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Boticário contra a esposa adúltera

Escrito por Januária Oliveira | Publicado: Quinta, 28 de Outubro de 2021, 19h15 | Última atualização em Quinta, 28 de Outubro de 2021, 19h35

Requerimento de Manoel Gonçalves Vale da graça real de que sua ex-esposa fosse condenada a viver enclausurada em algum local bem distante da Corte e de onde ele estivesse. Maria Teodora, com quem teve filhos, o traiu, tendo tido outras crianças fora do casamento (incluindo um gerado durante um período em que estava recolhida à Santa Casa de Misericórdia), e também se prostituiu com caixeiros e cirurgiões, entre outros. Chegou a ser presa, além de recolhida, por ordem do marido, mas tornou a reincidir em suas faltas, chegando mesmo a tentar matar Manoel por duas vezes, quase sendo bem-sucedida. Por esses crimes – adultério, prostituição, tentativa de assassinato – havia sido degredada para Santa Catarina, escapando da pena de morte, mas estava de volta. O marido suplicava que ela fosse e ficasse em algum lugar bastante longe para que ele pudesse viver o restante de seus dias sem medo, em tranquilidade.

 

Conjunto documental: Ministério dos Negócios do Brasil, Ministério dos Negócios do Reino, Ministério dos Negócios do Reino e Estrangeiros, Ministério dos Negócios do Império e Estrangeiros. Instituições policiais
Notação: 6J-83
Datas-limite: 1816-1817
Título do fundo: Diversos GIFI
Código do fundo: OI
Argumento de pesquisa: criminalidade
Data do documento: [1816]
Local: s.l.
Folha(s): -
 

Diz Manoel Gonçalves Vale boticário[1] morador na Rua da Quitanda[2] desta Corte[3], que contraindo matrimônio[4] com Maria Teodora, com quem coabitou, e de quem teve alguns filhos; veio o suplicante ao cabo de anos no fatal conhecimento de haver a dita sua mulher traído a honra, e fé conjugal com tão licenciosa, e desenfreada paixão, que depois de se prostituir[5] aos próprios caixeiros[6], cirurgiões[7], e outros instrumentos da sua torpeza, que até chegou a introduzir nas mesmas casas de correção[8], que o suplicante destinou; como foi no Recolhimento[9] do Taipu, de onde fugiu, e veio para esta Corte entregar-se a toda a sorte de devassidão, e de sendo dali removida para a Santa Casa da Misericórdia[10]; ali pariu [e novamente] reincidiu, violando a clausura deste piedoso asilo, pelo ingresso que facilitou a um Frutuoso Maria Velho, de quem [pela] segunda vez emprenhou e por cujo fato sendo expulsa da santa casa, e conduzida a cadeia[11], ali também pariu: passou ainda esta furiosa a acrescentar a infâmia e a desonra o assassínio, e a total ruína do suplicante atentando atraiçoada, [ilegível] contra a sua vida, já pela [propinação] de veneno em caldos de galinha, de cujo laço se livrou o suplicante pelo conhecimento da sua arte, e profissão, já pelo violento meio de um tiro de pistola, de que por milagre escapou, mas cujas cicatrizes ainda em seu peito recentes provam a existência do crime[12], e a [pretensa] intenção do assassino; já por meio de soldados, que assalariou para pôr em execução tão atrás, e malvado projeto; e já finalmente pondo ela mesma fogo a sua própria casa, de que a providência libertou o suplicante sujeito por amor de uma mulher perdida, a tantos males e desgraças.

Deu por consequência o suplicante sua querela contra a suplicada, e o adultério[13] violado da clausura, [aquele] prosseguiu até [sentença] final no juízo da comarca do crime da cidade e casa onde sendo de esperar, que a vista das evidentíssimas provas deste crime se = impusessem aos réus, não já a pena de morte[14] natural, que a lei positivamente determina mas ao menos a de morte cível[15], que a equipara, e que a gravidade de tantos, e tão qualificados crimes exigia: não sucedeu assim, Real Senhor; porque penetrado os juízes de uma equidade mal entendida, mas todavia convencidos da existência do crime, condenaram apenas a suplicada em oito anos de degredo[16] para Santa Catarina[17] e ao adultério em dez para os Estados da Índia[18]; arrogando-se deste modo e a autoridade de modificarem a seu arbítrio a pena da lei, [quando] sendo ela como é neste caso expressa em direito, só a Vossa e Majestade imediatamente pertencia [interpretá-la] ou modificá-la; mas não aos juízes da causa, que não podendo ser mais benignos, que a lei nem estender o seu arbítrio além da verificação das provas, logo que julgaram provado o crime, deviam necessariamente aplicar-lhe a sua ordinária, e correspondente pena, e não a que extraordinariamente impuseram [ilegível] com os especiosos argumentos [expedidos] no acórdão [...] 22 [...], depois de reconhecerem no outro acórdão de [...] 21 [...] do documento junto, a suplicada adúltera legitimamente convencida do crime, de que fora arguida.

