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Sala de aula

Escrito por Ricardo Almeida | Publicado: Quinta, 09 de Janeiro de 2020, 13h20 | Última atualização em Quinta, 09 de Janeiro de 2020, 13h20

Autos de exame de Maria da Cunha

Requerimento de Carta Régia autorizando Maria da Cunha, crioula forra, moradora da vila de Santo Antonio, Recife, Pernambuco, ao exercício do ofício de parteira. Junto ao requerimento encontram-se os autos de exame da candidata, escritos em 23 de dezembro de 1807 por Francisco Antonio da Fonseca. Foram feitas perguntas sobres os partos “naturais e não naturais”, “difíceis e dificultosos”, “suas dores falsas e verdadeiras”. Também lhe foi perguntado sobre quando deveria se negar a fazer o parto, pois estes eram casos perigosos e que somente médicos poderiam realizar.

 

Conjunto documental: Fisicatura Mor
Notação: Caixa 468, Pacote 01
Datas-limite: 1810 – 1828
Título do fundo ou coleção: Fisicatura Mor
Código do fundo: 2O
Argumento de pesquisa: Parteira
Data do documento: dezembro de 1807 a novembro de 1809
Local: Recife – Rio de Janeiro

 

Leia esse documento na íntegra

 

Autos de exame de Maria da Cunha

Ilustríssimo Senhor Conselheiro Cirurgião Mor do Reino[1]

Passe carta. Paço de Santa Cruz,

21 de novembro de 1809

Joze Correia Picanço[2]

Diz Maria da Cunha, moradora em Pernambuco[3], que ela, pelo auto incluso, mostra ter feito o seu exame do ofício de parteira[4], do qual saiu aprovada como consta do mesmo auto, e para que deseja que V. S. lhe mande passar a sua confirmação, e não pode fazer sem despacho portanto.

Para V. S. seja servido mandar passar na forma do estilo.

Passei carta de confirmação do ofício de parteira aos 21 de novembro de 1809 que ficou requerida neste juízo no livro 2o a folha 48.

Luís Bandeira de Gouveia

Do livro da Comissão Geral da capitania de Pernambuco

Para o Régio Tribunal da Junta do Protomedicato da corte e cidade de Lisboa

 

O doutor João Lopes Cardoso Machado, cavalheiro professo na Ordem de Cristo, comissário geral e juiz, delegado de medicina e cirurgia da Real Junta do Protomedicato[5] das capitanias de Pernambuco e Itamaracá e Rio Grande e Ceará com alçada no crime e civil por sua Alteza Real o Príncipe Regente[6] Nosso Senhor que Deus guarde V., faço saber que Maria da Cunha, crioula forra[7], moradora nesta Vila de Santo Antonio do Recife, capitania de Pernambuco, freguesia de São Frei Pedro Gonçalves, me requereu queria examinar-se no ofício de parteira e sendo admitida nomeei para examinadores Luis Ribeiro Peixoto dos Guimarães e Antonio Batista da Conceição, cirurgiões[8] aprovados por Sua Alteza Real, estes sendo juramentados, a examinaram na minha presença e do escrivão do meu cargo secretário dos exames abaixo nominado e assinado pratica e teoricamente, e por satisfazer as perguntas que lhe foram feitas aprovaram nenime discrepante[9] e eu, juiz comissário a houve também por aprovada nemine discrepante determinando-lhe que dentro de oito meses apresentaria sua carta de aprovação desse Régio Tribunal e pena de incorrer nas do Regimento caso o não fizesse no referido tempo mandando-lhe entregar o depósito que tinha feito a quantia de dois mil e oitocentos pertencentes a esse Régio Tribunal na forma do costume, visto me ter requerido e consta do recibo junto aos autos o ter recebido. E para constar mandar passar a presente, que vai assinada por mim e pelos examinadores e o meu escrivão secretário dos exames. Dada e passada nesta vila de Santo Antônio do Recife, capitania de Pernambuco, aos vinte e três dias do mês de dezembro do ano de mil oitocentos e sete e eu Francisco Antonio da Fonseca escrivão atual de medicina cirurgia e secretário dos exames as escrevi e assinei.

João Lopes Cardoso Machado

 

Auto de exame

Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e sete aos dezenove dias do mês de dezembro do dito ano, nesta Vila de Santo Antonio do Recife, capitania de Pernambuco, em casa de morada do doutor Juiz Comissario Geral Delegado de Medicina e Cirurgia da Real Junta do Protomedicato, João Lopez Cardoso Machado, onde eu, escrivão secretário dos exames, vim aqui apareceram presentes os cirurgiões aprovados Luis Ribeiro dos Guimarães e Antonio Baptista da Conceição, nomeados pelo dito Juiz para examinadores, e notificados por mim escrivão para examinarem a Maria da Cunha que presente estava e logo por cada um dos examinadores foi examinada fazendo-se várias perguntas sobre os partos naturais e não naturais difícil ou dificultosos suas dores e diferenças que faz das dores falsas e verdadeiras, sintomas e o que deverá observar sobre os mesmos e quando devera (digo) quando devem requerer sobre os perigosos e que delegacia deveria obviar por ela, o que tendo respondido com desembaraço aptidão sem perturbação alguma e mandada retirar e corridos os votos deram por aprovada nemine discrepante e o dito doutor juiz comissário também achou aprovada por nemine discrepante, cujo o exame foi feito na presença do dito doutor juiz comissário e de mim escrivão secretário e para constar fiz esse autuamento (digo) este auto mandado pelo dito doutor juiz comissário, em que assinou com os examinadores comigo escrivão e eu, Francisco Antonio da Fonseca, escrivão atual de Medicina Cirúrgica e secretário dos exames, escrevi assinei. Declaro por não saber escrever assinou de cruz perante todos Eu escrivão escrevi e assinei. João Lopes Cardozo Machado, Luiz Ribeiro Peixoto dos Guimarães, Antonio Baptista da Conceição, estava a assinatura de Maria da Cunha que é uma cruz.

O escrivão Francisco Antonio da Fonceca (digo) O escrivão secretário dos exames Francisco Antonio da Fonceca.

 

