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Comentário

Escrito por cotin | Publicado: Quarta, 07 de Novembro de 2018, 15h37 | Última atualização em Sexta, 04 de Janeiro de 2019, 18h45
Goa e o Estado da Índia português
Thiago Cavaliere Mourelle / Doutor em História

 

Goa já era muito próspera antes da chegada dos portugueses. As trocas comerciais eram intensas, com a presença principalmente de hindus e muçulmanos. A partir do final do século XV e, mais efetivamente, no decorrer dos séculos XVI e XVII, os portugueses exploraram todo o subcontinente indiano, fazendo um levantamento exaustivo dos seus povos, tradições e reinos. Segundo Oliveira, além de serem protagonistas da primeira expansão europeia por essas águas, os portugueses se expandiram pela região em um intervalo muito breve: nos quinze primeiros anos do século XVI já tinham se estabelecido em boa parte do índico ocidental e, daí, partiram para os chamados “mares do sul” do continente. [1] Thomaz justifica essa rapidez pelo conhecimento que Portugal tinha das rotas, portos e monções. [2]

Essa empreitada começou em 1497, quando Vasco da Gama saiu de Portugal, cruzou do Atlântico para o Índico e deu início à expansão europeia para aquela região. Em 20 de maio de 1498, o navegador aportou na costa ocidental da Índia. Dois anos depois, em 1500, seguiu a frota capitaneada por Pedro Álvares Cabral para cumprir o intento de estabelecer um ponto comercial em Calecute. Obrigado a abandonar a cidade, este se dirigiu a Cochin, não sem antes abrir fogo contra a cidade sitiada. Em 1502, em sua segunda viagem, Vasco da Gama, em represália ao assassinato de comerciantes portugueses de especiarias, também atacou tal cidade.  

Os dois primeiros governantes das possessões portuguesas no local foram o vice-rei d. Francisco de Almeida e o governador Afonso de Albuquerque. Goa foi conquistada em 1510, sob o comando de Albuquerque. Em 1530 se tornou a primeira capital do império marítimo lusitano, abrangendo os empórios comerciais portugueses no Oceano Índico, chamando-se Estado Português da Índia ou Estado da Índia, ao vasto território que incluía desde a África austral ao sudeste asiático. Ramos afirma o quanto os portugueses, séculos depois, no XIX, continuaram a exaltar a figura de Albuquerque, visto como um líder que soube usar não apenas da violência, mas também da diplomacia para obter êxito na conquista. [3] Sua ideia era estabelecer o império português sobre “quatro cabeças”: a cidade de Adém, que tentou conquistar sem sucesso; Ormuz, conquistada uma primeira vez em 1508, perdida e novamente tomada em 1515; Goa, em 1510; e Malaca, em 1511. O domínio do Mar Vermelho, que o controle de Adém e Ormuz garantiria, tinha um significado importante: bloquear o acesso dos muçulmanos. [4]

A tomada de Dio, em 1535, foi mais um momento fundamental para a expansão lusitana na região. A partir de 1543, os portugueses estenderam seu controle sobre Goa, ao chegar a áreas mais afastadas desta cidade: Bardez, Salcette e Marmagoa. A estratégia foi a de dominar todo o litoral, construindo ao longo das costas da Índia uma rede de fortalezas, à volta das quais acabaram por surgir muitas cidades indianas. Sassetti é um dos pesquisadores que salientam o fato de Portugal ter ido muito pouco terra adentro, o que lhes valeu o apelido de “varre-praia”, atribuído pelos nativos. [5]

As fortificações representaram uma estratégia oficial de fixação no território e de controle das rotas comerciais. Doré aponta que a guerra e a diplomacia foram igualmente importantes nesse momento, mas que as fortalezas “representavam a única forma de assegurar o monopólio sobre as redes de comércio, até então manipuladas pelos árabes no Índico”. [6] Em outro estudo, sobre os viajantes comerciais italianos no Estado da Índia no século XVI, Doré apresenta a visão da colonização portuguesa por europeus “de fora” do e reforça a ideia do que chama de “apego” dos portugueses pelo mar e o “desinteresse ou incapacidade” de interiorização no território. [7]

As fortalezas situadas na costa africana e persa, como Sofala, Moçambique, Socotra e Ormuz, asseguravam, por um lado, o caminho marítimo para contornar o Cabo da Boa Esperança e seguir para a Ásia, e por outro lado, a via para o Mar Vermelho e o Golfo Pérsico. Já nas primeiras décadas de presença portuguesa foram construídas também fortalezas no Sri Lanka (Colombo) e no norte da Índia.