Seria pois, Senhor este caso em que o recurso de revista de graça especial – sempre patente ao Real Trono – teria o seu devido e competente lugar afim de mandar rever o feito, e mandar-se uma sentença tão nula, como injusta, por ser proferida contra direito expresso, e com notório excesso de jurisdição.

Mas longe de pretender esta graça, o suplicante não se dirige a Real Presença de Vossa Majestade[19] a outro fim mais, do que a acolher-se debaixo da Sua Real Proteção para que tomando Vossa Majestade na mais séria consideração infeliz situação, a que se acha reduzido; se digne ocorrer a iminente desgraça que o espera a ser abreviados os seus dias entregue às ganas da mais cruel de todas as feras, as mãos de uma infame que de mulher não tem se não a figura, e de uma perversa, que não satisfeita de trair a honra do suplicante pela violação do tálamo conjugal, não cessará jamais de maquinar atraiçoadamente contra a sua existência.

Sim Real Senhor, este monstro de luxúria e de torpeza, findo que seja o degredo de oito anos, que em crime tão atrás, lhe foi apenas [comutado]; nada obsta a que reverta para esta corte; e aqui vem mencionar o contínuo [...], e ignomínia de por sua mulher continuar impunemente a mais  dissoluta e desenfreada devassidão, ele tem mais que tudo, que um temerário, como ela tem tão perverso, e por ela seduzido com promessas de um futuro mais feliz, ousem atentar [...] contra a sua vida para que consumados seus pérfidos intentos venha uma assassina a gozar em prêmio de seus enormes crimes o fruto de seu suor, e das suas fadigas entrando para sua morte na posse da meação do seu casal, de cujo direito nem menos foi privada na favorável sentença que obteve.

Tal é pois, Augusto, o Soberano Senhor, o justo receio que obriga o desgraçado suplicante a recorrer em tão pungentes e apertadas circunstâncias a Real e Indefectível clemência de Vossa majestade para que lançando piedosas vistas sobre a sua triste desgraçada sorte se digne pelo menos conceder-lhe uma Real Segurança da sua vida, apartando do lugar da sua existência aquele monstro de maldade, aquela torpe, e infame assassina, que depois de ser o eterno o [...] da sua família e a causa dos males, que padece, só com a morte que de muito tempo lhe tem jurado, satisfará aos sedentos desejos em que arde, de lhe beber o próprio sangue. Prostrado por tanto o suplicante aos pés do Real Trono.

Humildemente roga, e implora a graça [20] de Vossa Majestade por um efeito da sua Real, e Incomparável justiça e retidão se digne determinar uma clausura distante desta corte, onde seja reclusa a suplicada para que removida a ocasião do pecado, e privada dos meios de correr [ilegível] da sua perdição eterna possa o suplicante viver tranquilo os poucos dias que lhe restam e sem ao menos passar pela vergonha de ser testemunha ocular dos seus deboches e devassidões; obrigando-se entre tanto o suplicante a contribuir com as necessários alimentos para sua cômoda e decente sustentação. Tanta é pois a especialíssima graça que firmemente espera merecer da Real Grandeza e Incomparável clemência, justiça e retidão de Vossa e Majestade.

Manoel Gonçalves Vale
[1816]

[1] Restabelecer a saúde de um doente administrando e criando medicamentos foi, durante muito tempo, função de uma mesma pessoa. Foi no século VIII que a obtenção de remédios para a cura dos doentes deixou de ser uma atividade dos médicos, atribuindo-se aos boticários a manipulação de substâncias nas boticas, além de aviar receitas médicas. Para exercerem suas funções, os boticários necessitavam de licenças expedidas pela fisicatura-mor (1808-1828), órgão que regulamentava todas as atividades médicas. Diogo de Castro foi o primeiro boticário a chegar ao Brasil vindo de Portugal, em 1549, na comitiva do governador-geral Tomé de Souza, composta entre outras pessoas, por seis jesuítas, liderados pelo padre Manuel da Nóbrega, e de um físico e cirurgião da expedição, Jorge Valadares. De início, os medicamentos preparados vinham da metrópole, porém chegavam irregularmente e, com frequência, estragados devido à demora na viagem. A solução para os problemas de saúde na colônia residia, então, na manipulação de raízes, folhas e sementes da flora brasileira, respaldada no conhecimento dos índios para aplicação terapêutica das plantas medicinais. Os jesuítas, no seu trabalho de catequese, se dedicaram ao aprendizado manipulação de matérias primas nativas para obtenção de remédios que curassem as doenças próprias da região dos trópicos. Tal fato também contribuiu para o empenho dos jesuítas em aprender a transformar em medicamento o que as plantas nativas ofereciam, mesclando os conhecimentos médicos europeus com aqueles obtidos com os indígenas. De certa forma, os jesuítas foram os primeiros boticários e nos seus colégios criaram-se as primeiras boticas, onde o povo encontrava os medicamentos para alívio dos seus males. Foram instaladas sob a direção dos padres boticas na Bahia, Olinda, Recife, Maranhão, Rio de Janeiro e São Paulo. A mais importante foi a da Bahia, por se tornar um centro distribuidor para as demais.