[1] CIRURGIÃO-MOR: no século XVI a legislação do Reino especificava os limites da atuação do físico-mor e do cirurgião-mor, determinando que aos cirurgiões fosse vedado atuar como médicos sem a licença do físico­mor. Por outro lado, proibia aos físicos o exercício da cirurgia, sem a devida licença do cirurgião-mor, equiparando, portanto, as duas autoridades, a despeito da prevalência em todos os campos, do físico sobre o cirurgião. Como explicou Flavio Edler (A saúde pública no período colonial e joanino. http://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5120:saude-e-higiene-publica-na-ordem-colonial-e-joanina&catid=64&Itemid=372), a exigência para que o físico-mor do reino examinasse todos os que praticavam medicina existia desde 1430, sendo de 1448 o Regimento do Cirurgião-mor que estabeleceu as atribuições para o exercício da função. O físico-mor e o cirurgião-mor tiveram suas atribuições separadas em 1521, destacando-se o papel do físico-mor como juiz da Fisicatura, um tribunal, ainda de acordo com Edler. Quase um século depois, o regimento do Cirurgião-Mor do reino, de 12 de dezembro de 1631, dispunha que este examinaria todos os que fossem exercer o oficio de cirurgia, exigindo-se o domínio do latim e a prática no hospital da região em que viviam. O cirurgião-mor contava com dois barbeiros para examinar os sangradores treinados pelos mestres-cirurgiões. Data de 16 de maio de 1774 o regimento de autoria do físico-mor do reino e que pautava a conduta dos físicos na América portuguesa. Em 1808, o Alvará de 23 de novembro mandou executar os Regimentos do Físico Mor e Cirurgião Mor, regular a sua jurisdição e de seus Delegados, aludindo ao Decreto de 7 de fevereiro do mesmo ano que havia criado o Físico Mor e o Cirurgião Mor do Reino, Estados e Domínios Ultramarinos. A regulamentação é justificada face aos conflitos entre o Físico Mor e a Relação da Bahia. A legislação anterior, desde 1515, bem como o regimento de 1744 é mantida em vigor a exceção do que tivesse sido abolido. Já o Alvará de 22 de janeiro de 1810 que dava “regimento aos delegados do Físico-Mor” estabelecendo providências sobre a saúde pública, considerou que o Regimento de 1744 “por diminuto e porque tendo sido feito em tempos remotos não pode quadrar ao presente". O primeiro físico-mor no Brasil foi José Corrêa Picanço, professor de Anatomia e Cirurgia da Universidade de Coimbra, primeiro cirurgião da Casa Real e cirurgião-mor do Reino. Após a Independência a Lei de 30 de agosto de 1828 extingue os lugares de Provedor-mor, Físico-mor e cirurgião-mor do Império passando as suas competências às Câmaras Municipais e Justiças ordinárias.

[2] PICANÇO, JOSÉ CORREA (1745-1823): barão de Goiana, era natural de Pernambuco e frequentou os estudos superiores de cirurgia em Lisboa, dando continuidade ao seu aprendizado em Paris, onde obteve o título de doutor em Medicina pela faculdade de Montpellier. Foi um dos signatários do Plano de Exames da Real Junta do Proto-Medicato – criada em 1782, em substituição aos cargos de físico-mor e cirurgião mor, responsável pela concessão de cartas e licenças para o exercício da atividade médica e cirúrgica –, empenhando-se na regularização e fiscalização da arte cirúrgica no Reino e colônias. Vindo para o Brasil por ocasião da transferência da família real portuguesa, coube a Picanço a proposta para criação de um curso de cirurgia na colônia americana. Anuindo à proposta feita, o príncipe regente ordenou a fundação da primeira Escola de Cirurgia do Brasil, sediada no Hospital Real Militar da Bahia, em fevereiro de 1808. José Correa Picanço foi lente da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (1789), sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa, cavaleiro professo e comendador da Ordem de Cristo, cavaleiro da Ordem da Torre e Espada, fidalgo da Casa Real, primeiro-cirurgião da Real Câmara e cirurgião-mor do Reino e Ultramar. É atribuída a ele a realização da primeira cirurgia cesariana no Brasil (1822).

[3]PERNAMBUCO: a capitania de Pernambuco foi uma das subdivisões do território brasileiro no período colonial. Em 9 de março de 1534, essas terras foram doadas ao fidalgo português Duarte Coelho Pereira, que fundou Recife e Olinda (primeira capital do estado) e iniciou a cultura da cana-de-açúcar e do algodão, que teriam importante papel na história econômica do país. A capitania, originalmente, estendia-se por 60 léguas entre os rios Igaraçu e São Francisco, e era chamada de Nova Lusitânia. Nos primeiros anos da colonização, junto com São Vicente, a capitania teve grande destaque, pois sua exploração foi bem-sucedida, principalmente devido ao cultivo e produção do açúcar, responsável por mais da metade das exportações brasileiras. O sucesso da lavoura açucareira atraiu investimentos de outros colonos portugueses. O povoado de Olinda prosperou, tanto que, em 1537, o povoado foi elevado à categoria de vila, tornando-se um dos mais importantes centros comerciais da colônia. Em 1630, no entanto, os holandeses invadem Olinda e conquistam Pernambuco. A vila foi incendiada em 1631, como resultado dos contra-ataques portugueses, e Recife torna-se, então, o centro administrativo da capitania, crescendo sob a administração dos holandeses. O domínio holandês, sob a administração do conde Maurício de Nassau, provocou mudanças econômicas, sociais e culturais: tolerância religiosa; melhoramento urbano em Recife; incentivo a atividades artísticas e estudos científicos, além de acordos com os senhores de engenho no sentido de minorar suas dívidas e incentivar a produção de açúcar. Os holandeses foram expulsos em 1654 e foi iniciada a lenta reconstrução da vila de Olinda. Os anos de guerra e os conflitos internos abalaram a economia da capitania e, com o crescimento de outras regiões da colônia, Pernambuco perdeu sua supremacia econômica. Foi, também, no século XVII, que se formou o quilombo dos Palmares, o maior centro de resistência negra à escravidão do período colonial. Parte dele localizava-se em terras da capitania de Pernambuco e era formado por escravos fugitivos. Foi destruído em 1690, por Domingos Jorge Velho, após quase um século de existência. Pernambuco foi palco de diversos conflitos e revoltas. A guerra dos mascates, em 1710 e 1711, apresentou-se como um embate entre interesses imediatos de comerciantes portugueses – concentrados em Recife, pejorativamente chamados de mascates – e senhores de engenho, assentes em Olinda. A já existente rivalidade entre as duas cidades, que expressava uma disputa de poder político entre os dois grupos mencionados, acentuou-se em 1710, com a elevação do povoado de Recife à categoria de vila, independente de Olinda que, a partir de então, entraria em declínio, perdendo o status de capital para a rival logo em 1711. Em 1817, outro conflito eclodiria na capitania, a Revolução Pernambucana, que marcou o período de governo de d. João VI como um dos principais movimentos de contestação ao domínio português. Em meio a esse clima, a dissolução da Assembleia Constituinte, em 1823, e a outorga da Constituição de 1824 por d. Pedro I geraram violenta reação de Pernambuco. Após a tentativa de destituição de Manuel Paes de Andrade da presidência da província, para a nomeação de Francisco Pais Barreto pelo Imperador, acirraram-se as tensões, abrindo caminho para um movimento contestador: a Confederação do Equador – grande movimento revolucionário de caráter separatista e republicano que se estendeu por grande parte do nordeste brasileiro e teve Pernambuco como centro irradiador.

