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Comentário

Escrito por Ricardo Almeida | Publicado: Quarta, 08 de Janeiro de 2020, 13h46 | Última atualização em Quarta, 08 de Janeiro de 2020, 13h46

O ofício das parteiras no período joanino

 

Giselle Machado Barbosa

Mestre e doutoranda em História das Ciências e da Saúde na Fundação Oswaldo Cruz

 

A origem da atuação das parteiras no Brasil pode ser remetida ao período colonial, com as leigas que aprendiam o ofício de maneira empírico-sensorial, a partir da própria prática ou com outras já experientes. Essas parteiras ditas tradicionais ou leigas eram também conhecidas por nomes como “curiosas”, “aparadeiras” e “comadres”, termo bastante utilizado que significa “com a mãe”. Eram escolhidas por serem pessoas de confiança da parturiente, sendo majoritariamente pardas, negras forras ou brancas portuguesas pertencentes aos setores populares, e costumavam ser consultadas sobre diversos temas do universo feminino, como cuidados com o corpo e doenças venéreas.[1]

De modo geral, as parteiras tradicionais cuidavam da assistência ao parto, mas também procuravam ajudar com variados conselhos. Relata-se que, vestidas de preto, com mantilha, rosário e um lenço na cabeça, permaneciam na casa da parturiente após o nascimento da criança e acompanhavam a mãe e o recém-nascido, indicando dieta e como se deveria realizar o aleitamento materno. Era costume, ainda, que ela indicasse uma ama de leite, em geral uma mulher negra e escravizada.[2] Sua principal atividade se relacionava, portanto, com todas as etapas da gestação, desde o cuidado com a parturiente até os primeiros estágios do recém-nascido. Além de dar orientações à mãe sobre alimentação e cuidados básicos com o bebê, ela também auxiliava no trato de doenças femininas. Para tanto, a parteira ou comadre poderia indicar remédios naturais, à base de ervas, e prestar outras recomendações quanto à saúde da mulher.[3]

No período joanino, surgiram algumas mudanças no ofício de parteira, relacionadas com a intensificação das ações reguladoras da Coroa portuguesa no que se refere às práticas médicas. A Fisicatura-Mor, que, entre os anos de 1808 e 1828, era o órgão responsável por examinar e conceder licenças aos praticantes de medicina, atuava, principalmente, por meio de fiscalizações, devassas, apurando denúncias e expedindo multas aos que exerciam o ofício ilegalmente. Desse modo, de acordo com a legislação, as parteiras, assim como outros praticantes das artes de curar, deveriam exercer o ofício com uma carta de licença. Apesar disso, muitas parteiras não se mobilizaram para adquirir a legalidade de sua prática. Entre as hipóteses para explicar isso estaria o fato de que as parteiras já ocupavam lugar de prestígio na comunidade, não sendo a licença um requisito para a obtenção de clientela. Outro ponto é que o valor cobrado para realizar o exame e legalizar a atividade era elevado, o que afastava parteiras com menos recursos financeiros, como as escravizadas ou negras e pardas livres. Além disso, deve-se considerar que as parteiras tradicionais atendiam, sobretudo, mulheres de camadas populares, que não buscavam por serviços que pudessem ter alto valor, dessa forma, não seria conveniente o licenciamento. O mais comum era que a licença fosse buscada após uma denúncia ou fiscalização da Fisicatura-Mor, ou, ainda, como forma de evitar as multas ou prisões decorrentes dessas acusações.

            É importante destacar que nem todas as parteiras de ofício eram licenciadas. Pode-se subdividi-las em leigas, examinadas e diplomadas. As leigas possuíam o saber empírico-sensorial; as examinadas eram avaliadas por cirurgiões indicados pela Fisicatura-Mor e, após responderem a perguntas teóricas e práticas, recebiam uma carta que as autorizava a praticar a arte de partejar; e as diplomadas eram aquelas que, a partir de 1832, fizeram curso de partos na Faculdade de Medicina da Bahia ou na do Rio de Janeiro.[4] Dessa forma, o oficio de parteira, ao longo do século XIX, apresentava-se de maneira heterogênea, pois havia praticantes de diferentes categorias, segmentos sociais, formações e titulações.   