[2] Anteriormente conhecida como rua do Açougue Velho, rua da Quitanda Velha, ou da Quitanda dos Pretos, ou da Quitanda dos Mariscos, localizada no centro da cidade do Rio de Janeiro, fazia a comunicação entre a Prainha (região da atual Praça Mauá) e o bairro da Misericórdia. Recebeu este nome pela existência de uma grande feira aberta, semelhante a uma quitanda, em um trecho da rua. Foi nesta via que ocorreu o pagamento do resgate oferecido pela cidade ao corso francês Duguay-Trouin em 1711 e o episódio conhecido como "Noite das Garrafadas" em 1831 – conflito entre brasileiros e portugueses que antecedeu a abdicação de d. Pedro I ao trono. Nessa importante rua do centro da cidade, estabeleceram-se, entre outros: a sede da tipografia dos irmãos Laemmert; a Loteria da Santa Casa da Misericórdia; a primeira Escola Homeopática (1844); a primeira sede da Academia Brasileira de Letras; o Gabinete Inglês de Leitura e o Clube Militar. Foi também o endereço de inúmeros jornais, como O Mequetrefe e o Correio Mercantil.

[3] A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro foi fundada tendo como marco de referência uma invasão francesa. Em 1555, a expedição do militar Nicolau Durand de Villegaignon conquista o local onde seria a cidade e cria a França Antártica. Os franceses, aliados aos índios tamoios confederados com outras tribos, foram expulsos em 1567 por Mem de Sá, cujas tropas foram comandadas por seu sobrinho Estácio de Sá, com o apoio dos índios termiminós, liderados por Arariboia. Foi Estácio que estabeleceu “oficialmente” a cidade e iniciou, de fato, a colonização portuguesa na região. O primeiro núcleo de ocupação foi o morro do Castelo, onde foram erguidos o Forte de São Sebastião, a Casa da Câmara e do governador, a cadeia, a primeira matriz e o colégio jesuíta. Ainda no século XVI, o povoamento se intensifica e, no governo de Salvador Correia de Sá, verifica-se um aumento da população no núcleo urbano, das lavouras de cana e dos engenhos de açúcar no entorno. No século seguinte, o açúcar se expande pelas baixadas que cercam a cidade, que cresce aos pés dos morros, ainda limitada por brejos e charcos. O comércio começa a crescer, sobretudo o de escravos africanos, nos trapiches instalados nos portos. O ouro que se descobre nas Minas Gerais do século XVIII representa um grande impulso ao crescimento da cidade. Seu porto ganha em volume de negócios e torna-se uma das principais entradas para o tráfico atlântico de escravos e o grande elo entre Portugal e o sertão, transportando gêneros e pessoas para as minas e ouro para a metrópole. É também neste século, que a cidade vive duas invasões de franceses, entre elas a do célebre Duguay Trouin, que arrasa a cidade e os moradores. Desde sua fundação, esta cidade e a capitania como um todo desempenharam papel central na defesa de toda a região sul da América portuguesa, fato demonstrado pela designação do governador do Rio de Janeiro Salvador de Sá como capitão-general das capitanias do Sul (mais vulneráveis por sua proximidade com as colônias espanholas), e pela transferência da sede do vice-reinado, em Salvador até 1763, para o Rio de Janeiro quando a parte sul da colônia tornou-se centro de produção aurífera e, portanto, dos interesses metropolitanos. Ao longo do setecentos, começam os trabalhos de melhoria urbana, principalmente no aumento da captação de água nos rios e construção de fontes e chafarizes para abastecimento da população. Um dos governos mais significativos deste século foi o de Gomes Freire de Andrada, que edificou conventos, chafarizes, e reformou o aqueduto da Carioca, entre outras obras importantes. Com a transferência da capital, a cidade cresce, se fortifica, abre ruas e tenta mudar de costumes. Um dos responsáveis por essas mudanças foi o marquês do Lavradio, cujo governo deu grande impulso às melhorias urbanas, voltando suas atenções para posturas de aumento da higiene e da salubridade, aterrando pântanos, calçando ruas, construindo matadouros, iluminando praças e logradouros, construindo o aqueduto com vistas a resolver o problema do abastecimento de água na cidade. Lavradio, cuja administração se dá no bojo do reformismo ilustrado português (assim como de seu sucessor Luís de Vasconcelos e Souza), ainda criou a Academia Científica do Rio de Janeiro. Foi também ele quem erigiu o mercado do Valongo e transferiu para lá o comércio de escravos africanos que se dava nas ruas da cidade. Importantíssimo negócio foi o tráfico de escravos trazidos em navios negreiros e vendidos aos fazendeiros e comerciantes, tornando-se um dos principais portos negreiros e de comércio do país. O comércio marítimo entre o Rio de Janeiro, Lisboa e os portos africanos de Guiné, Angola e Moçambique constituía a principal fonte de lucro da capitania. A cidade deu um novo salto de evolução urbana com a instalação, em 1808, da sede do Império português. A partir de então, o Rio de Janeiro passa por um processo de modernização, pautado por critérios urbanísticos europeus que incluíam novas posturas urbanas, alterações nos padrões de sociabilidade, seguindo o que se concebia como um esforço de civilização. Assume definitivamente o papel de cabeça do Império, posição que sustentou para além do retorno da Corte, como capital do Império do Brasil, já independente.

