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Embuçadas em baetas

Escrito por Januária Oliveira | Publicado: Quinta, 07 de Mai de 2020, 18h56 | Última atualização em Sexta, 08 de Mai de 2020, 19h00

Registro de correspondência do conde de Aguiar, governador e capitão-general da Bahia, ao governador e capitão-general da capitania de São Paulo, Antônio José da França e Horta, notificando a proibição das mulheres na cidade andarem “embuçadas em baetas”, fazendo referência ao costume ibérico, de herança árabe, do uso de manta cobrindo a cabeça e parte do rosto, cabendo punição para aquelas que não obedecessem.

 

Conjunto documental: São Paulo. Ministério do Reino e Império. Registro de correspondência

Notação: IJJ9 5

Datas-limite: 1808-1830

Título do fundo: Série Interior

Código do fundo: AA

Argumento de pesquisa: população, feminina

Data do documento: 30 de agosto de 1810

Folha(s): 16v

Local: Palácio do Rio de Janeiro

Veja o documento na íntegra

 

Para o mesmo (Antônio José da França e Horta[1])

N°58. O Príncipe Regente[2] nosso senhor fica na inteligência de haver Vossa Senhoria proibido solenemente o andarem as mulheres nessa cidade embuçadas em baetas[3], consignando-lhes as penas, que se acham impostas pela lei[4]. E ordena o mesmo senhor, que o produto das condições impostas aos transgressores por semelhante delito, Vossa Senhoria as aplique no Hospital dos Lázaros[5] dessa capitania[6]. Deus guarde a Vossa Senhoria.

Palácio do Rio de Janeiro, em 30 de agosto de 1810.

Conde de Aguiar[7]

 

[1] HORTA, ANTÔNIO JOSÉ DA FRANÇA E (1753-1823): Nascido na cidade de Faro, em Portugal, foi um militar e administrador colonial, tenente-general, fidalgo da Casa Real e comendador da Ordem de Cristo. Governador e capitão general da capitania de São Paulo, de dezembro de 1802 a outubro de 1808, se propôs a acelerar o desenvolvimento econômico da capitania através da melhoria dos “caminhos”, ou seja, as vias de comunicação das quais dependiam o sucesso da atividade comercial, e da concentração das exportações paulistas pelo porto de Santos, buscando a integração da província à política monopolista da metrópole. Outra importante medida de França e Horta foi a criação do primeiro curso oficial de cirurgia no Brasil, no Hospital Militar da cidade de São Paulo, ministrado pelo físico-mor Mariano José do Amaral, São Paulo sofria com a falta de médicos e boticas no período. Promoveu também, aulas de desenho e matemática para formação de oficiais engenheiros na capitania. Foi conselheiro da Fazenda a partir de 17 de janeiro de 1812. Integrou o Corpo Militar como Marechal de Campo graduado e retornou a Portugal, em 1821, com d. João VI. Em sua homenagem, uma cidade do estado de São Paulo foi batizada de Franca.

 

[2] JOÃO VI, D. (1767-1826): Segundo filho de d. Maria I e d. Pedro III, tornou-se herdeiro da Coroa com a morte do seu irmão primogênito, d. José em 1788. Em 1785, casou com a infanta dona Carlota Joaquina, filha do herdeiro do trono espanhol, Carlos IV, que na época tinha apenas dez anos de idade. Tiveram nove filhos, entre eles d. Pedro, futuro imperador do Brasil. Assumiu a regência do Reino em 1792, no impedimento da mãe que foi considerada incapaz. Um dos últimos representantes do absolutismo, d. João VI viveu num período tumultuado. Foi, sob o governo do então príncipe regente, que Portugal enfrentou sérios problemas com a França de Napoleão Bonaparte, sendo invadido pelos exércitos franceses em 1807. Como decorrência da invasão francesa, a família real e a corte lisboeta partiram para o Brasil em novembro daquele ano, aportando em Salvador em janeiro de 1808. Dentre as medidas tomadas por d. João em relação ao Brasil estão: a abertura dos portos às nações amigas; liberação para criação de manufaturas; criação do Banco do Brasil; fundação da Real Biblioteca; criação de escolas e academias, e uma série de outros estabelecimentos dedicados ao ensino e à pesquisa, representando um importante fomento para o cenário cultural e social brasileiro. Em 1816, com a morte de d. Maria I, tornou-se d. João VI, rei de Portugal, Brasil e Algarves. Em 1821, retornou com a Corte para Portugal, deixando seu filho d. Pedro como regente. Deu-se sob o seu governo, o reconhecimento da independência do Brasil no ano de 1825, tornando-se imperador titular do Brasil, embora tenha sido o seu filho d. Pedro o imperador do Brasil de facto.

