a mais descente e adequada em tais circunstâncias; e recebida ela apenas se demorarão o tempo preciso para se refazerem de alguma `aguada] e se fizeram imediatamente à vela deste porto.

Durante a demora do brigue me dirigiu o vice-cônsul, o ofício cópia (O) exigindo o pagamento das indenizações, pretendiam os donos e interessados na galera Flying Fish pela sua demora neste porto, em Consequência da prisão do mestre James Wormington, cuja importância é a que consta da conta cópia (P). N2

Para fazer conhecer a vossa excelência o quanto esta conta é fantástica e exagerada devo notar três circunstâncias: primeira; que nem a escuna, nem gêneros  alguns de sua carga foram embargados; Segunda, que nem o mestre nem o consignatário fizeram protesto de abandono da dita escuna, nem praticarão algum ato que pusesse este governo na responsabilidade dos prejuízos e danos que lhes sobreviessem; terceira, que tendo decorrido trinta e oito dias desde que o dito mestre foi solto e livre até a chegada do brigue Raleigh ele não procurou carregá-la, nem fazer viagem e não obstante isso, pediam os interessados a indenização correspondente a cinqüenta e oito  dias de ancoragem, como consta da mesma conta. A este ofício e ao da cópia (R) respondi negativamente como vossa Excelência pôde ver dos meus ofícios, cópias (Q e S).

Depois disto nada mais tem ocorrido sobre este objeto.

Permita-me vossa Excelência que eu acrescente ainda ao que fica referido que o fato da vinda do dito brigue a este porto com objeto de reclamar os três indivíduos, no caso que ainda se achassem presos e as indenizações dos afetados prejuízos em Consequência desta prisão e da demora da escuna merece alguma consideração e não deixou de me ser muito estranhável vista a resposta que a este respeito eu já tinha dado ao vice cônsul no meu ofício cópia (B) § 5° Resta-me porém a satisfação de que além desta razão mais particular não houve alguma para me queixar dos oficiais do dito brigue, por isso que não cometeram ato algum público que afetasse o decoro deste governo ou que de algum modo fosse ofensivo aos direitos da sua majestade ou à dignidade da nação e que eles foram testemunhas do estado de força desta capitania[3] e dos meios que haviam para conter em respeito aqueles que o tentassem fazer. Neste caso portanto só me cumpria ter para com eles aquelas atenções e civilidades, que se devem a vassalos de uma nação aliada sem a menor infração da dignidade do cargo que tenho a honra de exercer e para com Vossa Excelência declaração de tudo o que aconteceu, para que levando a augusta presença de sua majestade o mesmo senhor se digne de a tomar em consideração e determinar o que for do seu real agrado sobre este objeto.

Deus

 

[1]PIRATAS: o saque, a pilhagem e o apresamento de embarcações e povoados vulneráveis foram, durante séculos, realizados por grupos organizados, que atuavam sob as ordens de um soberano ou de forma independente. O termo pirataria define uma atividade autônoma, sem qualquer consideração política ou razões de Estado (comerciais ou estratégicas). Sem nacionalidade juridicamente reconhecida, os piratas lançavam-se ao mar pilhando embarcações ou atacando regiões costeiras para angariar riquezas. Há registro de ataques piratas à costa brasileira, no período colonial, motivados pelo contrabando de produtos como o pau-brasil, bem como pela captura de escravos indígenas. Tornaram-se célebres os piratas franceses Jean Florin, Laudinière, Montbars, os irmãos Lafitte e Jean Davis, conhecido como o Olonês, que atuaram na região das Antilhas. Em um universo majoritariamente masculino, algumas mulheres disfarçadas também fizeram história, como Mary Head e Anne Bonney. O último reduto da pirataria ocidental foi o Mediterrâneo, onde piratas gregos e berberes eram atuantes desde a Idade Média. Não se deve confundir piratas com corsários. O corsário tem sua origem na Idade Média, mas se tornou especialmente importante durante os tempos modernos. Ao contrário do pirata, do ponto de vista do direito internacional, o corsário é um combatente regular, ligado a um Estado, a quem o governo dava uma carta de corso. Poderia ser mantido diretamente pelo governo ou por um particular. Não há grande diferença dos piratas quanto aos métodos. Porém, o corso reservava de 1/3 a 1/5 do butim para o tesouro real e executava ataques encomendados pelos Estados a que serviam, tal como DuGuay-Trouin, que invadiu o Rio de Janeiro em 1711 a serviço da Coroa francesa no âmbito da guerra de sucessão espanhola, colocando em lados opostos França e Portugal, aliados, respectivamente, à Espanha e à Inglaterra.