[4] A regulamentação eclesiástica do casamento deu-se a partir do Concílio de Trento (1545-1563) e consistia em um contrato de fidelidade carnal entre um homem e uma mulher para fins de procriação. Durante o período colonial cabia estritamente à Igreja a celebração do matrimônio. A partir do século XIX, a relação entre Estado e Igreja tornara-se alvo de críticas e atividades que, anteriormente, eram exercidas pela Igreja, como a administração de hospitais, cemitérios, orfanatos, escolas, passaram a ser reivindicadas pelo Estado, assim como o casamento. Assim, a cerimônia passaria a ser feita por escritura pública, lavrada por um tabelião e assinada por testemunhas. Isto indica que a troca de votos verbais, perante uma autoridade eclesiástica, já se tornara insuficiente, sendo necessário um documento legal para o controle ou a garantia das responsabilidades estabelecidas no contrato nupcial. Este acordo constituía uma das formas de alianças, frequentemente motivadas por interesses políticos e econômicos.

[5] Nas sociedades primitivas, a ausência de obstáculos à sexualidade tornava desnecessária a configuração de qualquer forma de prostituição. Esta seria, portanto, constitutiva do processo de socialização das civilizações antigas, com o surgimento da propriedade privada e o estabelecimento da monogamia e da sociedade patriarcal, fundada na subordinação das mulheres, públicas ou privadas, pela família, respaldada na figura do homem. Foi nas civilizações avançadas da Antiguidade que a prostituição se desenvolveu sob a forma tipicamente comercializada. No Brasil, a prática foi uma constante no período colonial. As primeiras prostitutas desembarcaram na América portuguesa ainda no primeiro século da colonização, estimuladas pelo Coroa portuguesa, que buscava, com a vinda de mulheres brancas, barrar a crescente mestiçagem entre homens brancos e indígenas. Prática tolerada na sociedade colonial, foram úteis para a valorização e consolidação do seu oposto: as mulheres “puras” ditas moças de família. Tornou-se uma forma de trabalho tanto para as mulheres que procuravam garantir sua sobrevivência, quanto para os senhores de escravos que exploravam sexualmente as cativas. O ato de prostituir-se não era considerado uma atividade criminosa no Brasil colonial, no entanto, alguns preceitos básicos deveriam ser respeitados, como não manter relações com outras mulheres ou parentes, não induzir que uma filha também se prostituísse e, ainda, não abandonar o caráter esporádico das relações, evitando gerar uma acusação de concubinato. As prostitutas, circulando livremente pelos logradouros e recebendo homens em suas casas, viviam uma realidade diretamente oposta à das mulheres ditas honradas, que aguardavam pelo casamento.