[4] PARTEIRAS: as mulheres foram as principais responsáveis pelos procedimentos e apoio às parturientes e aos nascituros até que a atividade fosse incluída no programa das instituições médicas europeias no século XVII primeiramente e depois na América portuguesa. No entanto, sabe-se que desde o século XVI, em Portugal, já se sujeitava o ofício das parteiras já estava sujeito à regulamentação junto ao físico-mor, como parte do registro de artes mecânicas e que obrigava ao exame diante do físico da cidade, como se depreende do Regimento das parteiras da Câmara Municipal de Lisboa de 1572. A intervenção pública sobre esse evento, de natureza intrinsecamente privada até então, tem ao fundo o fato conhecido, mas mantido em silêncio, do infanticídio, recorrente entre as famílias, como assinala Marinha N. F. Carneiro. (Ajudar a nascer. Parteiras, saberes obstétricos e modelos de formação (séculos XV-XX). Universidade do Porto, 2003. Dissertação de doutoramento), um costume proibido, mas tolerado até pelo menos o século XVII, quando, escreve o historiador francês Philippe Ariés, “a parteira, esta feiticeira-branca recuperada pelos Poderes terá como missão proteger a criança”. No século XVIII aprofunda-se o controle sobre o trabalho das parteiras e a prevalência da autoridade de médicos e do físico, que se acresce ao já consolidado poder da Igreja. O século das Luzes privilegia a erudição, em oposição ao saber das parteiras, e a expressão “arte obstetrícia” seria incluída nos Estatutos da Universidade de Coimbra de 1772. Ainda no século XVIII, a criação de instituições como o Asilo da maternidade, em Paris, no ano de 1795, no lugar do Serviço das Parturientes, tido como um verdadeiro “leito de morte”, parece anunciar uma transformação científica nesse campo, caracterizando uma medicalização do parto. Cabia à parteira-chefe ministrar aulas teóricas e “práticas”, estas últimas realizadas em um anfiteatro com um manequim, segundo Scarlet Beauvalet-Boutouyrie (“As parteiras-chefes da maternidade Port-Royal de Paris no século XIX: obstetras antes do tempo?” Estudos Feministas 403, 2/2002). Na América portuguesa, os partos foram praticados com pouquíssimo controle, mesmo a partir da obrigação de registro junto a Fisicatura-Mor em 1808. Com a presença da corte, os processos envolvendo candidatas no Reino também passavam pelas autoridades do Rio de Janeiro. Aos exames estavam presentes cirurgiões e um escrivão, seguindo-se, em caso de aprovação, o requerimento de carta régia autorizando o exercício daquele ofício. O processo de avaliação era pago, como no exemplo de registra uma moradora da comarca de Aveiro, Portugal, que despendeu 440 reis. No Brasil, as requerentes foram frequentemente descritas como pretas, pardas e crioulas forras, indicando ser uma ocupação comum a essa parcela da população. As parteiras eram conhecidas ainda como aparadeiras, comadres e outras denominações, o que indica uma familiaridade entre as mulheres, em um contato que ocorria quase sempre no interior das casas, sendo raros os casos em que, devido às urgências e complicações no parto, se recorria às santas casas de misericórdia.

[5] REAL JUNTA DO PROTOMEDICATO: órgão criado em 1782 durante o reinado de d. Maria I, visando centralizar a fiscalização das práticas médicas na América portuguesa, onde o controle estava a cargo dos representantes da metrópole, que atuavam com base em regulamentos, avisos e alvarás expedidos pela Coroa (“Escola de Cirurgia da Bahia”. In: Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1930). COC / Fiocruz – http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br). A criação do Protomedicato vinha substituir o sistema anterior de fiscalização, dado pelo Regimento de 1742-1744, que dispunha sobre as atribuições de comissário para os médicos e examinadores visitadores, atividades que proporcionavam retorno financeiro principalmente aos visitadores, como afirma Laurinda Abreu, que se refere ainda a uma estrutura mais complexa, a partir de então, nos quadros locais de fiscalização, como se verifica em 1784 com as nomeações para os cargos de escrivães dos comissários da repartição de medicina e farmácia na Bahia e em Pernambuco (A institucionalização do saber médico e suas implicações sobre a rede de curadores oficiais na América portuguesa. Tempo, Niterói, v. 24, n. 3, p. 493-524, Dec. 2018). A partir de 1799, o Protomedicato é elevado à categoria de Tribunal Régio com presença mais expressiva no Brasil do que no Reino, onde encontraria oposição da parte de outros representantes do exercício da medicina, cirurgia e farmácia. A Junta reunia cinco médicos, dois cirurgiões e toda uma rede de comissários e visitadores gerais e tinha entre seus objetivos o combate às formas populares de práticas curativas. A criação do órgão se deu ainda a partir da suspensão dos cargos de físico-mor e cirurgião-mor do Reino, tradicionais opositores da Universidade de Coimbra, entre outras posturas corporativas, segundo Bruno Barreiros (As complexas teias da medicina popular. Projeto político e resistências populares em Portugal no século XIX. CEM n.º 5/ Cultura, Espaço & Memória, 2018). Com a instalação da Corte no Brasil e a criação da Fisicatura Mor, a Junta do Protomedicato foi extinta por alvará de 7 de janeiro de 1809.

[6] JOÃO VI, D. (1767-1826): segundo filho de d. Maria I e d. Pedro III, se tornou herdeiro da Coroa com a morte do seu irmão primogênito, d. José, em 1788. Em 1785, casou-se com a infanta Dona Carlota Joaquina, filha do herdeiro do trono espanhol, Carlos IV que, na época, tinha apenas dez anos de idade. Tiveram nove filhos, entre eles d. Pedro, futuro imperador do Brasil. Assumiu a regência do Reino em 1792, no impedimento da mãe que foi considerada incapaz. Um dos últimos representantes do absolutismo, d. João VI viveu num período tumultuado. Foi sob o governo do então príncipe regente que Portugal enfrentou sérios problemas com a França de Napoleão Bonaparte, sendo invadido pelos exércitos franceses em 1807. Como decorrência dessa invasão, a família real e a Corte lisboeta partiram para o Brasil em novembro daquele ano, aportando em Salvador em janeiro de 1808. Dentre as medidas tomadas por d. João em relação ao Brasil estão a abertura dos portos às nações amigas; liberação para criação de manufaturas; criação do Banco do Brasil; fundação da Real Biblioteca; criação de escolas e academias e uma série de outros estabelecimentos dedicados ao ensino e à pesquisa, representando um importante fomento para o cenário cultural e social brasileiro. Em 1816, com a morte de d. Maria I, tornou-se d. João VI, rei de Portugal, Brasil e Algarves. Em 1821, retornou com a Corte para Portugal, deixando seu filho d. Pedro como regente.

[7] CRIOULA FORRA: as crioulas, assim chamadas em geral por constituírem a segunda geração de africanos escravizados trazidos à América portuguesa, contribuíram para que, ao final do século XVIII, a maior parte dos alforriados fosse de origem urbana e feminina. As alforrias podiam ser obtidas de muitas formas, desde a compra da liberdade a doações gratuitas, deixadas em testamento, recompensas e outras modalidades. Nesse cenário e em todas as regiões, “as mulheres africanas e crioulas se destacaram quantitativamente entre os forros”, levando a uma transformação desse perfil nas cidades, “cada vez mais mestiço e feminino, surgindo espaços dominados pelos forros e seus descendentes nascidos livres” (PAIVA, Eduardo França. Alforrias. In: SCHWARCZ, L. M., GOMES, Flávio dos Santos. Dicionário da Escravidão e Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 94).