Em clara inferioridade numérica, mas sem rivais nos mares, os portugueses – com a supremacia técnica náutica – colocaram como centro do Império o mar. Acima de qualquer outro objetivo, pretendia-se o domínio e a segurança das rotas marítimas. Para tal, além das fortalezas existiam também feitorias e, em menor número, centros urbanos, assegurando a sustentação da citada rede mercantil, que foi privilegiada em detrimento da exploração direta das terras, sendo, por conseguinte, mínima a importância da atividade agrícola. [8]

O Estado da Índia teve a prioridade dos portugueses no século XVI e início do XVII, perdendo espaço paulatinamente para o Brasil a partir daí. Mas não podemos esquecer que Portugal manteve possessões na região até o século XX. E as autoridades reais, durante todos esses séculos, continuaram a deliberar, através de correspondências, sobre assuntos que envolviam questões comuns a todo o Império Português, incluindo Goa. O comércio era uma das principais preocupações, tal como nos mostra o Alvará emitido pela Rainha Maria I, em 8 de janeiro de 1783, a respeito dos encargos que deveriam ser pagos pelas embarcações que levassem fazendas e outros produtos para Goa. Os valores variavam de acordo com as escalas e com o porto de partida. O texto faz referências ao Brasil, às ilhas atlânticas, às possessões na África e à metrópole. [9]

Ainda na esfera da política econômica, data de 1810 um conjunto de documentos que mapeavam as importações e exportações de produtos como fazendas de diversos tecidos, mantimentos, drogas, açúcar e seus derivados e escravos, dos portos dos estados da Índia, Angola e Brasil. [10] Tais informações comprovam o grande dinamismo comercial do Império Português e a interação entre suas diversas colônias, o que nos leva a afirmar que o estudo da economia portuguesa  deve levar em conta as trocas e a integração entre as colônias e não apenas a relação metrópole-colônia.

Já sobre a parte administrativa, é possível afirmar que outro fator para o sucesso da colonização portuguesa no século XVI é a conservação dos regimes administrativos preexistentes, “fosse porque faltasse força ou empenho para os alterar, fosse tão-só porque eram dispensáveis” [11], o que diminuiu a resistência dos nativos à presença portuguesa na região. Porém, tal pressuposto se modifica no século seguinte: uma vez com o território ocupado e a dominação consolidada, Portugal começa a transferir mais efetivamente seu modelo administrativo para a colônia. Alegria afirma, a partir do início do XVII, que o Estado da Índia se tornou um exemplo de sucesso na transferência de todo um sistema de governo, administração e códigos legais da metrópole para a colônia. [12]

A Coroa portuguesa era representada em Goa pelo governador geral que, normalmente, usava o título de vice-rei, sendo-lhe incumbida uma missão de três anos. Ele tinha elevado grau de autonomia, concentrando os governos político, militar, administrativo, judicial e econômico. Apesar de nem todos os governadores da Índia terem recebido o título de vice-rei, a denominação de capitão-general da Índia demonstra a importância da componente militar e naval do cargo – construção de fortes, viés de guerra santa e necessidade de dominar militarmente com o fim de obter vantagens econômicas e atender à política mercantilista lusitana.

Havia também o Conselho de Estado, órgão de caráter consultivo, para apreciação das matérias consideradas mais importantes. A Carta Régia de 12 de Janeiro de 1591 estabeleceu que o vice-rei ou governador reunisse em conselho os fidalgos e pessoas de experiência e, em seguida, remetesse para o reino os seus pareceres.

No reino, diversos órgãos assistiam o rei nos negócios ultramarinos: o Secretário dos despachos e coisas da Índia (Regimento de 24 de Março de 1530); o Conselho da Índia (Regimento de 26 de Julho de 1604); o Conselho Ultramarino (Decreto e Regimento de 14 de Julho de 1642); o Conselho da Fazenda, através da Repartição da Índia, Mina, Guiné, Brasil, ilhas de São Tomé e Cabo Verde (1591-1642), Repartição da Índia e Armazéns (1642- 1804), e Repartição da Índia e Ordens (1804-1833); a Secretaria das Mercês e Expediente (Alvará de 29 de Novembro de 1643); entre outros.

