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Carta de exame de Maria Angélica

Escrito por Ricardo Almeida | Publicado: Quarta, 08 de Janeiro de 2020, 19h32 | Última atualização em Quarta, 05 de Mai de 2021, 20h23

Carta do doutor e conselheiro Jozé Correia Picanço aos Provedores, na qual este permite a prática do ofício de parteira por Maria Angelica de Almeida, filha natural de Maria Pelonia da Silva, natural da freguesia da Ajuda, comarca de São João d’El Rei. A licença foi adquirida após a avaliação realizada por Luiz Rodrigues de Araujo e Thomaz Antonio de Avellar, delegado de Minas Gerais, na qual foi aprovada, portanto. 

 
Conjunto documental: Fisicatura Mor
Notação: Códice 145 volume 06
Datas-limite: 1818 - 1825
Título do fundo ou coleção: Fisicatura Mor
Código do fundo: 2O
Argumento de pesquisa: Parteira
Data do documento: 30 de março de 1821.
Local: Rio de Janeiro
Folha(s):178

 

Leia esse documento na íntegra

 

Thomaz Antonio de Avellar Juiz Comissário Delegado do Ilustríssimo Conselho Cirurgião Mor[1] do Reino Unido[2] em toda a capitania de Minas Gerais[3] por sua Majestade Fidelíssima que vós guarde.

Faço saber aos que apresente minha carta de exame virem que Maria Angélica de Almeida filha de Maria Betânia da Silva natural da Freguesia da Aiuruoca comarca de São João d' El Rei me representou por seu requerimento que ela tinha estudado e praticado a arte de partejar[4]  a qual exercitava com geral aceitação do público e que queria ser na mesma examinada; ao que não tenho dúvida por ser esse requerimento justo, deferi e a admiti a exame na forma da lei, e nomeei para examinadores os cirurgiões[5] confirmados Jozé de Almeida e Francisco Viegas de Menezes, que prestaram juramento, e debaixo dele examinaram na minha presença e do escrivão de seu cargo que esta fez; e depois de lhe fazem as perguntas necessárias; a deram por aprovada. Nemine Discrepante[6]  e assinaram os outros exames que ficaram no cartório deste Juízo processados conforme a lei. E para que a dita Maria Almeida possa reconhecer a sua Regia Confirmação ao Ilustríssimo Senhor Conselheiro Cirurgião Mor Do Reino Unido lhe mandei passar presente pelo tempo de seis meses com pena de ficar sem efeito e sem nenhum vigor, e no referido tempo não apresentar neste juízo sua carta confirmada para ser por mim cumprida e não poderá antes usar da referida arte. Dada e passada nesta Vila de São João d'El Rei aos onze dias do mês de janeiro de 1821 anos. Eu Manoel Moniz do Coito Cabral escrivão que a escrevi.

Tomaz Antonio de Avellar

Carta de Exame pela qual Vossa Mercê a por examinada, aprovada na arte de partejar, a Maria Angélica pelo tempo de seis meses, tudo como nela se contem.

Para Vossa Mercê Ver.

 