[8] CIRURGIÃO: A cirurgia vem de uma longa tradição científica que nos séculos XVII e XVIII podia ser localizada no tratado árabe “O método da medicina”, de Albucasis, (936-1013) traduzido em latim e largamente disseminado na Idade Média. Na França a cirurgia teria sido o campo mais radicalmente transformado no século das Luzes, como escreve Alain Touwaide (Chirurgie. In: Delon, M. Dictionnaire européen des Lumières, 1997). É nesse período que os cirurgiões conquistam o respeito dos médicos e que a cirurgia se torna, nas universidades, um instrumento de investigação do corpo e da própria doença. Os cirurgiões distinguiam-se dos médicos, havendo diferenças entre eles, como em Portugal onde eram divididos em três tipos, os diplomados, aprovados e barbeiros, segundo a formação e local de aprendizagem, como hospitais militares, misericórdias ou outros hospitais, como explica Lycurgo Santos Filho (Cirurgiões. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza. Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil, 1994). Predominaram no Brasil e em Portugal os cirurgiões-barbeiros, acolhidos como aprendizes pelos mestres cirurgiões. Ainda de acordo com Santos Filho, nos séculos XVI e XVII os cirurgiões eram quase todos cristãos novos, quase sempre perseguidos pelo Santo Ofício por práticas judaizantes, mas que dada sua especialidade chegaram a postos de destaque na sociedade colonial, como assinala Ronaldo Vainfas (Cf. Cirurgiões. In: Dicionário do Brasil colonial, 1500-1808, 2001). Nos séculos seguintes os cirurgiões na América portuguesa foram muitas vezes negros, escravizados ou não, além dos classificados como brancos ou mulatos. Cabia-lhes sangrar, aplicar bichas ou ventosas, escalda-pés, banhos, arrancar dentes, e, cortar cabelo e fazer a barba. Sem que tivessem autorização para tal, procediam a amputações e lancetavam abscessos diz Lycurgo S. Filho. A cirurgia seguiria dividida entre aqueles que adquiriam o conhecimento com mestres ou pela prática e outros que a exerceriam a partir das universidades. A partir de 1808 os hospitais militares de Salvador e do Rio de Janeiro passam a contar com cursos de cirurgia; Entre 1813 e 1816 são fundadas, nas mesmas cidades, academias médico-cirúrgicas que concedem diplomas de cirurgião e cirurgião formado. Em 1832 são criadas faculdades de medicina no Império. (PIMENTA, T. S. “Curandeiro, parteira e sangrador: ofícios de cura no início do oitocentos na corte imperial”. Khronos, nº6, pp. 59 - 64. 2018.)

[9] NEMINE DISCREPANTE: expressão latina para designar algo que foi aprovado por unanimidade, “sem discrepância”.

Carta de exame de Maria Angélica

Carta do doutor e conselheiro Jozé Correia Picanço aos Provedores, na qual este permite a prática do ofício de parteira por Maria Angelica de Almeida, filha natural de Maria Pelonia da Silva, natural da freguesia da Ajuda, comarca de São João d’El Rei. A licença foi adquirida após a avaliação realizada por Luiz Rodrigues de Araujo e Thomaz Antonio de Avellar, delegado de Minas Gerais, na qual foi aprovada, portanto. 

 
Conjunto documental: Fisicatura Mor
Notação: Códice 145 volume 06
Datas-limite: 1818 - 1825
Título do fundo ou coleção: Fisicatura Mor
Código do fundo: 2O
Argumento de pesquisa: Parteira
Data do documento: 30 de março de 1821.
Local: Rio de Janeiro
Folha(s):178

 

Leia esse documento na íntegra

 

Thomaz Antonio de Avellar Juiz Comissário Delegado do Ilustríssimo Conselho Cirurgião Mor[1] do Reino Unido[2] em toda a capitania de Minas Gerais[3] por sua Majestade Fidelíssima que vós guarde.

Faço saber aos que apresente minha carta de exame virem que Maria Angélica de Almeida filha de Maria Betânia da Silva natural da Freguesia da Aiuruoca comarca de São João d' El Rei me representou por seu requerimento que ela tinha estudado e praticado a arte de partejar[4]  a qual exercitava com geral aceitação do público e que queria ser na mesma examinada; ao que não tenho dúvida por ser esse requerimento justo, deferi e a admiti a exame na forma da lei, e nomeei para examinadores os cirurgiões[5] confirmados Jozé de Almeida e Francisco Viegas de Menezes, que prestaram juramento, e debaixo dele examinaram na minha presença e do escrivão de seu cargo que esta fez; e depois de lhe fazem as perguntas necessárias; a deram por aprovada. Nemine Discrepante[6]  e assinaram os outros exames que ficaram no cartório deste Juízo processados conforme a lei. E para que a dita Maria Almeida possa reconhecer a sua Regia Confirmação ao Ilustríssimo Senhor Conselheiro Cirurgião Mor Do Reino Unido lhe mandei passar presente pelo tempo de seis meses com pena de ficar sem efeito e sem nenhum vigor, e no referido tempo não apresentar neste juízo sua carta confirmada para ser por mim cumprida e não poderá antes usar da referida arte. Dada e passada nesta Vila de São João d'El Rei aos onze dias do mês de janeiro de 1821 anos. Eu Manoel Moniz do Coito Cabral escrivão que a escrevi.

Tomaz Antonio de Avellar

Carta de Exame pela qual Vossa Mercê a por examinada, aprovada na arte de partejar, a Maria Angélica pelo tempo de seis meses, tudo como nela se contem.

Para Vossa Mercê Ver.

 

[1]CIRURGIÃO-MOR:  no século XVI a legislação do Reino especificava os limites da atuação do físico-mor e do cirurgião-mor, determinando que aos cirurgiões fosse vedado atuar como médicos sem a licença do físico­mor. Por outro lado, proibia aos físicos o exercício da cirurgia, sem a devida licença do cirurgião-mor, equiparando, portanto, as duas autoridades, a despeito da prevalência em todos os campos, do físico sobre o cirurgião. Como explicou Flavio Edler (A saúde pública no período colonial e joanino. http://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5120:saude-e-higiene-publica-na-ordem-colonial-e-joanina&catid=64&Itemid=372), a exigência para que o físico-mor do reino examinasse todos os que praticavam medicina existia desde 1430, sendo de 1448 o Regimento do Cirurgião-mor que estabeleceu as atribuições para o exercício da função. O físico-mor e o cirurgião-mor tiveram suas atribuições separadas em 1521, destacando-se o papel do físico-mor como juiz da Fisicatura, um tribunal, ainda de acordo com Edler. Quase um século depois, o regimento do Cirurgião-Mor do reino, de 12 de dezembro de 1631, dispunha que este examinaria todos os que fossem exercer o oficio de cirurgia, exigindo-se o domínio do latim e a prática no hospital da região em que viviam. O cirurgião-mor contava com dois barbeiros para examinar os sangradores treinados pelos mestres-cirurgiões. Data de 16 de maio de 1774 o regimento de autoria do físico-mor do reino e que pautava a conduta dos físicos na América portuguesa. Em 1808, o Alvará de 23 de novembro mandou executar os Regimentos do Físico Mor e Cirurgião Mor, regular a sua jurisdição e de seus Delegados, aludindo ao Decreto de 7 de fevereiro do mesmo ano que havia criado o Físico Mor e o Cirurgião Mor do Reino, Estados e Domínios Ultramarinos. A regulamentação é justificada face aos conflitos entre o Físico Mor e a Relação da Bahia. A legislação anterior, desde 1515, bem como o regimento de 1744 é mantida em vigor a exceção do que tivesse sido abolido. Já o Alvará de 22 de janeiro de 1810 que dava “regimento aos delegados do Físico-Mor” estabelecendo providências sobre a saúde pública, considerou que o Regimento de 1744 “por diminuto e porque tendo sido feito em tempos remotos não pode quadrar ao presente". O primeiro físico-mor no Brasil foi José Corrêa Picanço, professor de Anatomia e Cirurgia da Universidade de Coimbra, primeiro cirurgião da Casa Real e cirurgião-mor do Reino. Após a Independência a Lei de 30 de agosto de 1828 extingue os lugares de Provedor-mor, Físico-mor e cirurgião-mor do Império passando as suas competências às Câmaras Municipais e Justiças ordinárias.