[2]JUNTA DE JUSTIÇA: a partir da administração do marquês de Pombal, percebe-se um deliberado esforço da administração metropolitana para fortalecer o poder central. Inserido nesse contexto, estava o estabelecimento de juntas de justiça no território colonial. Instituídas a partir de meados do século XVIII em diferentes capitanias brasileiras, a criação das juntas resultou das dificuldades de acesso às províncias mais distantes, onde os Tribunais de Relação da colônia tinham sua atuação muito enfraquecida. Se o isolamento físico representava uma barreira, o mesmo se pode dizer da atuação desencontrada e conflitante dos variados níveis responsáveis pela administração da justiça na colônia. O alvará de 18 de janeiro de 1765 determinava que em todas as partes do Brasil onde houvesse ouvidores fossem formadas juntas de justiça, compostas pelo ouvidor, que seria seu presidente e relator, e por dois adjuntos, que seriam ministros letrados ou bacharéis formados. Suas atribuições compreendiam diversos aspectos, desde o julgamento de processos, incluindo-se os crimes cometidos por militares, até a observância das leis e a conservação da paz. Eram órgãos de recurso, de nível inferior, que junto a outras instituições, tais como a Junta de Fazenda, funcionavam como contraponto à autoridade do vice-rei.

[3]CAPITANIA: também conhecidas como capitanias-mores, compuseram o sistema administrativo que organizou o povoamento de domínios portugueses no ultramar. A partir do século XIII, seguindo um sistema já empregado sobre as terras reconquistadas, típico do senhorio português de fins da Idade Média Portugal utilizou-as amplamente para desenvolver seus territórios, fazendo concessões de jurisdição sobre extensas áreas aos capitães donatários. Essas doações eram formalizadas na Carta de Doação e reguladas pelo Foral, documento que estabelecia os direitos e deveres dos donatários. No Brasil, o sistema de capitanias foi implantado, em 1534, por d. João III, com a doação de 14 capitanias como solução para a falta de recursos da Coroa portuguesa para a ocupação efetiva de suas terras na América. Esse sistema não alcançou o sucesso esperado em função de diversos fatores, tais como: os constantes ataques indígenas, a enorme extensão das terras e a falta de recursos financeiros. Inicialmente, as capitanias eram hereditárias e constituíam a base de administração colonial proposta pela coroa portuguesa. O donatário tinha uma série de direitos, entre eles a criação de vilas e cidades e de superintender a eleição dos camaristas, além de doar terras e dar licença às melhorias de grande porte em instalações como nos engenhos. Também recebia uma parte dos impostos cobrados entre aqueles que seriam destinados à Coroa (Johnson, H. Capitania donatária. In: Silva, Mª B. Nizza da. (Org.). Dicionário da colonização portuguesa no Brasil,1994). Embora tenha sido aplicado com relativo sucesso em outros domínios portugueses, no Brasil, o sistema não funcionou bem e com o tempo a maioria delas voltou para a posse da Coroa, passando a denominar-se “capitanias reais.”. Em 1621, o território português na América dividia-se em Estado do Brasil e Estado do Maranhão, que reunia três capitanias reais (Maranhão, Ceará e Grão-Pará), além de seis hereditárias. A transferência da sede do Estado do Maranhão de São Luís para Belém e a mudança de nome para Estado do Grão-Pará e Maranhão, ocorridas em 1737, atestam a valorização da região do Pará, fornecedora de drogas e especiarias nativas e exóticas. Entre 1752 e 1754, as seis capitanias hereditárias foram retomadas de seus donatários e incorporadas ao Estado, enquanto, em 1755, a parte oeste foi desmembrada em uma capitania subordinada: São José do Rio Negro. Em sua administração, o marquês de Pombal extinguiu definitivamente as capitanias hereditárias em 1759. Esta decisão fez parte de uma reforma administrativa, levada a cabo por Pombal, que visava erguer uma estrutura administrativa e política que atendesse aos desafios colocados pelo Tratado de Madri, de 1750, segundo o qual “cada um dos lados mantém o que ocupou.” Também era uma tentativa de resposta aos problemas de comunicação inerentes a um território tão extenso que, de forma cada vez mais premente, precisava ser ocupado e explorado em suas regiões mais limítrofes e interiores. O Estado do Grão-Pará e Maranhão foi dissolvido em 1774. Suas capitanias foram depois transformadas em capitanias gerais (Pará e Maranhão) e subordinadas (São José do Rio Negro e Piauí), e integradas ao Estado do Brasil. Entre 1808 e 1821, os termos “capitania” e “província” apareciam na legislação e na documentação corrente para designar unidades territoriais e administrativas do império luso-brasileiro.