[1]CIRURGIÃO-MOR:  no século XVI a legislação do Reino especificava os limites da atuação do físico-mor e do cirurgião-mor, determinando que aos cirurgiões fosse vedado atuar como médicos sem a licença do físico­mor. Por outro lado, proibia aos físicos o exercício da cirurgia, sem a devida licença do cirurgião-mor, equiparando, portanto, as duas autoridades, a despeito da prevalência em todos os campos, do físico sobre o cirurgião. Como explicou Flavio Edler (A saúde pública no período colonial e joanino. http://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5120:saude-e-higiene-publica-na-ordem-colonial-e-joanina&catid=64&Itemid=372), a exigência para que o físico-mor do reino examinasse todos os que praticavam medicina existia desde 1430, sendo de 1448 o Regimento do Cirurgião-mor que estabeleceu as atribuições para o exercício da função. O físico-mor e o cirurgião-mor tiveram suas atribuições separadas em 1521, destacando-se o papel do físico-mor como juiz da Fisicatura, um tribunal, ainda de acordo com Edler. Quase um século depois, o regimento do Cirurgião-Mor do reino, de 12 de dezembro de 1631, dispunha que este examinaria todos os que fossem exercer o oficio de cirurgia, exigindo-se o domínio do latim e a prática no hospital da região em que viviam. O cirurgião-mor contava com dois barbeiros para examinar os sangradores treinados pelos mestres-cirurgiões. Data de 16 de maio de 1774 o regimento de autoria do físico-mor do reino e que pautava a conduta dos físicos na América portuguesa. Em 1808, o Alvará de 23 de novembro mandou executar os Regimentos do Físico Mor e Cirurgião Mor, regular a sua jurisdição e de seus Delegados, aludindo ao Decreto de 7 de fevereiro do mesmo ano que havia criado o Físico Mor e o Cirurgião Mor do Reino, Estados e Domínios Ultramarinos. A regulamentação é justificada face aos conflitos entre o Físico Mor e a Relação da Bahia. A legislação anterior, desde 1515, bem como o regimento de 1744 é mantida em vigor a exceção do que tivesse sido abolido. Já o Alvará de 22 de janeiro de 1810 que dava “regimento aos delegados do Físico-Mor” estabelecendo providências sobre a saúde pública, considerou que o Regimento de 1744 “por diminuto e porque tendo sido feito em tempos remotos não pode quadrar ao presente". O primeiro físico-mor no Brasil foi José Corrêa Picanço, professor de Anatomia e Cirurgia da Universidade de Coimbra, primeiro cirurgião da Casa Real e cirurgião-mor do Reino. Após a Independência a Lei de 30 de agosto de 1828 extingue os lugares de Provedor-mor, Físico-mor e cirurgião-mor do Império passando as suas competências às Câmaras Municipais e Justiças ordinárias.

[2] REINO UNIDO DE PORTUGAL E ALGARVES: em 16 de dezembro de 1815, o Brasil foi elevado à categoria de reino e o príncipe regente d. João tornou-se soberano do Reino Unido de Portugal, do Algarve e do Brasil. Trata-se da consagração de um processo iniciado com a mudança da Corte para o Rio de Janeiro e reforçado pelas transformações que essa transmigração gerou. Instalada em sua colônia americana, em consequência das guerras napoleônicas, a família real portuguesa viu-se em uma situação delicada depois do Congresso de Viena, cujas diretrizes expressavam o sentimento restaurador das velhas monarquias europeias. Reafirmando a legitimidade dos antigos soberanos e dos velhos reinos europeus, o Congresso reconhecia apenas Portugal e sua capital, Lisboa, como par, o que deixava o monarca português vivendo nos trópicos em meio a um dilema. A saída veio com a elevação do Brasil à categoria de Reino Unido, que igualou o estatuto do Brasil ao do Reino de Portugal. Aparentemente, a solução apresentada pelo delegado francês no Congresso, o ministro das Relações Exteriores da França, Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord, de elevar o Brasil a Reino Unido de Portugal e Algarve, pretendia reforçar os laços entre Portugal e Brasil que, embora não mais uma simples colônia, continuaria atrelado à Coroa portuguesa. E, especificamente em um momento de restauração das antigas tradições das monarquias europeias, defendia e legitimava a presença europeia e monárquica no continente sul-americano, cada vez mais independente e republicano. Para os que representavam os “brasileiros”, a elevação significou o fim do pacto colonial e de um status definitivamente inferior em relação à metrópole. Na prática, o tempo mostrou que esta medida seria um passo fundamental para a Independência, pois, no momento em que as elites portuguesas exigiram o retorno da família real e o rebaixamento do Brasil novamente à colônia, tal retrocesso mostrou-se impossível, culminando em uma ruptura – processo cuja origem, extensão e efeito seriam objeto de uma extensa discussão historiográfica sobre o lugar e o papel do país no cenário americano e internacional.