[6] O termo caixeiro englobava diversos tipos de atividades ligadas ao comércio, desde o vendedor que ficava atrás do balcão nas lojas de varejo de secos e molhados, até os grandes guarda-livros, responsáveis pela escrituração mercantil das grandes casas de comércio, passando por aqueles que são os mais populares no imaginário popular, a figura do vendedor de porta em porta, ou revendedor de produtos “finos” onde não havia casas de comércio que atendessem. Quando a Junta do Comércio foi criada em Portugal durante o período pombalino, a atividade adquiriu um status profissional mais específico, principalmente quando aos caixeiros foi permitida a possibilidade de cursar as Aulas de Comércio. Isso também se deu no Brasil, a partir de 1808 quando a Junta do Comércio do Rio de Janeiro foi criada e passou-se a fazer o registro dos caixeiros e guarda-livros. Os assim registrados tinham um estatuto social e profissional mais alto do que os pequenos varejistas, sem registro e sem instrução própria. Para as famílias de comerciantes de grosso trato, o posto de caixeiro como guarda-livros era um trabalho de iniciação nos negócios familiares, uma forma de começar a carreira mercantil e conhecer os ofícios do comércio. Para muitos outros, entretanto, o trabalho era mais pesado e menos prestigioso, muitos vivendo como dependentes e agregados das firmas, patrões e famílias para as quais serviam. (Ver SILVA, Maria Beatriz Nizza. “Caixeiro”. Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil. Lisboa, São Paulo: editorial Verbo, 1994, p. 123.)

[7] A cirurgia vem de uma longa tradição científica que nos séculos XVII e XVIII podia ser localizada no tratado árabe “O método da medicina”, de Albucasis, (936-1013) traduzido em latim e largamente disseminado na Idade Média. Na França a cirurgia teria sido o campo mais radicalmente transformado no século das Luzes, como escreve Alain Touwaide (Chirurgie. In: Delon, M. Dictionnaire européen des Lumières, 1997). É nesse período que os cirurgiões conquistam o respeito dos médicos e que a cirurgia se torna, nas universidades, um instrumento de investigação do corpo e da própria doença. Os cirurgiões distinguiam-se dos médicos, havendo diferenças entre eles, como em Portugal onde eram divididos em três tipos, os diplomados, aprovados e barbeiros, segundo a formação e local de aprendizagem, como hospitais militares, misericórdias ou outros hospitais, como explica Lycurgo Santos Filho (Cirurgiões. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza. Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil, 1994). Predominaram no Brasil e em Portugal os cirurgiões-barbeiros, acolhidos como aprendizes pelos mestres cirurgiões. Ainda de acordo com Santos Filho, nos séculos XVI e XVII os cirurgiões eram quase todos cristãos novos, quase sempre perseguidos pelo Santo Ofício por práticas judaizantes, mas que dada sua especialidade chegaram a postos de destaque na sociedade colonial, como assinala Ronaldo Vainfas (Cf. Cirurgiões. In: Dicionário do Brasil colonial, 1500-1808, 2001). Nos séculos seguintes os cirurgiões na América portuguesa foram muitas vezes negros, escravizados ou não, além dos classificados como brancos ou mulatos. Cabia-lhes sangrar, aplicar bichas ou ventosas, escalda-pés, banhos, arrancar dentes, e, cortar cabelo e fazer a barba. Sem que tivessem autorização para tal, procediam a amputações e lancetavam abscessos diz Lycurgo S. Filho. A cirurgia seguiria dividida entre aqueles que adquiriam o conhecimento com mestres ou pela prática e outros que a exerceriam a partir das universidades. A partir de 1808 os hospitais militares de Salvador e do Rio de Janeiro passam a contar com cursos de cirurgia; Entre 1813 e 1816 são fundadas, nas mesmas cidades, academias médico-cirúrgicas que concedem diplomas de cirurgião e cirurgião formado. Em 1832 são criadas faculdades de medicina no Império. (PIMENTA, T. S. “Curandeiro, parteira e sangrador: ofícios de cura no início do oitocentos na corte imperial”. Khronos, nº6, pp. 59 - 64. 2018.)