 

 

Juiz Conservador da Nação Britânica

Requerimento do desembargador Antônio Rodrigues Veloso de Oliveira, juiz conservador da nação britânica, solicitando que o novo desembargador lhe dê a mesma fiança que o antigo, Joaquim de Amorim Castro. O Conselho da Fazenda responde que muitos privilégios foram dados à nação britânica, porém nenhum ordenado específico extraordinário foi designado aos juízes conservadores por lei.

 

Conjunto documental: Conselho da Fazenda, Consultas sobre vários assuntos
Notação: códice 41
Data limite: 1808 - 1830
Título do fundo: Conselho da Fazenda
Código de fundo: EL
Argumentação de pesquisa: Portugal, comércio exterior - Grã-Bretanha
Data do documento: 5 de dezembro de 1810
Local: Rio de Janeiro
Folhas: 26v a 27v

 

Sobre pretender o Desembargador Antônio Rodrigues Velozo de Oliveira, Juiz Conservador[1]  da Nação Britânica, que na Chancelaria se lhe admite fiança, aos novos direitos respectivos à sua conservatória, visto não lhe estar ainda arbitrado o correspondente ordenado como se praticava com seu antecessor o Desembargador Joaquim de Amorim Castro.

Parecer do Conselho, que segundo a legislação estabelecida sobre os novos direitos da Chancelaria pode deferir-se a fiança, que o suplicante pede, para os `ilegível`, e precauções desta conservatória, ou mandando-se proceder à lotação deles, ou a uma avaliação provisional; Não há porém expresso na mesma legislação, que se devam novos direitos na Chancelaria pelo ordenado, gratificação ou `emolumento] que estes conservadores recebem da nação de cujos nacionais são juízes em virtude de tratados; antes o que dita a razão, e é corrente com os princípios do direito público, é que não se devem semelhantes direitos por um ordenado, ou `emolumento`, que não é determinado por Vossa Alteza Real, mas designado e pago por uma Nação Estrangeira, cuja autoridade de estabelecer ordenados, ou `emolumentos] a vassalos de V. A. R. empregados na Administração Pública, não se pode admitir sem ofensa dos direitos da `ilegível].

Os augustos predecessores de V. A. R. concederam entre outros muitos Privilégios de juízes privativos ou conservadores a quase todas as nações, que iam comercializar a Lisboa, acham-se movimentos destes concessores desde o ano de mil quatrocentos e cinquenta e dois, e na ordenação do Reino[2] Livro primeiro, título cinqüenta e dois, parágrafo nono, foi designado o ouvidor da Alfândega para conservador dos Ingleses. Pelo tratado de 1654[3],  converteu-se em direito, o que até ali fora Privilégio; separou-se a conservadoria dos Ingleses da Ouvidoria da Alfândega, como se vê no Alvará de 20 de Outubro de 1656, e todas as outras Nações, a este exemplo estipularão também terem conservadores como era concedido à nação Inglesa. Nem nesse tratado se estipulou ordenados dos Conservadores, nem se acham designados no sobredito Alvará de 1685 o favor dos franceses para terem Conservadores, como tinham os Ingleses. No parágrafo 15 do regimento da Chancelaria se mandão pagar novos direitos das Conservadorias, e cargos de Juízes Privativos, como dos feitos da Misericórdia, e outros semelhantes; e da que se pretenderia tirar por argumento, que nessa generalidade ficarão compreendidas as Conservatórias, de que se trata.