[3] MINAS GERAIS, CAPITANIA DE: Nascida a partir do desmembramento da capitania de São Paulo e Minas do Ouro, ocorrido em 1720, Minas Gerais foi o foco da exploração de ouro e pedras preciosas – inclusive diamantes – ao longo do século XVIII. O início da exploração do ouro em fins do século XVII faria com que a metrópole implementasse reformas administrativas e legislativas com o intuito de estabelecer um maior controle sobre o território e sobre a exploração das suas riquezas, processo acentuado com a descoberta de diamantes na década de 1720. Em 1709, a crise causada pelo confronto entre os primeiros exploradores da região das minas e os “aventureiros” que chegaram posteriormente resultou no conflito conhecido por Guerra dos Emboabas e foi uma das causas para a criação da capitania de São Paulo e Minas do Ouro. Em 1720, a revolta de Felipe dos Santos (ou de Vila Rica), que questionava a forma de tributação sobre o ouro e a intensificação do controle da coroa sobre as atividades locais sob a forma da criação das casas de fundição oficiais contribuiu para novo desmembramento, e a criação da capitania de Minas Gerais. O levante de 1720 não seria o último a opor a coroa aos colonos em torno da exploração e taxação das riquezas da região; em 1789 – no período de decadência da exploração colonial do ouro, diametralmente oposto ao do movimento de Felipe dos Santos – ocorreu a Conjuração Mineira, já sob a influência das ideias liberais e da revolução americana. Tornada polo dinamizador da economia colonial, a capitania das Minas (agora, Gerais, e não apenas do ouro) desenvolve, na sua rede de povoados, vilas e cidades uma sociedade mais urbana e dinâmica do que a que caracterizava a economia agrícola, cuja exclusividade marcou os primeiros dois séculos da colonização. À medida que ouro e diamantes jorravam, as cidades se desenvolviam e sofisticavam, a sociedade se diversificava, assim como as atividades econômicas, a despeito da repressão da metrópole que não via com bons olhos a produção local de bens necessários ao dia a dia dos colonos e à própria atividade mineradora. Neste painel variado, a massa de escravos e o pequeno grupo de senhores – molas mestras da produção de riquezas –  dividiam espaço com artistas, intelectuais, comerciantes de víveres, e um sem número de “sem destinos”, indivíduos que vagavam à margem da sociedade e da riqueza da qual se apossavam poucos privilegiados. De forma não muito diferente do que ocorre nos dias de hoje, em regiões em que uma fonte potencial de riqueza é subitamente descoberta e explorada, os lucros e benefícios da nova atividade tendem a se concentrar de forma intensa, deixando à margem uma quase horda de excluídos, muitos deles vivendo a vã esperança de partilhar as sobras possíveis. Não é à toa que a paisagem arquitetônica desenvolvida ao longo do século XVIII impressiona até os dias de hoje, e lançou para a história nomes como Manuel Francisco Lisboa, que planejou a igreja do Carmo, em Ouro Preto (antiga Vila Rica). Artistas locais, como Aleijadinho e Mestre Ataíde, desenvolveram uma versão nativa de barroco/ rococó e beneficiavam-se do grande afluxo de riquezas. Patrocinadas pelas irmandades e ordens terceiras – organizações religiosas de indivíduos sem vínculo com a Igreja, mas que se dedicam a um culto específico –, que tiveram um papel crucial na vida social da região das minas, as opulentas igrejas se multiplicaram, exibindo o esplendor de uma era que chegaria ao fim com o século XVIII. Após a década de 1760 percebe-se que a comarca do Rio das Mortes passou a apresentar um crescimento demográfico substancial, em oposição à comarca de Vila Rica, que começava a perder população. Isso se deveu ao declínio da produção de ouro – estreitamente relacionada à Vila Rica – e a diversificação e florescimento da agricultura, da pecuária e até mesmo, em certa medida, da nascente produção manufatureira em Rio das Mortes. Esta transformação marca o início da queda da produção de ouro na região e indica a diversificação de atividades para além da mineração.