 

O ofício de parteira e a Fisicatura-Mor

 

            As parteiras como categoria pertencente às chamadas artes de curar tinham seu ofício autorizado pela Fisicatura-Mor. O papel básico desse dispositivo era fiscalizar e conceder licença para o exercício das diversas atividades relacionadas à saúde, como as das parteiras, sangradores, boticários, curandeiros, cirurgiões e médicos, entre outros. Seu surgimento remete à chegada da corte portuguesa ao Brasil e ao alvará de 23 de novembro de 1808,[5] que restabeleceu os regimentos do físico-mor e do cirurgião-mor, regulando sua jurisdição e a de seus delegados. Ele não proclamou algo inédito, seu conteúdo se baseou na ratificação de outros regimentos, anteriores, datados de 1521 e 1631, assim como o dos delegados comissários, que remete ao ano de 1744.[6] Foram nomeados para os cargos de físico-mor e cirurgião-mor, respectivamente, Manoel Vieira da Silva e José Correia Picanço, que vieram de Portugal com a família real.

            Pouco tempo depois, esses regimentos foram substituídos por outro, elaborado em 22 de janeiro de 1810, com o objetivo principal de regular as atividades dos delegados e do físico-mor. A importância desse documento se deu pelo fato de ter vigorado, por mais tempo, no período da retomada da Fisicatura-Mor, após a extinção da Junta do Protomedicato.[7] Inicialmente, a legislação em torno das práticas de cura foi sendo construída com base em competências estabelecidas em documentos antigos. Aos poucos foram sendo criados dispositivos em lei para se adaptar às novas situações e necessidades que surgiam, garantindo um controle mais efetivo do Estado sobre as artes de curar. Com a extinção da Fisicatura-mor em 1828, alguns terapeutas populares tiveram maiores dificuldades de atuação, sendo suas práticas restritas e até mesmo coibidas em alguns casos. As academias médico-cirúrgicas, transformadas em faculdades de medicina pouco tempo depois, passaram a ser as únicas instituições capazes de fornecer as titulações e permissões das práticas médicas. Dessa forma, farmacêuticos, cirurgiões e parteiras poderiam receber as autorizações do seu ofício por essas entidades, em lugar da extinta Fisicatura-Mor.[8]

            Na sua organização interna, a Fisicatura-Mor era dividida entre seus membros por assunto. Sendo assim, sob o campo de atuação do físico-mor estavam médicos, boticários, venda de “drogas medicinais”, venda de bebidas e curandeiros. O cirurgião-mor era responsável por cirurgiões, parteiras, dentistas e sangradores.[9] Para serem admitidos no exame, os candidatos deveriam apresentar o atestado do mestre, aquele com quem tivessem aprendido o ofício, devendo este ser um profissional licenciado. No documento, o mestre precisava afirmar que o aluno possuía habilidade e havia praticado o ofício por determinado tempo, que variava de acordo com a profissão. Para cirurgiões e boticários, o mínimo era de quatro anos, e para parteiras e sangradores, de dois anos. Caso o candidato não apresentasse o atestado do mestre, deveria encaminhar três testemunhas, que não precisavam ser conhecedoras das artes de curar, para confirmarem o período de experiência do requerente. Havia ainda a possibilidade de apresentar abaixo-assinados feitos por clientes, ou pessoas que tenham sido tratadas, e atestados feitos por indivíduos com posição social respeitável, como os ligados à Igreja, milícia ou órgãos públicos. Mas esse procedimento era mais recorrente nos casos dos pedidos de licença do ofício de curador ou curandeiro do que nos de parteira.[10]

            As licenças das parteiras eram destinadas apenas àquelas que passassem por um processo de avaliação organizado pela Fisicatura-Mor. Sua obtenção era um processo burocrático que se iniciava com as cartas de examinação, nas quais a requerente ao ofício deveria responder questões de cunho teórico e prático. A carta começava com o treinamento da parteira, a fim de demonstrar sua experiência. Inquiria-se a candidata sobre quem havia lhe ensinado, há quanto tempo, se tinha filhos, quantos e quais partos haviam acompanhado. As perguntas se davam também sobre os cuidados dispensados à parturiente e ao recém-nascido, e os conselhos que deveriam ser dados à mãe a respeito dos cuidados com o bebê.[11]