O argumento não pode prevalecer contra os princípios de direito e menos pode produzir obrigações, ou dever, que só emanam da Lei expressa. O Soberano nesse regimento teve em vista, como é claro no seu preâmbulo, taxar as Mercês[4] úteis que emanavam da Coroa, ou dos donatários dela, o ordenado, [emolumento] ou gratificação; que uma Nação Estrangeira dá ao seu conservador, está inteiramente fora da Coroa, e dos seus donatários, e portanto não fez, nem podia fazer, objeto para a imposição dos nossos direitos.

Por todas estas razões é o parecer do Conselho que não se devem novos direitos, pelo ordenado que houver de receber da Nação Inglesa, como seu Conservador, e que só deve pagar novos direitos na Chancelaria correspondente às assinaturas, [ilegível] e precauções desta conservatória, como por lei se acham designados a todos os julgamentos, e que por isso fizerão o objeto desta imposição no regimento, que a estabeleceu.

Vossa Alteza Real porém com a sua soberana soberania resolverá o mais justo. Rio em 5 de dezembro de 1810. A. R. Como parecer. Palácio do Rio de janeiro em 7 de dezembro de 1810.

 

[1]JUIZ CONSERVADOR: juízes privativos que se responsabilizavam por esferas específicas, sua jurisdição aplicava-se a grupos de indivíduos, atividades ou sobre certas matérias ou causas predeterminadas. Era o caso dos juízes conservadores que, por vezes definidos de forma muito semelhante, guardavam privilégios de certos grupos e também definiam a justiça em determinadas matérias. Os juízes conservadores das nações remontam ao século XIII, quando juristas europeus desenvolveram a teoria estatutária segundo a qual apenas os súditos do reino (ou da cidade) deveriam gozar dos direitos e seguir os deveres estabelecidos pela legislação local. Contudo, a superposição de esferas de jurisdição não era incomum, e o princípio segundo o qual a lei se aplicava apenas aos súditos encontrava limitações, geralmente inspiradas pelos antigos textos romanos, que tanto marcavam a estrutura jurídica portuguesa. De uma forma geral, “vigoravam os preceitos dos acordos e tratados com os países de origem, tendo muitas comunidades estrangeiras as suas conservatórias (juízes privativos), garantidas por tratado. ” [Antônio Manuel Hespanha. Direito luso-brasileiro no Antigo Regime. Boiteux, Florianópolis, 2005]. Ou seja, para determinadas pessoas, entidades ou corporações existia um juiz conservador para julgar suas causas privativamente. Era o caso de britânicos, espanhóis, holandeses que viviam em Portugal, da Universidade de Coimbra, da Ordem de Malta entre outros Se em Portugal o juiz conservador da nação britânica foi instituído no tratado de 1654, no Brasil ele surgiu com a vinda de d. João para o Rio de Janeiro, por um decreto de maio de 1808. Não se tratava propriamente de um juiz inglês, mas de juiz nacional escolhido pelos súditos ingleses residentes no local da jurisdição, aprovada a escolha pelo Embaixador ou Ministro da Grã-Bretanha, e levado o nome ao Rei (ao Príncipe Regente) que poderia vetá-lo. O cargo possuía jurisdição e competência nas causas de interesse nacional inglês. A existência deste cargo no Brasil representava um claro privilégio, já que somente a nação inglesa se encontrava assim defendida. Além do mais, não havia a reciprocidade em relação aos brasileiros. O privilégio foi ratificado pelo art. X do Tratado de Comércio e Navegação firmado aos 19 de fevereiro de 1810. A Constituição Imperial de 1824 questionou a sua permanência, vigorosamente defendida pelos ingleses, já que a sua continuação fora parte do acordo estabelecido entre Brasil e Inglaterra em que esta reconhecia a independência da nova nação em 1822. Em 1834, a polêmica novamente se fez perceber e o cargo foi definitivamente extinto em 1844, por decisão do Conselho de Estado.