Ainda sobre a administração colonial, é importante salientar que havia uma significativa rotatividade de nomes entre Goa e Salvador (depois, Rio de Janeiro). Antony fala, em livro, sobre uma constante troca de recursos humanos entre essas duas regiões coloniais [13], fato que é evidente nas fontes primárias do Arquivo Nacional: vê-se uma enorme quantidade de cartas e ofícios emitidos do Rio de Janeiro, este já na condição de centro administrativo do Império Português – após as invasões napoleônicas e a fuga da família real para o Brasil – que dão conta da transferência de autoridades entre Europa, América do Sul e o continente asiático.

Para citar um exemplo, temos o decreto expedido por d. João VI, em 1818, em que ele ordenava ao bacharel João Maria de Abreu Castelo Branco que cumprisse com a função de desembargador na Relação de Goa por 6 anos e que, quando terminasse seus serviços no Estado da Índia, assumisse o cargo de desembargador da Casa de Suplicação do Brasil. [14]

Mais um exemplo é outro alvará de d. João VI, em 1811, ordenando a transferência do doutor Antônio Gomes Pereira da Silva, chanceler da Relação de Goa e Conselheiro da Fazenda de Lisboa para ser conselheiro da fazenda do Estado do Brasil. [15] Esses dados são de relevância para se compreender o percurso profissional dos funcionários de carreira e a manutenção dos cargos mais importantes da administração das colônias nas mãos de um restrito círculo de confiança do rei.

Ainda sobre a citada Relação de Goa, é importante frisar que ela tinha papel central para Portugal na região, tendo a incumbência de julgar, em instância superior, os processos advindos de Moçambique. Seu estabelecimento, já em 1554, demonstra não só que Portugal priorizava a colonização de tal região, mas também que ela já estava em avançado nível de desenvolvimento, necessitando desse tribunal. O fato da Relação da Bahia ter sido criada em 1609 e a Rio de Janeiro somente em 1751 é um indicativo sobre os momentos históricos em que tais cidades estavam em evidência para os interesses portugueses.

Começado o século XVII, o poder português no Oriente, centralizado em Goa, estendia-se desde a costa oriental de África a Malaca, Timor e Macau, passando por Ceilão e São Tomé de Meliapor, dominava o Golfo Pérsico com fortalezas ou feitorias em Ormuz, Mascate, Calaiate, Curiate, Soar, Barém e outras localidades da costa da Arábia até Baçorá. Recebeu, por sua prosperidade, o apelido de “Golden Goa” (Goa de Ouro).

Porém, não esqueçamos que, no decorrer do período filipino, os domínios de Portugal na região sofreram com ameaças de outros países europeus. Houve um enfraquecimento da marinha de guerra portuguesa durante a ocupação do país pela Espanha (1580-1640), o que tornou vulnerável o Estado da Índia às investidas dos muçulmanos e protestantes holandeses e ingleses.

Terminada a União Ibérica, em 1640, Portugal passou a ter novo rei. Em finais do ano de 1642 a esmagadora maioria das praças portuguesas na Ásia tinha já aclamado d. João IV como seu soberano. De Moçambique a Macau, diversas cerimônias e discursos haviam consagrado e reconhecido a nova situação política. Souza mostra que, após a aclamação de D. João IV, as autoridades de Goa enviaram votos parabenizando o novo rei e, ao mesmo tempo, manifestaram desejo de que seus pedidos e necessidades tivessem a atenção real, o que julgaram não ter ocorrido por parte do governo espanhol. [16]

Após terem recuperado a independência, os portugueses constataram que já não possuíam grande parte das suas possessões e que não tinham meios para defenderem as que ainda lhes restavam no Oriente. Tiveram que fazer escolhas: a estratégia adotada foi concentrar forças em um número reduzido de regiões, que fossem mais interessantes economicamente e onde o cristianismo lograra êxito substancial. Assim, o Estado da Índia reduz-se praticamente a Goa, Damão, Diu e Bombaim. Já na Insulíndia lhes restavam, após ação holandesa em 1640, somente as ilhas de Flores, Solor e Timor.

À época os ingleses e holandeses encontravam-se firmemente instalados nos mares asiáticos e as dinâmicas políticas na Ásia haviam sofrido importantes alterações. O Japão estava sob a égide dos Tokugawa e pusera termo ao comércio com os portugueses. A China encontrava-se com problemas internos e, no ano de 1644, o último imperador da dinastia Ming se suicidou. Na Índia, o império Mogol estava próximo do apogeu, estendendo sua hegemonia a uma parte considerável do subcontinente. Por sua vez, a expansão omanita, sob a égide da dinastia Yarubi, representava uma crescente ameaça para os portugueses no Mar Arábico e na costa oriental africana.