            Os exames se davam, em geral, na presença de um comissário, um cirurgião ou dois e, por vezes, outra parteira aprovada. É possível que ocorressem na casa de um dos cirurgiões. Durante o processo, as parteiras eram inquiridas e, mediante o cumprimento das exigências, poderiam receber a carta de aprovação, para que com esta pudessem requerer a carta de confirmação. A aprendizagem das parteiras, que deveria anteceder o exame para a garantia de sua aprovação, se dava com uma parteira mais experiente, uma mestra. Em geral, os conhecimentos tanto práticos como teóricos eram transmitidos por uma rede informal. Ainda assim, as parteiras eram capazes de responder às questões teóricas dos exames, uma vez que existiam “catecismos”, ou seja, manuais destinados aos candidatos dos exames, os quais poderiam ser estudados ou decorados pelas parteiras.[12]         

            O estudo dos processos de parteiras possibilita compreender como se davam as relações destas com a estrutura e o funcionamento do dispositivo de fiscalização do ofício. Por exemplo, os documentos sobre a parteira Maria da Cunha, crioula forra, moradora de Pernambuco, informam quais perguntas lhe foram feitas no exame. Entre os temas estão os partos “naturais e não naturais”, “difíceis e dificultosos”, suas dores falsas ou verdadeiras. Também foi perguntado a respeito de quando deveria se negar a fazer o parto, tendo em vista que estes eram casos perigosos e que somente cirurgiões poderiam realizar o procedimento. Isso demonstra que o trabalho da parteira era restrito a ajudar em partos sem dificuldades.[13] Nos registros de confirmação consta que, além do juramento final, as parteiras deveriam se comprometer a cumprir a cláusula que delimitava sua atuação: “a todo e qualquer parto que assistir demorando-se este vinte e quatro horas ou sendo dificultoso não usará de remédios alguns, antes logo chamará professor aprovado para assistir ao referido parto (...)”.[14] Com essa exigência, as parteiras não podiam assistir a quaisquer partos ou mesmo utilizar artifícios, como medicamentos ou acessórios no ato de partejar, sendo esta a função de um cirurgião, um profissional formado em faculdade.

            Essa restrição se relaciona com as leis que passaram a regulamentar o exercício da parturição na Europa, entre os séculos XVIII e XIX, e que incorporaram a divisão do trabalho na qual cirurgiões e parteiras tiveram que seguir os limites estabelecidos para sua atuação. Os cirurgiões defendiam que eles deveriam intervir nos casos de partos complicados, alegando estarem mais bem preparados. O espaço de atuação reduzido das parteiras favoreceu que cirurgiões pudessem garantir sua participação no processo, a princípio determinando um status superior, mas que posteriormente possibilitou o desenvolvimento da obstetrícia, um campo do saber acadêmico baseado em estudos anatômicos.[15]

            A despeito das tentativas de restrição das suas práticas, as parteiras faziam uso de ervas, prescreviam tratamentos e atuavam para além de ajudar a dar à luz em partos fáceis. Sendo assim, a maioria delas pode não ter buscado o licenciamento também pela limitação que era imposta à sua prática, além dos fatores já mencionados. É importante destacar que a presença dos agentes responsáveis pela fiscalização, em muitos casos, foi um fator determinante para o aumento da procura por licenciamento. Comparativamente, nota-se que provinha do Rio de Janeiro, onde havia mais fiscalização, a maior quantidade de parteiras legalizadas. Já em regiões mais afastadas da Corte elas existiam em menor número. Isto é, muitas se viam obrigadas a se submeter aos processos avaliativos da Fisicatura-Mor por receio de fiscalizações ou após sofrerem denúncia. Foi o caso de Romana de Oliveira, preta forra, acusada por um cirurgião de utilizar ervas e mezinhas, além de exercer a atividade de parteira ilegalmente. A mulher apresentou documentos assinados por pessoas com cargos respeitáveis, como um tenente-coronel e um tenente, além de pedir para receber a licença para partejar e aplicar remédios.[16] Uma mesma Romana foi localizada nos registros de confirmação do ofício de parteira, com sua carta passada em 13 de dezembro de 1815.[17] Assim, sua busca pela legalização do ofício foi desencadeada, principalmente, por pressão das autoridades locais, e nem tanto por iniciativa própria ou pela não aceitação na comunidade. Mesmo se tratando de um caso específico, pode-se supor que essa era uma das principais motivações que levavam as parteiras a serem examinadas pela Fisicatura-Mor.