[2]ORDENAÇÕES: trata-se de um conjunto de leis que refletiam o esforço do aparelho do Estado em registrar oficialmente as normas jurídicas vigentes nos diversos reinados, pois a dispersão das leis vigentes e aplicáveis trazia uma inevitável incerteza quanto à sua aplicação e, portanto, prejuízos à vida administrativa, política, econômica e jurídica de Portugal e seus domínios ultramarinos. As ordenações afonsinas, promulgadas por d. Afonso V (1432-1481), constituíram a primeira destas compilações, sendo substituídas pelas ordenações manuelinas (1521) e pelas filipinas (1603), compiladas sob o governo de Felipe I à época da União Ibérica, e vigoraram até 1868 em Portugal.

[3]TRATADO DE 1654: com o fim da União Ibérica – união dinástica entre as coroas portuguesa e espanhola, incluindo suas possessões coloniais, sob o controle do rei da Espanha, Felipe II –, a difícil situação de Portugal, economicamente derrotado, e ainda sob ameaça da coroa espanhola, levou o reino a realizar alianças e assinar tratados, em especial com a Inglaterra, de quem Portugal passou a se tornar cada vez mais dependente, a ponto de, em certos momentos, comprometer sua soberania. Um destes tratados foi assinado em Londres no ano de 1654,  e reduzia para 23% as taxas sobre as mercadorias inglesas que passavam pelas alfândegas portuguesas, além de permitir aos navios ingleses o comércio com as colônias lusas, salvo algumas exceções – no Brasil, por exemplo, alguns produtos continuavam a ser comercializados apenas pela Coroa portuguesa. Este tratado também garantia a liberdade religiosa para os súditos ingleses (em sua maioria não católicos) e instituía o juiz conservador da nação britânica, que tratava dos privilégios jurisdicionais dos súditos britânicos em Portugal e no Brasil colonial. Segundo Rodrigo Ricupero (O exclusivo metropolitano no Brasil e os tratados diplomáticos de Portugal com a Inglaterra. Revista de História, n.17. São Paulo, 2017), o tratado era muito desfavorável à Portugal, sobretudo em se tratando do fim do exclusivo metropolitano, ao ponto de que o mesmo só fosse ratificado por d. João IV em 1656 mediante a ameaça de ataque da armada inglesa aos navios portugueses na entrada da barra de Lisboa.

[4]MERCÊ: o mesmo que graça, benefício, tença e donativos. Na sociedade do Antigo Regime, a concessão de mercês era um direito exclusivo do soberano, decorrente do seu ofício de reinar. Cabia ao monarca premiar o serviço de seus súditos, de forma a incentivar os feitos em benefício da Coroa. Desse modo, receber uma mercê significava ser agraciado com algum favor (concessão de terras, ofícios na administração real, recompensas monetárias), condecoração ou título pelo rei, os quais eram concedidos sob os mais variados pretextos. Em 1808, após a chegada da Corte portuguesa ao Brasil, foi criada a Secretaria do Registro Geral das Mercês, subordinada à Secretaria de Estado dos Negócios do Brasil, quando da recriação, no Rio de Janeiro, dos órgãos da administração do Império português. Tinha por competência o registro dos títulos de nobreza e de fidalguia concedidos como graça, benefício e recompensa pelo monarca. As formas mais frequentes de mercês eram os títulos de nobreza e fidalguia, com as terras e tenças correspondentes, os hábitos das Ordens Honoríficas, cargos e posições hereditários. A concessão de mercês era também uma forma do monarca balancear os privilégios entre seus súditos, mantendo os bons serviços prestados por quem já havia conquistado alguma graça e incentivando o bom trabalho dos que almejavam obtê-las. Com a transferência da Corte da Europa para a América, poder-se-ia crer que os súditos da terra passariam a obter mais mercês, mas a hierarquia que havia entre a metrópole e a colônia, reproduzida na concessão de benefícios acabaria por se manter na colônia, mesmo depois da elevação a Reino Unido. Poucos títulos de nobreza foram concedidos, uma vez que na América não havia a nobreza de sangue, de linhagem, mas somente a concedida por grandes favores prestados ao reino, políticos ou militares. Entre as ordens honoríficas observa-se que houve a concessão de mais títulos, mas a maioria de baixa patente ou menor importância, os mais altos graus ainda eram reservados para a nobreza metropolitana. Mesmo concedendo hábitos, títulos de cavaleiros, posições e cargos, as mercês reservadas aos principais da colônia eram inferiores àquelas reservadas aos grandes da metrópole.

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