 

[3] BAETA: Tecido felpudo de lã de qualidade inferior, usado na fabricação de roupas masculinas e femininas. Era de uso recorrente as mulheres do período colonial no Brasil, principalmente nos séculos XVI e XVII, cobrirem a cabeça e parte do rosto com a mantilha, rebuço ou embuço, feitos com baeta. Este costume perdurou até o século XIX em São Paulo, sendo a baeta o tecido mais utilizado nessa capitania pela classe mais abastada, posteriormente fazendo parte do vestuário das camadas mais pobres, incluindo os escravos. O uso das mantilhas de baeta foi proibido por diversas leis desde meados do século XVIII, pois se transformara em caso de polícia, já que a vestimenta era usada pelos assassinos e ladrões para encobrirem seus crimes. Apesar disso, as mulheres continuaram trajando-as, principalmente para encobrir as marcas da varíola e a pobreza, sendo objeto de proibição de outros alvarás e decretos. Caiu em desuso a partir da ordem régia de d. João, de 30 de agosto de 1810, pela qual determinou a interdição do uso do traje.

 

[4] CARTA RÉGIA DE 11 DE AGOSTO DE 1649: A primeira lei proibitiva em relação ao costume de se cobrir o rosto com baetas, no Brasil colonial, é a Carta Régia de 11 agosto de 1649. Segundo esta, as mulheres que fossem encontradas embuçadas em baetas, nas ruas ou até mesmo nas igrejas poderiam ser punidas, devendo retirar o traje quando abordadas. A peculiaridade dessa carta é que a mesma distingue as punições conforme a classe a que a mulher pertencesse. No caso de uma mulher nobre ser pega com o rosto coberto, essa teria como pena o pagamento de 50 cruzados, às demais caberiam o pagamento do valor de 20 cruzados, além de oito dias de prisão. Já as escravas que fossem pegas cometendo tal infração, teriam como pena o castigo corporal na prisão. No caso de mulheres reincidentes, a pena seria dobrada. Dois meses depois, o Alvará de 6 de outubro de 1649, determina que as mulheres poderiam ser “desembuçadas” por qualquer oficial independente do lugar onde estiverem. Em agosto de 1810, novamente, a lei de 30 de agosto proíbe as mulheres de deslocarem-se embuçadas em baetas ou em qualquer envoltório cobrisse a cabeça e a parte do rosto, isto e, lenço, capuz ou chapéu.

 

[5]  HOSPITAL DOS LÁZAROS: Fundado em 1º de fevereiro de 1765 no Rio de Janeiro, funcionava no antigo casarão da fazenda de São Cristóvão, que pertencia a Companhia de Jesus. Com a expulsão definitiva dos jesuítas do Brasil, o prédio passou para a administração da Irmandade da Candelária que já atendia aos hansenianos da região. Após reformas, instalou-se no imóvel o Hospital dos Lázaros ou Hospital Frei Antônio, destinado a prestar assistência aos doentes de lepra. Sua localização, em um ponto central do Rio de Janeiro, levantou sérias questões quanto aos diversos cuidados necessários para garantir o isolamento dos enfermos, a fim de evitar a disseminação da doença pela população. Já em São Paulo, o primeiro lazareto foi fundado em 1802 para abrigar os hansenianos com o objetivo de isolá-los e os afastar do convívio na cidade, pois a enfermidade era contagiosa e sem cura. Até a construção do lazareto, os portadores da doença, em razão do estigma a ela associado, perambulavam pelas estradas sem destino ou viviam em acampamentos distantes da cidade. A área escolhida para construção do hospital localizava-se em direção a uma das saídas da cidade, na região leste, denominada de Olaria, próximo ao Convento da Luz. O terreno foi comprado pelo governador Antonio José da Franca e Horta e entregue aos cuidados da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia. A obra começou logo no ano seguinte, a partir do apoio governamental e de doações de particulares. Esse hospital funcionou durante todo o século XIX de forma extremamente precária, atendendo a um número muito reduzido de pacientes, isto devido principalmente à ausência de fundos regulares que permitissem custear os gastos necessários com a manutenção dos doentes. A administração cabia apenas à Santa Casa de Misericórdia, não recebendo nenhum auxílio da Câmara Municipal, nem da província de São Paulo. Em 1904, o Hospital dos Lázaros foi fechado e os doentes transportados para um novo estabelecimento construído em um local mais distante da cidade: Guapira.