[2] REINO UNIDO DE PORTUGAL E ALGARVES: em 16 de dezembro de 1815, o Brasil foi elevado à categoria de reino e o príncipe regente d. João tornou-se soberano do Reino Unido de Portugal, do Algarve e do Brasil. Trata-se da consagração de um processo iniciado com a mudança da Corte para o Rio de Janeiro e reforçado pelas transformações que essa transmigração gerou. Instalada em sua colônia americana, em consequência das guerras napoleônicas, a família real portuguesa viu-se em uma situação delicada depois do Congresso de Viena, cujas diretrizes expressavam o sentimento restaurador das velhas monarquias europeias. Reafirmando a legitimidade dos antigos soberanos e dos velhos reinos europeus, o Congresso reconhecia apenas Portugal e sua capital, Lisboa, como par, o que deixava o monarca português vivendo nos trópicos em meio a um dilema. A saída veio com a elevação do Brasil à categoria de Reino Unido, que igualou o estatuto do Brasil ao do Reino de Portugal. Aparentemente, a solução apresentada pelo delegado francês no Congresso, o ministro das Relações Exteriores da França, Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord, de elevar o Brasil a Reino Unido de Portugal e Algarve, pretendia reforçar os laços entre Portugal e Brasil que, embora não mais uma simples colônia, continuaria atrelado à Coroa portuguesa. E, especificamente em um momento de restauração das antigas tradições das monarquias europeias, defendia e legitimava a presença europeia e monárquica no continente sul-americano, cada vez mais independente e republicano. Para os que representavam os “brasileiros”, a elevação significou o fim do pacto colonial e de um status definitivamente inferior em relação à metrópole. Na prática, o tempo mostrou que esta medida seria um passo fundamental para a Independência, pois, no momento em que as elites portuguesas exigiram o retorno da família real e o rebaixamento do Brasil novamente à colônia, tal retrocesso mostrou-se impossível, culminando em uma ruptura – processo cuja origem, extensão e efeito seriam objeto de uma extensa discussão historiográfica sobre o lugar e o papel do país no cenário americano e internacional.

[3] MINAS GERAIS, CAPITANIA DE: Nascida a partir do desmembramento da capitania de São Paulo e Minas do Ouro, ocorrido em 1720, Minas Gerais foi o foco da exploração de ouro e pedras preciosas – inclusive diamantes – ao longo do século XVIII. O início da exploração do ouro em fins do século XVII faria com que a metrópole implementasse reformas administrativas e legislativas com o intuito de estabelecer um maior controle sobre o território e sobre a exploração das suas riquezas, processo acentuado com a descoberta de diamantes na década de 1720. Em 1709, a crise causada pelo confronto entre os primeiros exploradores da região das minas e os “aventureiros” que chegaram posteriormente resultou no conflito conhecido por Guerra dos Emboabas e foi uma das causas para a criação da capitania de São Paulo e Minas do Ouro. Em 1720, a revolta de Felipe dos Santos (ou de Vila Rica), que questionava a forma de tributação sobre o ouro e a intensificação do controle da coroa sobre as atividades locais sob a forma da criação das casas de fundição oficiais contribuiu para novo desmembramento, e a criação da capitania de Minas Gerais. O levante de 1720 não seria o último a opor a coroa aos colonos em torno da exploração e taxação das riquezas da região; em 1789 – no período de decadência da exploração colonial do ouro, diametralmente oposto ao do movimento de Felipe dos Santos – ocorreu a Conjuração Mineira, já sob a influência das ideias liberais e da revolução americana. Tornada polo dinamizador da economia colonial, a capitania das Minas (agora, Gerais, e não apenas do ouro) desenvolve, na sua rede de povoados, vilas e cidades uma sociedade mais urbana e dinâmica do que a que caracterizava a economia agrícola, cuja exclusividade marcou os primeiros dois séculos da colonização. À medida que ouro e diamantes jorravam, as cidades se desenvolviam e sofisticavam, a sociedade se diversificava, assim como as atividades econômicas, a despeito da repressão da metrópole que não via com bons olhos a produção local de bens necessários ao dia a dia dos colonos e à própria atividade mineradora. Neste painel variado, a massa de escravos e o pequeno grupo de senhores – molas mestras da produção de riquezas –  dividiam espaço com artistas, intelectuais, comerciantes de víveres, e um sem número de “sem destinos”, indivíduos que vagavam à margem da sociedade e da riqueza da qual se apossavam poucos privilegiados. De forma não muito diferente do que ocorre nos dias de hoje, em regiões em que uma fonte potencial de riqueza é subitamente descoberta e explorada, os lucros e benefícios da nova atividade tendem a se concentrar de forma intensa, deixando à margem uma quase horda de excluídos, muitos deles vivendo a vã esperança de partilhar as sobras possíveis. Não é à toa que a paisagem arquitetônica desenvolvida ao longo do século XVIII impressiona até os dias de hoje, e lançou para a história nomes como Manuel Francisco Lisboa, que planejou a igreja do Carmo, em Ouro Preto (antiga Vila Rica). Artistas locais, como Aleijadinho e Mestre Ataíde, desenvolveram uma versão nativa de barroco/ rococó e beneficiavam-se do grande afluxo de riquezas. Patrocinadas pelas irmandades e ordens terceiras – organizações religiosas de indivíduos sem vínculo com a Igreja, mas que se dedicam a um culto específico –, que tiveram um papel crucial na vida social da região das minas, as opulentas igrejas se multiplicaram, exibindo o esplendor de uma era que chegaria ao fim com o século XVIII. Após a década de 1760 percebe-se que a comarca do Rio das Mortes passou a apresentar um crescimento demográfico substancial, em oposição à comarca de Vila Rica, que começava a perder população. Isso se deveu ao declínio da produção de ouro – estreitamente relacionada à Vila Rica – e a diversificação e florescimento da agricultura, da pecuária e até mesmo, em certa medida, da nascente produção manufatureira em Rio das Mortes. Esta transformação marca o início da queda da produção de ouro na região e indica a diversificação de atividades para além da mineração.

[4] ARTE DE PARTEJAR: em Portugal, desde o século XVI, o ofício das parteiras era sujeito à regulamentação junto ao físico-mor, conforme o Regimento das parteiras da Câmara Municipal de Lisboa, de 1572. A inclusão da atividade no programa das instituições médicas europeias se deu a partir do século XVII e posteriormente esse controle chegaria à América portuguesa. Muitas mulheres atuaram como parteiras antes de se submeterem ao exame da fisicatura-mor para obtenção de licenças, e a maioria delas nunca o fez. Com frequência, elas foram identificadas como curiosas e cada vez mais desvalorizadas pelos médicos que as responsabilizavam por não os chamar em partos difíceis e por receitarem elixires às parturientes, entre outras atitudes que teriam conduzido as gestantes à morte (PIMENTA, T. S. “Curandeiro, parteira e sangrador: ofícios de cura no início do oitocentos na corte imperial”. Khronos, nº6, pp. 59 - 64. 2018). Por outro lado, o conhecimento adquirido e acumulado na prática e na atuação conjunta com mulheres mais experientes era reconhecido no auto de exame prestado à Fisicatura, no qual a expressão “arte de partejar” significava tanto o estudo e exercício prévios quanto a atividade doravante aprovada pelo cirurgião-mor do Reino.