Nesse contexto, já a partir da primeira metade do século XVII a atenção dos portugueses ao Atlântico preteriu Goa. O Brasil se tornou o foco principal dos empreendimentos lusitanos. Além do comércio do açúcar, o tráfico de escravos entre seus domínios da África e da América do Sul também gerava lucro, passando a receber cada vez mais atenção e recursos humanos e econômicos da Coroa. Russell-Wood aponta que, a partir da segunda metade do XVII não só o foco econômico português já se consolidara no Brasil, mas também “o centro de gravidade populacional dos portugueses ficou nas ilhas do Atlântico e nas colônias portuguesas ao redor desse oceano”. [17]

Os britânicos, por sua vez, eram, desde 1665, soberanos do território de Bombaim, espaço fronteiriço do sul da Província do Norte adquirido ao Estado da Índia. A cidade foi negociada pelos portugueses aos ingleses como contrapartida pelo apoio inglês na guerra que Portugal travou contra a Espanha (1640-1668). 

Cabe agora ressaltar outra importante faceta de Goa: além de capital, era também o centro religioso de Portugal na região. O Estado da Índia teve forte presença das missões religiosas católicas. Nesse sentido, vale destacar a chegada dos primeiros padres jesuítas, em 1542, e a entrada dos agostinianos, a partir de 1572. Sobre a Companhia de Jesus, Tavares tem importante trabalho no qual analisa as estratégias de aproximação e os mediadores culturais utilizados no encontro com os nativos. [18]

A estrutura militar citada era sempre acompanhada pela construção de igrejas e difusão de missões religiosas. Outro ponto que demonstra a grande importância das ações de catequese é o fato do padre Antonio Vieira ter aconselhado d. João IV a entrega de Pernambuco em troca da manutenção do Estado da Índia e de todo o esforço de evangelização empreendido na Ásia pela Companhia de Jesus. Essa frente asiática de cristianização era vista como fundamental para a expansão da fé católica e consolidação da Igreja. [19]

Ainda sobre aspectos religiosos, uma figura que merece destaque é a de d. Gaspar de Leão, primeiro arcebispo de Goa (1560-1576), que desempenhou um papel significativo no processo de cristianização das terras asiáticas controladas pelos portugueses. Durante o período em que D. Gaspar administrou o Arcebispado de Goa, foi criado o Tribunal do Santo Ofício de Goa, celebrou-se o primeiro Concílio Provincial na região (1567) e foram redigidas as Constituições do Arcebispado de Goa, em consonância com as determinações do Concílio de Trento – incentivadoras da realização de sínodos provinciais e da projeção dos bispos na condução da reforma espiritual do clero e dos fiéis. Por seu papel central no empreendimento de evangelização na Ásia, Goa chegou a ser chamada de “Roma do Oriente”. [20]

Assim como ocorreu em outras regiões que receberam as chamadas missões, também no Estado da Índia encontramos enfrentamento, pois mesmo parcelas da população convertidas continuavam praticando clandestinamente sacrifícios e rituais próprios da sua tradição. Tavares lembra que o cristianismo vivia cercado por cidades e reinos não-cristãos que exerciam pressão e tornaram ainda mais difícil a permanência lusa e o sucesso do cristianismo na região. [21]

Já Xavier tem estudo pioneiro sobre a periferia de Goa e aponta sinais de resistência, inclusive o assassinato de jesuítas pela população local das áreas mais rurais e distantes do centro. A pesquisadora salienta, porém, a enorme importância política que os líderes religiosos adquiriram em Goa e fala da conversão como uma prática que misturava convencimento e força – por um lado, com a construção de igrejas cristãs, muitas vezes nos mesmos locais onde existiam templos de religiões locais, buscavam a aceitação pela mera transposição de valores espirituais do culto anterior para o cristianismo; por outro, com a atuação do Tribunal do Santo Ofício, a violência e punição se mostravam práticas abertas e declaradas. [22]

Xavier explica ainda que, mesmo quando o Estado da Índia vivia momentos de instabilidade financeira, os jesuítas continuavam a acumular riquezas. Tal fato gerava rusgas entre a Coroa a Companhia de Jesus, porém as autoridades políticas sabiam que a presença dos religiosos era fundamental para o sucesso da colonização, pois os avanços econômicos e territoriais estavam estreitamente ligados ao sucesso do avanço da cristianização e a consequente aceitação da presença dos lusitanos pela população local.