[4] ARTE DE PARTEJAR: em Portugal, desde o século XVI, o ofício das parteiras era sujeito à regulamentação junto ao físico-mor, conforme o Regimento das parteiras da Câmara Municipal de Lisboa, de 1572. A inclusão da atividade no programa das instituições médicas europeias se deu a partir do século XVII e posteriormente esse controle chegaria à América portuguesa. Muitas mulheres atuaram como parteiras antes de se submeterem ao exame da fisicatura-mor para obtenção de licenças, e a maioria delas nunca o fez. Com frequência, elas foram identificadas como curiosas e cada vez mais desvalorizadas pelos médicos que as responsabilizavam por não os chamar em partos difíceis e por receitarem elixires às parturientes, entre outras atitudes que teriam conduzido as gestantes à morte (PIMENTA, T. S. “Curandeiro, parteira e sangrador: ofícios de cura no início do oitocentos na corte imperial”. Khronos, nº6, pp. 59 - 64. 2018). Por outro lado, o conhecimento adquirido e acumulado na prática e na atuação conjunta com mulheres mais experientes era reconhecido no auto de exame prestado à Fisicatura, no qual a expressão “arte de partejar” significava tanto o estudo e exercício prévios quanto a atividade doravante aprovada pelo cirurgião-mor do Reino.

[5] CIRURGIÃO: a cirurgia vem de uma longa tradição científica que nos séculos XVII e XVIII podia ser localizada no tratado árabe “O método da medicina”, de Albucasis, (936-1013) traduzido em latim e largamente disseminado na Idade Média. Na França a cirurgia teria sido o campo mais radicalmente transformado no século das Luzes, como escreve Alain Touwaide (Chirurgie. In: Delon, M. Dictionnaire européen des Lumières, 1997). É nesse período que os cirurgiões conquistam o respeito dos médicos e que a cirurgia se torna, nas universidades, um instrumento de investigação do corpo e da própria doença. Os cirurgiões distinguiam-se dos médicos, havendo diferenças entre eles, como em Portugal onde eram divididos em três tipos, os diplomados, aprovados e barbeiros, segundo a formação e local de aprendizagem, como hospitais militares, misericórdias ou outros hospitais, como explica Lycurgo Santos Filho (Cirurgiões. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza. Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil, 1994). Predominaram no Brasil e em Portugal os cirurgiões-barbeiros, acolhidos como aprendizes pelos mestres cirurgiões. Ainda de acordo com Santos Filho, nos séculos XVI e XVII os cirurgiões eram quase todos cristãos novos, quase sempre perseguidos pelo Santo Ofício por práticas judaizantes, mas que dada sua especialidade chegaram a postos de destaque na sociedade colonial, como assinala Ronaldo Vainfas (Cf. Cirurgiões. In: Dicionário do Brasil colonial, 1500-1808, 2001). Nos séculos seguintes os cirurgiões na América portuguesa foram muitas vezes negros, escravizados ou não, além dos classificados como brancos ou mulatos. Cabia-lhes sangrar, aplicar bichas ou ventosas, escalda-pés, banhos, arrancar dentes, e, cortar cabelo e fazer a barba. Sem que tivessem autorização para tal, procediam a amputações e lancetavam abscessos diz Lycurgo S. Filho. A cirurgia seguiria dividida entre aqueles que adquiriam o conhecimento com mestres ou pela prática e outros que a exerceriam a partir das universidades. A partir de 1808 os hospitais militares de Salvador e do Rio de Janeiro passam a contar com cursos de cirurgia; Entre 1813 e 1816 são fundadas, nas mesmas cidades, academias médico-cirúrgicas que concedem diplomas de cirurgião e cirurgião formado. Em 1832 são criadas faculdades de medicina no Império. (PIMENTA, T. S. “Curandeiro, parteira e sangrador: ofícios de cura no início do oitocentos na corte imperial”. Khronos, nº6, pp. 59 - 64. 2018.)

[6] NEMINE DISCREPANTE: expressão latina para designar algo que foi aprovado por unanimidade, “sem discrepância”.

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