            Apesar de muitas praticarem a arte de partejar sem o reconhecimento oficial, os documentos que tratam da legalização de suas práticas possibilitam compreender a forma como elas exerciam seu trabalho e o que era esperado delas. A importância de se ter ou não uma licença para essas mulheres e para a população, bem como o seu acesso e a obrigatoriedade da legalização são questões importantes para a pesquisa sobre a ofício das parteiras no Brasil e se relacionam com o funcionamento da Fisicatura-Mor e a sua relevância para a sociedade. Dessa forma, a documentação deixada por este órgão possibilita o levantamento do perfil social, matrimonial e jurídico das parteiras, que muito elucida a respeito de quem eram e como era praticado o ofício dessas mulheres, contribuindo assim para o estudo da parturição no Brasil.

 

 

 

Notas      

 

[1] BRENES, Anayansi Correa. História da parturição no Brasil, século XIX. Cadernos de saúde pública, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, p. 135, abr./jun., 1991.

[2] SANTOS FILHO, Licurgo. História geral da medicina brasileira. v. 1. São Paulo: Hucitec; Edusp, 1977, p. 231.

[3] BARRETO, Maria Renilda Nery Barreto. “Assistência ao nascimento na Bahia oitocentista.” História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 15, n. 4, p. 901-925, out./dez. 2008. p. 904.

[4] MOTT, Maria Lúcia. Parteiras: o outro lado da profissão. Gênero: Núcleo Transdisciplinar de Estudos de Gênero, Niterói, v. 6, n. 1, p. 117-140, 2005.

[5] BRASIL. Alvará de 23 de novembro de 1808 - Manda executar os regimentos do físico-mor e cirurgião-mor e regula sua jurisdição e de seus delegados”. Coleção das leis do Brasil. 1808-1811. Rio de Janeiro, p. 163, 1891.

[6] Segundo consta no alvará de 23 de novembro de 1808, a respeito do regimento e da jurisdição do físico-mor e do cirurgião mor, “guardar-se-ão inteiramente os regimentos de 25 de fevereiro de 1521 e de 12 de dezembro de 1631”. E sobre os delegados comissários: “Executem o que está determinado nos §7º e 11º do regimento de 25 de fevereiro de 1521”. 

[7] PIMENTA, Tânia Salgado. Artes de curar: um estudo a partir dos documentos da Fisicatura-Mor no Brasil no começo do século XIX. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1997. p. 23.

[8] Idem. Entre sangradores e doutores: práticas e formação médica na primeira metade do século XIX. Cadernos Cedes, Campinas, v. 23, n. 59, p. 91-102, abr. 2003.

[9] PIMENTA, T. S. Artes de curar: um estudo a partir dos documentos da Fisicatura-Mor no Brasil no começo do século XIX. Op. cit. p. 12.

[10] Ibidem., p. 14.

[11] BARRETO, Maria Renilda Nery. Assistência ao nascimento na Bahia oitocentista. Op. cit. p. 906.

[12] Ibidem., p. 910.

[13] [REQUERIMENTO de Carta Régia autorizando Maria da Cunha, crioula forra, moradora da vila de Santo Antonio, Recife, Pernambuco, ao exercício do ofício de parteira] Recife – Rio de Janeiro, dezembro de 1807 a novembro de 1809. Arquivo Nacional. Fundo Fisicatura-Mor. BR RJANRIO 2O. CAI 468, Pacote 01

[14] [Registros de confirmação do ofício de parteira] Rio de Janeiro. Arquivo Nacional. Fundo Fisicatura-mor. BR RJANRIO 2O.COD.0.145, volumes 1, 2, 3, 6, 8 e 13. (1808-1828).

[15] BARRETO, Maria Renilda Nery.“A ciência do parto nos manuais portugueses de obstetrícia”. Gênero: Núcleo Transdisciplinar de Estudos de Gênero, Niterói, v. 7, p. 220-221.

[16]  [Requerimento de carta régia autorizando Romana de Oliveira, crioula, forra, moradora de São Gonçalo do Côncavo, a exercer o ofício de parteira e curandeira] Rio de Janeiro, julho de 1815. Arquivo Nacional. Fundo Fisicatura-Mor. BR RJANRIO 2O.CAI 474, Pacote 03.

[17] [Registro da Carta de confirmação do ofício de parteira de Romana Oliveira] Rio de Janeiro, dezembro de 1815. Arquivo Nacional. Fundo Fisicatura-Mor. BR RJANRIO 2O.COD.0.145, v. 6.  

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