Uma vez expulsos os jesuítas das possessões portuguesas, em 1759, a Congregação do Oratório de Santa Cruz dos Milagres de Goa os substituiu no Estado da Índia. Algumas décadas depois, em 1816, o grupo religioso enviou requerimento para o rei d. João VI, à época no Rio de Janeiro – centro do reino português por ocasião das invasões napoleônicas na Europa –, falando da situação de penúria que viviam tais religiosos, com medo de perder suas propriedades devido a diversas denúncias de falta de pagamento de seus compromissos. Na correspondência, os líderes de Santa Cruz dos Milagres relembraram os “imensos serviços” que haviam prestado a Portugal, dizendo que os “arcebispos, os vice-reis e os governadores da Índia empregaram seus padres nas missões do Ceilão, Damão, Malabar e Goa”. Lembraram também que, após a saída dos jesuítas, os padres desta igreja passaram a exercer a função de inquisidores na Mesa do Santo Ofício. [23]

No mesmo conjunto documental citado acima, em um registro de 27 de Junho de 1816 – despacho da Mesa do Desembargo do Paço – o desembargador Diogo Vieira relata toda a situação da igreja naquele momento: a sua falta de recursos para manter as missões e os colégios clericais que estavam sob sua responsabilidade, levando ao seu endividamento; e o preço reduzido de seu principal artigo agrícola, o coco, que havia baixo dois terços do preço que tinha 50 anos antes.  Quanto aos colégios de Rachol e Chorão, que serviam para a “educação do clero secular de toda a Ásia”, diz que foram oferecidos a congregação após a expulsão dos jesuítas de Goa – o que se confirma no documento de 17 de Novembro de 1761, presente no mesmo conjunto citado acima –, da mesma forma como já tinha acontecido quando “os padres italianos que foram enviados de Lisboa também saíram dali” – informação que se confirma pelo documento de 26 de Fevereiro de 1793, em que é explicitada a saída de padres italianos de Goa pelo arcebispo Dom Manuel, pedindo providências à Coroa a fim de garantir substitutos.

Os documentos indicam que a Coroa portuguesa atendeu ao pedido dos religiosos e protegeu seus bens, impedindo que fossem levados a juízo ou que viessem a leilão. Um das justificativas foi a menção aos alvarás de 22 de julho de 1740, expedidos pela rainha Maria I, que tomava a decisão de não denunciar os bens que pertencessem a qualquer corporação religiosa.

Mas a saída dos jesuítas e o fortalecimento da congregação de Santa Cruz dos Milagres não foi a única grande mudança que o século XVIII reservou ao Estado da Índia. As transformações geopolíticas, já no início dos Setecentos, inverteram a balança de poderes no Decão e regiões periféricas – cabe citar a fragmentação do império mogol e o crescente poder marata – e colocaram em franco perigo as possessões portuguesas no ocidente indiano. Por outro lado, às insuficiências defensivas portuguesas – menor contingente humano e diminuta capacidade militar e financeira –, adicionava-se a crescente falta de disponibilidade de apoio britânico, somente fornecido em momentos que, hipoteticamente, Bombaim também corria perigo.

O relacionamento luso-marata foi marcado pela contínua hostilidade marata às possessões do Estado da Índia, nomeadamente à Província do Norte, e assumiu o seu auge em meados da década de 1730, uma vez que, nos anos anteriores, as oposições acabaram por ser controladas e minimizadas pela via diplomática.

Os ingleses preferiam a presença dos portugueses do que a dos maratas, a quem atribuíam maior possibilidade de invasão a Bombaim. Porém, diante da grande quantidade de recursos humanos maratas a atuar contra os portugueses, a Inglaterra optou por não se antagonizar de forma aberta, pois entendiam que a vitória marata era iminente e que a tomada de posição contrária daria margem para um futuro conflito anglo-marata. Então, diante dos pedidos constantes de apoio por parte de Portugal, a solução foi o apoio limitado, esporádico e não oficial. Oficialmente a opção foi pela neutralidade, postura essa mais diplomática e que só seria substituída pela via militar algumas décadas mais tarde, depois que o poderio bélico britânico na região havia crescido a ponto de quase garantir a chance de vitória. [24]

Dessa forma, os sangrentos anos de 1739–1740 marcaram o fim da presença e soberania portuguesa sobre a quase totalidade da Província do Norte, que, desde 1534, se encontrava sob o poder do Estado da Índia. Apesar de a situação ser muito difícil para os portugueses, pelo menos o território de Goa não só foi mantido, como triplicado, com Portugal adquirindo aos maratas os enclaves de Dadrá e Nagar-Aveli (1779-1954). A citada tática de concentrar forças em poucas regiões deu certo, pelo menos em relação a Goa, que cada vez mais se consolidava como um dos poucos locais de presença efetiva e domínio luso na região.