[5] CIRURGIÃO: a cirurgia vem de uma longa tradição científica que nos séculos XVII e XVIII podia ser localizada no tratado árabe “O método da medicina”, de Albucasis, (936-1013) traduzido em latim e largamente disseminado na Idade Média. Na França a cirurgia teria sido o campo mais radicalmente transformado no século das Luzes, como escreve Alain Touwaide (Chirurgie. In: Delon, M. Dictionnaire européen des Lumières, 1997). É nesse período que os cirurgiões conquistam o respeito dos médicos e que a cirurgia se torna, nas universidades, um instrumento de investigação do corpo e da própria doença. Os cirurgiões distinguiam-se dos médicos, havendo diferenças entre eles, como em Portugal onde eram divididos em três tipos, os diplomados, aprovados e barbeiros, segundo a formação e local de aprendizagem, como hospitais militares, misericórdias ou outros hospitais, como explica Lycurgo Santos Filho (Cirurgiões. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza. Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil, 1994). Predominaram no Brasil e em Portugal os cirurgiões-barbeiros, acolhidos como aprendizes pelos mestres cirurgiões. Ainda de acordo com Santos Filho, nos séculos XVI e XVII os cirurgiões eram quase todos cristãos novos, quase sempre perseguidos pelo Santo Ofício por práticas judaizantes, mas que dada sua especialidade chegaram a postos de destaque na sociedade colonial, como assinala Ronaldo Vainfas (Cf. Cirurgiões. In: Dicionário do Brasil colonial, 1500-1808, 2001). Nos séculos seguintes os cirurgiões na América portuguesa foram muitas vezes negros, escravizados ou não, além dos classificados como brancos ou mulatos. Cabia-lhes sangrar, aplicar bichas ou ventosas, escalda-pés, banhos, arrancar dentes, e, cortar cabelo e fazer a barba. Sem que tivessem autorização para tal, procediam a amputações e lancetavam abscessos diz Lycurgo S. Filho. A cirurgia seguiria dividida entre aqueles que adquiriam o conhecimento com mestres ou pela prática e outros que a exerceriam a partir das universidades. A partir de 1808 os hospitais militares de Salvador e do Rio de Janeiro passam a contar com cursos de cirurgia; Entre 1813 e 1816 são fundadas, nas mesmas cidades, academias médico-cirúrgicas que concedem diplomas de cirurgião e cirurgião formado. Em 1832 são criadas faculdades de medicina no Império. (PIMENTA, T. S. “Curandeiro, parteira e sangrador: ofícios de cura no início do oitocentos na corte imperial”. Khronos, nº6, pp. 59 - 64. 2018.)

[6] NEMINE DISCREPANTE: expressão latina para designar algo que foi aprovado por unanimidade, “sem discrepância”.

Romana

Requerimento de carta régia autorizando Romana de Oliveira, crioula, forra, moradora de São Gonçalo do Concavo, a exercer o ofício de parteira e curandeira. Esse requerimento foi feito após a absolvição de Romana da denúncia da prática clandestina de parteira e curandeira.

 

Conjunto documental: Fisicatura Mor
Notação: Caixa 474, Pacote 03
Datas-limite: 1810 - 1828
Título do fundo: Fisicatura Mor
Código do fundo: 2O
Argumento de pesquisa: Parteiras
Data do documento: julho de 1815
Local: Rio de Janeiro

 

Leia esse documento na íntegra

 

Ilustríssimo Senhor Físico Mor[1] do Reino

Requerimento a [quem pertencer]

Rio de Janeiro 8 de julho de 1815

Diz Romana de Oliveira Crioula forra[2], moradora na freguesia de S. Gonçalo do Recôncavo desta Corte que ela munida da Caridade e rogativas de muitas pessoas tem assistido a vários partos prestando [à] humanidade aqueles socorros que permitem a sua inteligência e limitados conhecimentos adquiridos juntamente com a prática e experiência, como mostrados documentos juntos, e por que para poder continuar nos mesmos ofícios a privam os escrúpulos de sua consciência e justos receios de ser punida, sem a competente licença portanto.

Para V. S. que em atenção ao que representa o benefício da humanidade seja servido conceder lhe licença enquanto não houver naquela freguesia parteira aprovada.

[Escrivão]

Ilmo Senhor Físico Mor

O Subdelegado entregou a condenação imposta [----]

Rio de Janeiro [---de março] de 1813

 

Diz Romana de Oliveira moradora na Freguesia de São Gonçalo da outra banda de além, que na devassa, que se abriu na dita freguesia pelo juiz subdelegado de V. S. Antonio Correia Dias foi pronunciada e injustamente condenada em vinte e quatro mil reis por ter sido denunciada como parteira[3] e curandeira como consta dos documentos N.[1º]: mas por que se tem assistido a alguns partos e a pessoas de sua família, e outras de sua amizade, e nunca por estipêndio e paga, e por serem estes uns atos, que de sua natureza requerem assistência de mulher, e não de homem e para que o mesmo cirurgião[4] só deve ser chamado, depois de se presumir perigo; também se tem aplicado alguns remédios são aqueles mais triviais e já sabidos de todos, e para aquelas doenças mais casuais e conhecidas e isto só por motivo de caridade, e em benefício do público, e principalmente da pobreza como tudo se mostra dos documentos 2º 3º e 4º; e porque finalmente acontece ser a suplicante e muitas outras pessoas meramente denunciadas pelo Cirurgião da freguesia Luiz Jozé de Oliveira, guiado pelo seu próprio interesse, e uma temerária presunção, querendo que o chamem para todas as moléstias e ainda as mais insignificantes, querendo atribuir esta falta às parteiras e curandeiras, e não ao pouco ou nenhum conceito, que tem merecido no exercício de sua arte; acrescendo a tudo isso fazer o Juiz Subdelegado a sua aposentadoria na Casa do mesmo cirurgião seu amigo companheiro, o que faz ser nulo todo o processo por um princípio e prática de direito, pois que também deveria sindicar do mesmo o que se continua a mostrar no documento N. 4º. Nesses termos a suplicante está nas circunstâncias de ser absolvida por V. S. a vista de prova tão atendível que oferece, e quando V. Sa a julgue justamente condenada então por equidade.

P.a V.Sª. seja servido conceder-lhe licença para partejar, fazer uso dos mesmos remédios apontados nos seus documentos, sem ser mais incomodada para o futuro visto a necessidade de pessoas para os ditos fim na falta de parteiras aprovadas.