[8] A noção de uma casa “corretiva” para os delinquentes não integrava as noções de justiça do Antigo Regime, preocupado em punir e castigar o corpo dos réus. Daí a ausência, em especial no Brasil colonial, de qualquer instituição penal que cuidasse, além de amontoar indivíduos à própria sorte em celas escuras e fétidas. Mas na segunda metade do século XVIII, encontram-se esboços de uma concepção de prisão com fins de correção do transgressor, propostas pelo poder público metropolitano. A denominação Casa de Correção já explicita uma preocupação em recolher o delinquente não apenas para isolá-lo e puni-lo, mas reeducá-lo de forma a que não tornasse a cometer os mesmos crimes. Em oposição às tradicionais prisões insalubres, escuras, cuja organização espacial e método de recolhimento e encarceramento não seguiam nenhuma lógica além da mera punição pelo isolamento, as Casas de Correção, ao menos teoricamente, propunham-se a utilizar o espaço de reclusão como meio de evitar que o preso reincidisse na infração, especialmente através do trabalho. Para tal, a disciplina e a arquitetura da instituição mostrar-se-iam fundamentais. Apesar de propostas no sentido de concretizar uma Casa de Correção no Rio de Janeiro surgirem na segunda metade do século XVIII, somente em 1833 ela começou, de fato, a ser erguida na região, onde atualmente se encontra o bairro do Catumbi. Não à toa, erguida em um momento em que a presença das classes populares ganhava as ruas da capital do Império, exercendo suas atividades laborais, envolvidas em rixas políticas ou simplesmente “vadiando”, a Casa de Correção tinha por objetivo transformar o detento em súdito “probo e laborioso.”

[9] Casas de reclusão voltadas para educação de mulheres, surgidas na época moderna. Em sua maioria, eram instituições laicas, não ligadas diretamente à Igreja, embora pudessem, mais tarde, transformarem-se em conventos. O primeiro criado por uma mulher e vinculado à Ordem Terceira Franciscana foi estabelecido na cidade de Olinda, em 1576. No período colonial, muitos recolhimentos foram fundados por padres, mas ainda que a educação religiosa integrasse os ensinamentos, o voto religioso não era obrigatório, tendo em vista que nesses ambientes recolhiam-se viúvas, solteiras, órfãs, além de mulheres escravas que faziam os serviços mais pesados. Eram espaços regidos por uma disciplina que tinha por base o estabelecimento de censuras, obrigações e a regulamentação dos ciclos de repetição. As casas de recolhimento exerciam uma dupla função na sociedade colonial. Se por um lado legitimavam a dominação masculina, ao receberem mulheres que não se enquadravam nos padrões estabelecidos, por outro, funcionavam como locais de resistência feminina. Algumas mulheres, por exemplo, optavam pela vida nos recolhimentos para escaparem de casamentos arranjados. Desta forma, tais espaços convertiam-se em alternativas de exercício da liberdade diante das poucas opções que a sociedade patriarcal legava às mulheres. É interessante ressaltar que os recolhimentos eram sustentados por meio de doações. Esperava-se que formassem boas esposas, mães, ou em última instância, boas educadoras para as moças mais jovens da casa. Constituíram um dos poucos espaços na colônia onde as mulheres aprendiam a ler e escrever, uma vez que não havia escolas para mulheres.

[10] Irmandade religiosa portuguesa criada em 1498, em Lisboa, pela rainha Leonor de Lencastre. Era composta, inicialmente, por cem irmãos, sendo metade nobres e os demais plebeus. Dedicada à Virgem Maria da Piedade, a irmandade adotou como símbolo a virgem com o manto aberto, representando proteção aos poderes temporal e secular e aos necessitados. Funcionava como uma organização de caridade prestando auxílio aos doentes e desamparados, como órfãos, viúvas, presos, escravos e mendigos. Entre as suas realizações, destaca-se a fundação de hospitais. Segundo o historiador Charles Boxer, eram sete os deveres da Irmandade: “dar de comer a quem tem fome; dar de beber a quem tem sede; vestir os nus; visitar os doentes e presos; dar abrigo a todos os viajantes; resgatar os cativos e enterrar os mortos” (O império marítimo português. 2ª ed., Lisboa: Edições 70, 1996, p. 280). A instituição contou com a proteção da Coroa portuguesa que, além do auxílio financeiro, lhe conferiu privilégios, como o direito de sepultar os mortos. Enfrentando dificuldades financeiras, a Mesa da Misericórdia e os Hospitais Reais de Enfermos e Expostos conseguiram que a rainha d. Maria I lhes concedesse a mercê de instituir uma loteria anual, através do decreto de 18 de novembro de 1783. Cabe destacar que os lucros das loterias se destinavam, também, as outras instituições pias e científicas. Inúmeras filiais da Santa Casa de Misericórdia foram criadas nas colônias do Império português, todas com a mesma estrutura administrativa e os mesmos regulamentos. A primeira Santa Casa do Brasil foi fundada na Bahia, ainda no século XVI. No Rio de Janeiro, atribui-se a criação da Santa Casa ao padre jesuíta José de Anchieta, por volta de 1582, para socorrer a frota espanhola de Diogo Flores de Valdez atacada por enfermidades. A irmandade esteve presente, também, em Santos, Espírito Santo, Vitória, Olinda, Ilhéus, São Paulo, Porto Seguro, Sergipe, Paraíba, Itamaracá, Belém, Igarassu e São Luís do Maranhão. A Santa Casa constituiu a mais prestigiada irmandade branca dedicada à ajuda dos doentes e necessitados no Império luso-brasileiro, desempenhando serviços socais como a concessão de dotes, o abrandamento das prisões e a organização de sepultamentos. Os principais hospitais foram construídos e administrados por essa irmandade, sendo esta iniciativa gerada pelas precárias condições em que viviam os colonos durante o período inicial da ocupação territorial brasileira. A reunião do corpo diretivo da irmandade da Santa Casa da Misericórdia, responsável pela administração desta associação, era chamada Mesa da Misericórdia.