A crise econômica e militar de Goa, principalmente depois dos conflitos com os maratas, fica evidente na maior preocupação da Coroa a prestar-lhe ajuda. No acervo do Arquivo Nacional há documentação que mostra a constância com que eram feitos pedidos de Lisboa para que o Rio de Janeiro auxiliasse a capital do Estado da Índia. Um exemplo é a carta do secretário de Estado dos Negócios de Portugal, Marco Antônio de Azevedo Coutinho, à Gomes Freire de Andrade, governador e capitão geral do Rio de Janeiro, datada de 25 de maio de 1745. Coutinho passa a Andrade uma ordem do rei d. João V para que se reunissem mineiros e paulistas a fim de irem até Goa, que passava dificuldades econômicas, e auxiliassem no comércio na região. [25].

Da mesma forma são constantes os pedidos para que embarcações com destino a Goa fossem bem recebidos no Rio de Janeiro, como diz a carta de d. Rodrigo de Souza Coutinho ao conde de Resende, d. José de Castro, recomendando – por ordem de d. Maria – que se tomassem todas as providências necessárias para que uma nau “não sofra embaraço” ou demore no porto do Rio de Janeiro, no qual faria escala a caminho da Ásia. [26] Antony, em estudo sobre as relações entre a Bahia e Goa, revela que isso já acontecia quando Salvador era a capital. [27]

Outra situação interessante de ser mencionada e que pode ainda suscitar muitas pesquisas é a política de degredados. Vários documentos mostram a chegada destes a Goa. Uma carta de 1811, escrita pelo Conde de Aguiar para Francisco Bento Maria Targini, remete aviso da Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos para que oito degredados, que iriam para Moçambique e Estado da Índia na nau de viagem, recebessem uma ajuda de custo de 4 mil reis cada um. [28] Em outro conjunto documental encontramos documento de 1809 no qual consta a mesma prática: o mesmo conde de Aguiar pede a Manuel Moreira de Figueredo que se junte ao desembargador Francisco Lopes de Souza Faria Lemos e vá fazer uma visita aos presos que serão enviados para Goa e Moçambique, distribuindo entre estes o fardamento e o mesmo valor de ajuda de custo. [29]

Passada a guerra com os maratas, na segunda metade do Setecentos – principalmente no período entre 1769 e 1774 – foi feita uma grande reestruturação e modernização administrativa no Estado da Índia, como resultado das reformas pombalinas e da influência do Iluminismo. Percebe-se uma preocupação cada vez maior de Portugal, ao longo da segunda metade do século XVIII, em reorganizar Goa e combater, principalmente, a evasão de recursos por particulares, o que estaria diminuindo os lucros da metrópole.

O decreto de 19 de abril de 1752 definiu que a administração das possessões da costa oriental da África fosse separada do governo do Estado da Índia. Moçambique passou a ter um governo próprio – algum tempo depois, em 1844, o mesmo foi feito com os territórios de Macau, Solor e Timor, restringindo a autoridade do governador do Estado da Índia às possessões portuguesas na costa de Malabar.

Essa racionalização da administração é perceptível nas correspondências e decretos reais. Em carta expedida por ordem do rei d. José I, em 10 de abril de 1769, explicava-se para o governador da Índia, d. João José de Melo, a necessidade de se criar a Junta da Fazenda Real na região de Goa, para arrecadar rendimentos e administrar os bens confiscados. A Junta seria necessária devido ao grande “atraso, descuido e malícia dos Oficiais da Fazenda”, o que nos indica práticas de corrupção e de fragilidade administrativa no Estado da Índia. [30]

Mandou-se remeter ao Erário Régio uma lista de todos os bens do Estado da Índia. Foi feita uma avaliação do rendimento dos ofícios do Estado e o seu envio a Portugal, assim como se realizou a reforma dos ordenados de alguns ofícios e a extinção de outros, além de ser abolido o direito consuetudinário nos ofícios de Justiça e Fazenda e de ser estabelecida uma reforma eclesiástica.