 

[6] São Paulo, CAPITANIA DE: Na época da descoberta do ouro no interior da região sudeste do Brasil, a administração das terras desta região encontrava-se pulverizada entre as capitanias de São Vicente, Rio de Janeiro, e territórios em seu entorno. Em 1693, criou-se a capitania de Rio de Janeiro, São Paulo e Minas do Ouro. A medida não foi eficaz para organizar as atividades decorrentes da exploração do ouro, assim, a capitania de São Paulo seria criada, em 1709, como consequência da Guerra dos Emboabas – conflito que envolveu "paulistas", os primeiros descobridores das minas de ouro no sertão brasileiro, e reinóis e seus aliados, pelo controle da região. Os territórios   das capitanias de São Vicente e de Santo Amaro foram anexados, por meio de compra, aos territórios da Coroa e, a então formada capitania de São Paulo, passou a integrar, juntamente com a região das minas, a capitania de São Paulo e Minas de Ouro. Esta capitania abrangia um território bastante extenso, incorporado a partir da fundação de missões religiosas e das explorações de sertanistas e bandeirantes do planalto na região de São Vicente, onde se localizava a vila de São Paulo de Piratininga – fundada ainda no século XVI nos arredores do colégio dos jesuítas. A relação entre bandeirantes e jesuítas resultou em um conflito que marcou a história da capitania de São Paulo. A Companhia de Jesus, tanto na América espanhola quanto na portuguesa, investia na arregimentação de índios como forma de garantir a ocupação e presença da Igreja nas colônias. Suas missões integravam milhares de índios que viviam da sua própria produção agrícola, produziam artesanato, aprendiam música e, claro, se tornavam cristãos. Uma vez que o objetivo das entradas era a captura de nativos para o trabalho nas minas e lavouras (até o momento em que a mão de obra africana substituísse a local, que acabou sendo legalmente abolida entre 1755 e 1758), o conflito com a ordem religiosa Companhia de Jesus se tornou inevitável. As tensões só tiveram fim com a expulsão dos jesuítas em 1759. A capitania deu origem a um grupo social bastante típico, que criou raízes no planalto, acostumou-se a sobreviver por conta própria, devido às distâncias em relação ao litoral e ao descaso da administração metropolitana, e desenvolveu uma percepção aguda da necessidade de se explorar o vasto território desconhecido como única forma de encontrar novas riquezas. Estes exploradores abriam entradas e organizavam bandeiras, expedições de exploração territorial, busca de ouro e captura de escravos indígenas. Taubaté, São Paulo, São Vicente (a vila), Itu e Sorocaba se tornaram centros irradiadores deste movimento. Com a promessa de títulos e riquezas, os colonos investiam intensamente na busca de riquezas minerais, sonho alimentado pelas descobertas, ainda que limitadas, do mineral em ribeirões na região do vale do Ribeira e Santana do Parnaíba. O solo inadequado ao cultivo de produtos de exportação e o isolamento comercial condenaram a região a ocupar uma posição secundária nos interesses dos colonizadores. Até o século XVIII, São Paulo representou no cenário luso-brasileiro uma espécie de ponto estratégico de passagem e de organização das bandeiras, responsáveis pela descoberta do ouro, na região mais à noroeste, para além da serra da Mantiqueira, que ficaria conhecida como minas gerais, região que seria, a parir de então, o centro das atenções da metrópole e polo dinamizador da economia colonial. Em 1720, a capitania de São Paulo e Minas do Ouro seria desmembrada dando origem a duas capitanias: de São Paulo e de Minas Gerais. A capitania de São Paulo, após um processo de desmembramento que criou ainda as capitanias de Santa Catarina, São Pedro do Rio Grande, Goiás e Mato Grosso, foi extinta e incorporada à capitania do Rio de Janeiro em 1748. Voltaria a ganhar autonomia apenas em 1765, no contexto de medidas da metrópole que visava fortalecer a região centro sul da colônia, objetivando manter a irradiação da colonização para além dos limites estabelecidos pelo tratado de Tordesilhas (movimento para o qual a tradição sertanista dos paulistas se mostrava indispensável).

 

[7] CASTRO, D. FERNANDO JOSÉ DE PORTUGAL E (1752-1817): 1o conde de Aguiar e 20 marquês de Aguiar, era filho de José Miguel João de Portugal e Castro, 3º marquês de Valença, e de Luísa de Lorena. Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, ocupou vários postos na administração portuguesa no decorrer de sua carreira. Governador da Bahia, entre os anos de 1788 a 1801, passou a vice-rei do Estado do Brasil, cargo que exerceu até 1806. Logo em seguida, regressou a Portugal e tornou-se presidente do Conselho Ultramarino, até a transferência da corte para o Rio de Janeiro. A experiência adquirida na administração colonial valeu-lhe a nomeação, em 1808, para a Secretaria de Estado dos Negócios do Brasil, pasta em que permaneceu até falecer. Durante esse período, ainda acumulou as funções de presidente do Real Erário e de secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Foi agraciado com o título de conde e marquês de Aguiar e se casou com sua sobrinha Maria Francisca de Portugal e Castro, dama de d. Maria I. Dentre suas atividades intelectuais, destaca-se a tradução para o português do livro Ensaio sobre a crítica, de Alexander Pope, publicado pela Imprensa Régia, em 1810.

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