[11] O sistema prisional, baseado no encarceramento diferenciado e delimitado por penas variáveis, aparece no mundo contemporâneo (ou, pelo menos, na maior parte dele) como concretização de sanções impostas a indivíduos que quebram as regras estabelecidas. Na realidade, a privação da liberdade e o isolamento como punição em si – e também reeducação – surgiu na Europa. Não há registros na Antiguidade, por exemplo, do uso punitivo do encarceramento, utilizado na época como detenção temporária do suspeito até que a punição final fosse imposta, após julgamento. O banimento, a infâmia, a mutilação, a morte e a expropriação eram as penas mais recorrentes. Na Idade Média, o cenário era semelhante. O crescimento populacional, a urbanização e as graves crises de fome que marcaram a Idade Moderna resultaram em aumento de criminalidade e em revolta social, movimentos estes que, às vezes, se sobrepunham. Diante dessa situação, as penas cruéis e a própria pena de morte, aplicadas em público, utilizadas na Idade Média em resposta a crimes frívolos (roubar um pão, ofender o senhorio, blasfemar), deixaram de ser adequadas, posto que poderiam facilmente causar um levante popular. Além disso, cada vez mais se considerava o espetáculo bizarro das punições públicas uma afronta ao racionalismo e ao humanismo que marcaram o século XVIII. Se no Antigo Regime o sistema penal se baseava mais na ideia de castigo do que na recuperação do preso, no século XVIII se intensificam as tentativas, esboçadas no século anterior, de transformar as velhas masmorras, cárceres e enxovias infectas e desordenadas, onde se amontoavam criminosos, em centros de correção de delinquentes. Em boa parte do mundo, entretanto, tais ideias demorariam a sair do papel. No Brasil, no início do século XIX, muitas fortalezas funcionaram como prisões para corsários, amotinados e, algumas vezes, para criminosos comuns. Na maior parte do vasto território da colônia, as cadeias eram administradas pelas câmaras municipais e, geralmente, localizavam-se ao rés do chão das mesmas, ou nos palácios de governo. A tortura, meio de obtenção de informações conforme previsto pelas Ordenações Filipinas, era utilizada tanto em casos de prisão por motivos religiosos, quanto em prisioneiros comuns. As cadeias não passavam de infectos depósitos de pessoas do todo o tipo: desde pessoas livres, já condenadas ou sofrendo processo, até suspeitos de serem escravos fugidos, prostitutas, indígenas, loucos, vagabundos. Proprietários, homens ricos e influentes e funcionários da Coroa permaneciam em um ambiente separado. Para os escravos, havia uma cadeia denominada Calabouço, embora também fossem encerrados em outros estabelecimentos.

[12] As Ordenações Filipinas, última das ordenações reais, forneceram o arcabouço legal à monarquia portuguesa desde 1603, quando foram promulgadas por Filipe I. O Livro V das Ordenações definia e caracterizava os crimes e a punição dos criminosos, constituindo uma forma explícita de afirmação do poder régio. Cada capítulo dedicava-se a formas muito específicas de conduta, assim como orientava a atuação dos agentes da lei diante de situações e de criminosos os mais diversos. Tal livro vigorou no Brasil, por mais de 220 anos, já que deixou o ordenamento jurídico somente no ano de 1830, quando sobreveio o Código Criminal do Império.

[13] De acordo com o direito romano, quando o adultério era cometido pela mulher permitia-se ao marido traído “lavar com sangue” a sua honra. Mas, para que os homens fossem punidos, era necessária prova material de que ele estivesse incurso no que se chamava “concubinagem franca” com a mulher, pois relações passageiras, pequenos desvios e alguns pecadilhos eram tolerados. Considerada uma falta grave desde o Concílio de Trento (1545-1563), a Igreja reconheceu a possibilidade de separação permanente dos consortes, sendo um dos motivos mais alegados para o “divórcio”, uma vez comprovada a traição.