Chegando ao século XIX, mais precisamente em 1843, uma importante mudança político-administrativa ocorre no Estado da Índia: Goa é substituída por Pangim, que passa a ser a nova capital do Estado português na Índia.

Ramos, ao analisar comparativamente a atuação de Portugal no Estado das Índias e no Brasil durante o século XIX, aponta as críticas que os portugueses da época fizeram sobre a colonização do Estado da Índia. O pesquisador explica que, para os lusos, a colonização do Estado da Índia só obteve real sucesso no século XVI e parte do século XVII, tendo sofrido depois com corrupção, erros administrativos e, principalmente, com a falha dos portugueses em lidarem com a população local. Ao invés de trabalhar para conquistar “a simpatia e estima dos índios”, a empresa portuguesa na região consistiu “num puro exercício de violência”, o que levou, a longo prazo, ao seu fracasso. [31]

A seguir, podemos ver algumas das principais cidades e o período em que estiveram sob o domínio lusitano. Na região norte: Diu (1535 – 1961),  Damão (1539 – 1961), Goa (1510 – 1961), Bombaim (1534 – 1661), Chaúl – também chamada de Revdanda (1521 – 1739/40), Baçaim (1536 – 1739/40). Na região do Malabar: Cochim (1503 – 1663), São Tomé de Meliapor (1523 – 1640), Cranganore – ou Cranganor (1536 – 1663). É possível perceber que uma parte significativa já caiu na segunda metade do século XVII e outras tantas no final da primeira metade do XVIII. As que se mantiveram sob domínio português foram libertadas em 1961, após a ocupação pela União Indiana (UI).

Chegando ao século XX, vemos a perda de força na dominação e a consequente independência das regiões da antiga Índia Portuguesa que ainda restavam. Após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) desenvolveu-se na Índia um movimento nacionalista que conduziu à expulsão dos ingleses (1947) e à formação da União Indiana (UI). Na década de 1950 ocorreu a saída dos portugueses dos territórios que aí ocupavam: em 1953 a UI decretou um bloqueio econômico aos territórios sob domínio de Portugal e, um ano depois, ocupou os enclaves de Dadrá e Nagar-Aveli. 

Para superar o isolamento, em 1955 Portugal construiu aeroportos em Dabolim (próximo a Goa), Damão e Diu, fundando uma companhia aérea (TAIP - Transportes Aéreos da Índia Portuguesa).  Mas a situação tornou-se insustentável: em 1961, Goa, Damão e Diu foram ocupadas pela UI. A ONU condenou a ocupação mas a resolução, que exigia a retirada das tropas indianas, foi vetada pela URSS. 

            A partir dos anos 1960 os nacionalistas indianos começaram a destruir sistematicamente tudo o que lembrava a presença portuguesa na região. Com o fim do governo de Salazar e, após a Revolução dos Cravos, as difíceis relações diplomáticas foram retomadas e culminaram com o reconhecimento de Portugal à soberania da UI sobre os territórios que a mesma havia ocupado.

Mas a herança cultural e lusófona se manteve. Com cerca de 25% de cristãos, Goa recebeu a visita do papa João Paulo II, em 1986. No ano seguinte, passou a ser o 25º estado da Índia.

 

[1] OLIVEIRA, Francisco Roque de. Os Portugueses e a Ásia Marítima, c. 1500 - c. 1640: contributo para uma leitura global da primeira expansão europeia no Oriente. 1ª Parte: os Mares da Ásia no início do século XVI. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografia y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona. Vol. VII, núm. 151, 2003ª, p. 7.

[2] THOMAZ, Luís Filipe. Estrutura política e administrativa do estado da Índia no século XVI. 2.ª edição. In THOMAZ, L. F. De Ceuta a Timor. Lisboa, Difel – Difusão Editorial, 1994, pp. 207-243.

[3] RAMOS, Rui. "Um novo Brasil de um novo Portugal". Penélope, n. 23, 2000, p. 130.

[4] DORÉ, "Cristãos na Índia no século XVI: a presença portuguesas e os viajantes italianos". Revista Brasileira de História, v. 22, n. 44, 2002, p. 316.

[5] SASSETTI, 1995. Filippo. Lettere dall’India (1583-1588). A cura di Adele Dei. Roma: Salerno Editrice, 1995, p. 165.