                                                                                  [Escrivão]

 Nos abaixo assinados atestamos e sendo necessário justificamos em juízo que Romana de Oliveira Criola forra, não vive do ofício de parteira nem de curandeira, mais sim das suas [roças] e se tem assistido a alguns partos, sempre tem sido, e sem interesse, as pessoas de sua família, e de sua amizade e por serem estes uns fatos, que de sua natureza, requerem assistência, de Mulheres, e não de homens, nem ainda mesmo de Cirurgião sem manifesto e evidente perigo, e na concorrência de muitas mulheres é escolhida aquela que tem mais experiência na falta de parteira examinada como acontece nesta freguesia de São Gonçalo, e enquanto a outros remédios pratica aqueles que de comum e ordinário todos fazem que vem ser, suadores, cordiais[5], ou chás de ervas, ou raízes, como de fedegozo, erva [colegio], crapiã, casquinha de limão, [macela] galega, para aquelas enfermidades, que qualquer conhece, como, constipações, defluxo, indigestões, e haver quem queira privar, a humanidade deste benefício, achamos ser o mesmo que quererem conduzir inumeráveis criaturas para as sepulturas, e privarem a Sua Alteza Real de muitos vassalos, principalmente nas freguesias das [Roças] nas quais há falta de cirurgiões e médicos e boticas, e dinheiro a que mesma pobreza por suas indigências não podem recorrerem, e por falta de todos os meios quantos são necessários para procederem Professores e Boticários[6]

João Bernardo de Vasconcellos Coimbra. Tenente Coronel

Francisco Pereira Guimarães. Tenente

Joze Barreto Pereira [Ponte]. Ajudante

Manoel Roiz dos Santos e Faria

Joze Antunes da Costa

Joze do Rego

 

[1] FÍSICO-MOR: a denominação de físico é devida à ideia da medicina ser tida como física, devido à natureza de seus estudos. Equivale de modo geral ao médico. No século XVIII, o número de médicos habilitados na América portuguesa era bastante reduzido, sendo por isso mesmo a medicina exercida por outros profissionais, entre eles os cirurgiões e os boticários. Porém, eram os médicos que gozavam de maior prestígio em razão da elevada formação que possuíam, dominando os conhecimentos necessários para o restabelecimento da saúde. A única instituição do mundo luso voltado para os estudos superiores da medicina nesse período era a Universidade de Coimbra. A proibição do ensino universitário na colônia fez necessária a importação de um modelo curativo europeu. No entanto, essa prática médica precisou adaptar-se ao clima, ao meio social, aos “novos remédios” provenientes das florestas tropicais e a ausência dos antigos. No mundo colonial, o saber médico coexistia com agentes diversos “não oficiais” na arte de curar, como os curandeiros. O pouco conhecimento científico em relação a várias doenças e a carência de médicos incentivaria as práticas médicas baseadas no misticismo e religiosidade dos curandeiros, quase sempre descendente de indígenas ou de africanos. Nesse contexto, merece destaque a figura do físico-mor, autoridade responsável pela prática e fiscalização da medicina. Através da figura do físico-mor e do cirurgião mor a ação real, no tocante as práticas médicas, se fez presente na América portuguesa. Em 1521, uma carta régia regulamentaria suas atribuições, prevendo a nomeação de delegados e comissários, responsáveis por inspeções periódicas para examinar a regularidade das boticas existentes em seus distritos e seus responsáveis, inclusive no ultramar. A eles também caberia a averiguação e aplicação de multas no caso de infrações ou irregularidades. Tais atribuições buscavam um maior controle das práticas de cura e dos seus diferentes agentes na colônia – físicos, cirurgiões, barbeiros, boticários, sangradores e parteiras. Cabia também ao físico-mor conceder ou não carta de habilitação para àqueles interessados no exercício da medicina. Apesar de toda regulamentação sanitária, era precário o papel desempenhado pela fisicatura-mor e seu corpo de funcionários, sobretudo devido ao reduzido número de profissionais que atuavam na colônia, ao vasto território e longas distâncias que deveriam ser percorridas. Em 1782, o cargo de físico-mor foi extinto com a criação da Junta do Protomedicato, sendo reestabelecido em 1809. Somente no século XIX, a medicina começou a institucionalizar-se no Brasil, com a criação das primeiras academias médico-cirúrgicas, na Bahia, em 1808 e no Rio de Janeiro em 1809, decorrentes da transferência da família real portuguesa.

[2] CRIOULA FORRA: as crioulas, assim chamadas em geral por constituírem a segunda geração de africanos escravizados trazidos à América portuguesa, contribuíram para que, ao final do século XVIII, a maior parte dos alforriados fosse de origem urbana e feminina. As alforrias podiam ser obtidas de muitas formas, desde a compra da liberdade a doações gratuitas, deixadas em testamento, recompensas e outras modalidades. Nesse cenário e em todas as regiões, “as mulheres africanas e crioulas se destacaram quantitativamente entre os forros”, levando a uma transformação desse perfil nas cidades, “cada vez mais mestiço e feminino, surgindo espaços dominados pelos forros e seus descendentes nascidos livres” (PAIVA, Eduardo França. Alforrias. In: SCHWARCZ, L. M., GOMES, Flávio dos Santos. Dicionário da Escravidão e Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 94).

[3] PARTEIRAS: as mulheres foram as principais responsáveis pelos procedimentos e apoio às parturientes e aos nascituros até que a atividade fosse incluída no programa das instituições médicas européias no século XVII primeiramente e depois na América portuguesa. No entanto, sabe-se que desde o século XVI, em Portugal, já se sujeitava o ofício das parteiras já estava sujeito à regulamentação junto ao físico-mor, como parte do registro de artes mecânicas e que obrigava ao exame diante do físico da cidade, como se depreende do Regimento das parteiras da Câmara Municipal de Lisboa de 1572. A intervenção pública sobre esse evento, de natureza intrinsecamente privada até então, tem ao fundo o fato conhecido, mas mantido em silêncio, do infanticídio, recorrente entre as famílias, como assinala Marinha N. F. Carneiro. (Ajudar a nascer. Parteiras, saberes obstétricos e modelos de formação (séculos XV-XX). Universidade do Porto, 2003. Dissertação de doutoramento), um costume proibido, mas tolerado até pelo menos o século XVII, quando, escreve o historiador francês Philippe Ariés, “a parteira, esta feiticeira-branca recuperada pelos Poderes terá como missão proteger a criança”. No século XVIII aprofunda-se o controle sobre o trabalho das parteiras e a prevalência da autoridade de médicos e do físico, que se acresce ao já consolidado poder da Igreja. O século das Luzes privilegia a erudição, em oposição ao saber das parteiras, e a expressão “arte obstetrícia” seria incluída nos Estatutos da Universidade de Coimbra de 1772. Ainda no século XVIII, a criação de instituições como o Asilo da maternidade, em Paris, no ano de 1795, no lugar do Serviço das Parturientes, tido como um verdadeiro “leito de morte”, parece anunciar uma transformação científica nesse campo, caracterizando uma medicalização do parto. Cabia à parteira-chefe ministrar aulas teóricas e “práticas”, estas últimas realizadas em um anfiteatro com um manequim, segundo Scarlet Beauvalet-Boutouyrie (“As parteiras-chefes da maternidade Port-Royal de Paris no século XIX: obstetras antes do tempo?” Estudos Feministas 403, 2/2002). Na América portuguesa, os partos foram praticados com pouquíssimo controle, mesmo a partir da obrigação de registro junto a Fisicatura-Mor em 1808. Com a presença da corte, os processos envolvendo candidatas no Reino também passavam pelas autoridades do Rio de Janeiro. Aos exames estavam presentes cirurgiões e um escrivão, seguindo-se, em caso de aprovação, o requerimento de carta régia autorizando o exercício daquele ofício. O processo de avaliação era pago, como no exemplo de registra uma moradora da comarca de Aveiro, Portugal, que despendeu 440 reis. No Brasil, as requerentes foram frequentemente descritas como pretas, pardas e crioulas forras, indicando ser uma ocupação comum a essa parcela da população. As parteiras eram conhecidas ainda como aparadeiras, comadres e outras denominações, o que indica uma familiaridade entre as mulheres, em um contato que ocorria quase sempre no interior das casas, sendo raros os casos em que, devido às urgências e complicações no parto, se recorria às santas casas de misericórdia.