[6] DORÉ, André. "Antes de existir o Brasil: os portugueses na Índia entre estratégias da Coroa e táticas individuais". História, v.28, n.1, 2009, pp. 177-178.

[7] DORÉ, op. cit., 2002, p. 311.

[8] OLIVEIRA, Francisco Roque de. Os Portugueses e a Ásia Marítima, c. 1500 - c. 1640: contributo para uma leitura global da primeira expansão europeia no Oriente. 2ª Parte: o Estado Português da Índia. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografia y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona. Vol. VII, núm. 152, 2003b, p. 3.

[9] Arquivo Nacional. Correspondência da Corte com o vice-reinado. Códice 67, vol. 11. Lisboa, 8 de janeiro de 1743.

[10] Arquivo Nacional. Junta do Comércio. Importação e exportação. Mapas de colônias portuguesas – Brasil e domínios – e de cônsules estrangeiros para Portugal Notação. Caixa 448, pct. 1. Rio de Janeiro, 1810.

[11] THOMAZ, Luís Filipe. Estrutura política e administrativa do estado da Índia no século XVI. 2.ª edição. In THOMAZ, L. F. De Ceuta a Timor. Lisboa, Difel – Difusão Editorial, 1994, pp. 210-217.

[12] ALEGRIA, M. et all (1998). O Estabelecimento no Oriente. In F. Bethencourt, K. Chaudhuri (Dir.), História da Expansão Portuguesa: a formação do Império. Lisboa: Círculo de Leitores, 1998, pp. 163-189.

[13] ANTONY, Philomena Sequeira. Relações intracoloniais Goa-Bahia. Brasília, FUNAG, 2013, pp. 65-102.

[14] Arquivo Nacional. Negócios de Portugal. Caixa 700, pacote 1. Rio de Janeiro, 4 de julho de 1818.

[15] Arquivo Nacional. Conselho da Fazenda. Códice 29, vol. 3, fls 20. Rio de Janeiro, 7 de maio de 1811.

[16] THOMAZ, op. cit., pp. 219-228.

[17] RUSSELL-WOOD, A.J.R. "Sulcando os mares: um historiador no Império Português". História, v.28, n.1, 2009, p. 22.

[18] Para mais detalhes, ver: TAVARES, Célia Cristina da Silva. Mediadores Culturais: Jesuítas e a missionação na Índia (1542-1656). Acervo, [S.l.], v. 16, n. 2, p. 173-190, dez. 2003.

[19] NEVES, Maria Carolina Gois. "As relações entre cristãos e muçulmanos na Índia do séc. XVI: os relatos de Zinadím e de Rodrigues da Silveira". Revista do CESP – v. 30, n. 44 – jul.-dez. 2010, p. 167.

[20] FARIA, Patrícia Souza de. Reforma e profecia: a ação do arcebispo de Goa e místico D. Gaspar de Leão. História, v.28, n.1, 2009, p. 162.

[21] TAVARES, Célia Cristina da Silva. "Goa: a cidadela cristã no Oriente". Historia y sociedad, Colombia, n. 15, 2008, pp. 27-41.

[22] XAVIER, Ângela Barreto. A invenção de Goa: poder imperial e conversões culturais nos séculos XVI e XVII. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2008.

[23] Arquivo Nacional. Negócios de Portugal. Caixa 645, pacote 5. Folhas 1, 1v, 2, 2v e 3. Rio de Janeiro, 1816.

[24] NOBRE, Pedro. A East India Company e a perda portuguesa da Província do Norte. Revista Tempo, vol. 21, n. 37, 2015, pp. 1-17.

[25] Arquivo Nacional. Cartas régias, provisões, alvarás e avisos. Códice 952, vol. 32.

[26] Arquivo Nacional. Correspondência da corte com o vice-reinado. Códice 67, volume 23. Lisboa, 30 de março de 1798.

[27] ANTONY, op. cit., pp.153-179.

[28] Arquivo Nacional. Conselho da Fazenda. Decretos e avisos ao tesoureiro-mor do Real Erário Códice 34. Rio de Janeiro, 2 de junho de 1811.

[29] Junta do Comércio. Portarias e circulares recebidas, Fundo, caixa 419, pct. 01. Rio de Janeiro, 16 de junho de 1809.

[30] Arquivo Nacional. Registro de ordens expedidas do Real Erário para a Índia sobre a Fazenda Real. Códice 517.

[31] RAMOS, op. cit., pp 129-131.

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