[4]CIRURGIÃO: a cirurgia vem de uma longa tradição científica que nos séculos XVII e XVIII podia ser localizada no tratado árabe “O método da medicina”, de Albucasis, (936-1013) traduzido em latim e largamente disseminado na Idade Média. Na França a cirurgia teria sido o campo mais radicalmente transformado no século das Luzes, como escreve Alain Touwaide (Chirurgie. In: Delon, M. Dictionnaire européen des Lumières, 1997). É nesse período que os cirurgiões conquistam o respeito dos médicos e que a cirurgia se torna, nas universidades, um instrumento de investigação do corpo e da própria doença. Os cirurgiões distinguiam-se dos médicos, havendo diferenças entre eles, como em Portugal onde eram divididos em três tipos, os diplomados, aprovados e barbeiros, segundo a formação e local de aprendizagem, como hospitais militares, misericórdias ou outros hospitais, como explica Lycurgo Santos Filho (Cirurgiões. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza. Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil, 1994). Predominaram no Brasil e em Portugal os cirurgiões-barbeiros, acolhidos como aprendizes pelos mestres cirurgiões. Ainda de acordo com Santos Filho, nos séculos XVI e XVII os cirurgiões eram quase todos cristãos novos, quase sempre perseguidos pelo Santo Ofício por práticas judaizantes, mas que dada sua especialidade chegaram a postos de destaque na sociedade colonial, como assinala Ronaldo Vainfas (Cf. Cirurgiões. In: Dicionário do Brasil colonial, 1500-1808, 2001). Nos séculos seguintes os cirurgiões na América portuguesa foram muitas vezes negros, escravizados ou não, além dos classificados como brancos ou mulatos. Cabia-lhes sangrar, aplicar bichas ou ventosas, escalda-pés, banhos, arrancar dentes, e, cortar cabelo e fazer a barba. Sem que tivessem autorização para tal, procediam a amputações e lancetavam abscessos diz Lycurgo S. Filho. A cirurgia seguiria dividida entre aqueles que adquiriam o conhecimento com mestres ou pela prática e outros que a exerceriam a partir das universidades. A partir de 1808 os hospitais militares de Salvador e do Rio de Janeiro passam a contar com cursos de cirurgia; Entre 1813 e 1816 são fundadas, nas mesmas cidades, academias médico-cirúrgicas que concedem diplomas de cirurgião e cirurgião formado. Em 1832 são criadas faculdades de medicina no Império. (PIMENTA, T. S. “Curandeiro, parteira e sangrador: ofícios de cura no início do oitocentos na corte imperial”. Khronos, nº6, pp. 59 - 64. 2018).

[5] CORDIAIS: de uso medicinal, os cordiais são citados como pedras ou como bebidas, tais como vinhos ou águas destiladas. Conhecidos desde a antiguidade entre os gregos e, posteriormente, no mundo árabe, alcançaram grande popularidade nos séculos XVI e XVII. Os cordiais foram veiculados, sobretudo pelos religiosos jesuítas que obtiveram grandes lucros com a sua comercialização. Foi justamente seu alto valor econômico que estimulou a falsificação ou imitação por boticários da pedra de Goa, exportada para o Reino com prejuízo para os jesuítas que tinham em sua farmacopéia a "autêntica fórmula secreta", utilizada em conjunto com símbolos e rituais religiosos, como indica Patrícia A. Maia (Práticas de cura no encontro de culturas: jesuítas e a circulação de receitas médicas. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, julho 2011). Suas propriedades eram variadas, sendo indicados para as doenças cardíacas e para combater febres, pestes e doenças consideradas venenosas; essas últimas tratadas por medicamentos chamados besoárticos, cujo nome deriva de “pedra bazar”. Para Ana Maria Amaro (A famosa Pedra Cordial de Goa ou de Gaspar António. Revista de Cultura, Instituto Cultural de Macau. n. 7 e 8, ano II, 2º volume. Disponível em www.icm.gov.mo/rc/viewer/30007/1516), as chamadas "pedras bazar" (boazar ou vazar) foram as primeiras pedras cordiais. Introduzidas na Europa pelos árabes, "consistia numa concreção calculosa formada no estômago das cabras bezoar (Capra algagrus Gm.), em capas concêntricas, em torno dum resíduo de palha ou de certa erva medicinal que lhes servia de pasto. Usava-se, reduzida a pó, contra todas as doenças venenosas e contagiosas, como sudorífero, cardíaco e litrontípico, e sendo tão amigo do coração que todos os remédios cardíacos se passaram a chamar, por analogia, bezoárticos".

[6] BOTICÁRIO: restabelecer a saúde de um doente administrando e criando medicamentos foi, durante muito tempo, função de uma mesma pessoa. Foi no século VIII que a obtenção de remédios para a cura dos doentes deixou de ser uma atividade dos médicos, atribuindo-se aos boticários a manipulação de substâncias nas boticas, além de aviar receitas médicas. Para exercerem suas funções, os boticários necessitavam de licenças expedidas pela fisicatura-mor (1808-1828), órgão que regulamentava todas as atividades médicas. Diogo de Castro foi o primeiro boticário a chegar ao Brasil vindo de Portugal, em 1549, na comitiva do governador-geral Tomé de Souza, composta entre outras pessoas, por seis jesuítas, liderados pelo padre Manuel da Nóbrega, e de um físico e cirurgião da expedição, Jorge Valadares. De início, os medicamentos preparados vinham da metrópole, porém chegavam irregularmente e, com frequência, estragados devido à demora na viagem. A solução para os problemas de saúde na colônia residia, então, na manipulação de raízes, folhas e sementes da flora brasileira, respaldada no conhecimento dos índios para aplicação terapêutica das plantas medicinais. Os jesuítas, no seu trabalho de catequese, se dedicaram ao aprendizado manipulação de matérias primas nativas para obtenção de remédios que curassem as doenças próprias da região dos trópicos. Tal fato também contribuiu para o empenho dos jesuítas em aprender a transformar em medicamento o que as plantas nativas ofereciam, mesclando os conhecimentos médicos europeus com aqueles obtidos com os indígenas. De certa forma, os jesuítas foram os primeiros boticários e nos seus colégios criaram-se as primeiras boticas, onde o povo encontrava os medicamentos para alívio dos seus males. Foram instaladas sob a direção dos padres boticas na Bahia, Olinda, Recife, Maranhão, Rio de Janeiro e São Paulo. A mais importante foi a da Bahia, por se tornar um centro distribuidor para as demais.

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