[14] As Ordenações Filipinas permaneceram em vigência no Brasil até a publicação do Código Penal de 1830. Enfatizando o criminoso em vez do ato, sua suposta natureza vil e perversa, e vinculando todo o processo (inclusive a determinação de pena) a linhagem e privilégios do réu, este código de leis, que remonta a Portugal do Antigo Regime, determinava penalidades corporais e o pagamento com a própria vida por uma série de crimes contra a honra e a propriedade. Em seu Livro V, que tratava das penalidades criminais, permitia a aplicação da pena capital com grande liberalidade: crimes contra a vida, contra a ordem política estabelecida ou contra o soberano, bigamia, relacionamento com não-cristãos, falsificação de moeda e roubo. O termo morra por ello (morra por isso) aparecia em profusão neste corpo de leis, que tinha entre suas punições possíveis a pena de morte, degredo, banimento, confisco de bens, multas e castigos físicos. Determinava-se castigo bastante específico para os escravos que assassinassem seu senhor: “Seja atenazado [ter as carnes apertadas com tenaz ardente] e lhes sejam decepadas as mãos e morra morte natural na forca para sempre.” As Ordenações foram sendo deixadas de lado a partir da Independência formal do Brasil, e a primeira Constituição aboliu castigos físicos, tortura, mutilação dos cadáveres dos condenados, exposição dos corpos. Isto, contudo, valia apenas para os homens livres, pois os cativos, propriedade privada de existência civil, continuaram a ser açoitados como forma de castigo por crimes comuns. Também deu fim às diversas formas de aplicação da pena de morte que a criatividade dos legisladores portugueses impôs ao antigo código (morte por fogo, asfixia, açoitamento, sepultamento, entre outras), permitindo apenas a forca. Além disso, sua aplicação restringia-se a homicídios e insurreições escravas. De fato, os escravos acusados de sublevação ou de assassinato de seus senhores, rarissimamente recebiam algum alívio da pena, pois, na prática, não podiam sequer alegar legítima defesa. A pena de morte foi muito pouco aplicada no Brasil do Segundo Império e, até mesmo, crimes cometidos por escravos contra seus senhores passaram ser passíveis de indulto nos últimos anos do governo de d. Pedro II. (https://www.academia.edu/11655581/O_tratamento_jur%C3%ADdico_dos_escravos_nas_Ordena%C3%A7%C3%B5es_Manuelinas_e_Filipinas)

[15] Punição prevista no corpo de leis português, o degredo era aplicado a pessoas condenadas aos mais diversos tipos de crimes pelos tribunais da Coroa ou da Inquisição. Tratava-se do envio dos infratores para as colônias ou para as galés onde cumpririam a sentença determinada. Os menores delitos, como pequenos furtos e blasfêmias, geravam uma pena de 3 à 10 anos, e os maiores que envolviam lesa-majestade, sodomia, falso misticismo, fabricação de moeda falsa, entre outros, eram definidos pela perpetuidade com pena de morte se o criminoso voltasse ao país de origem. Além do aspecto jurídico, em um momento de dificuldades financeiras para Portugal, degredar criminosos, hereges e perturbadores da ordem social, adquiriu funções variadas além da simples punição. Expulsá-los para as “terras de além-mar” mantinha o controle social em Portugal e, em alguns casos também, em suas colônias mais prósperas, contribuindo para o povoamento das fronteiras portuguesas e das possessões coloniais, além de aliviar a administração real com a manutenção prisional. Uma das formas encontradas pelas autoridades para livrar o reino de súditos indesejáveis, entre degredados figuraram marginais, vadios, prostitutas e aqueles que se rebelassem contra a Coroa. Sendo uma das mais severas penas, o degredo estava abaixo apenas da pena de morte, pois servia como pena alternativa; esta era designada pelo termo “morra por ello” (morra por isso). Porém. o degredo também assumia este caráter de “morte civil” já que a única forma de assumir novamente alguma visibilidade social, ou voltar ao seu país, era obtendo o perdão do rei.

[16] Punição prevista no corpo de leis português, o degredo era aplicado a pessoas condenadas aos mais diversos tipos de crimes pelos tribunais da Coroa ou da Inquisição. Tratava-se do envio dos infratores para as colônias ou para as galés, onde cumpririam a sentença determinada. Os menores delitos, como pequenos furtos e blasfêmias, geravam uma pena de 3 a 10 anos, e os maiores, que envolviam lesa-majestade, sodomia, falso misticismo, fabricação de moeda falsa, entre outros, eram definidos pela perpetuidade, com pena de morte se o criminoso voltasse ao país de origem. Além do aspecto jurídico, em um momento de dificuldades financeiras para Portugal, degredar criminosos, hereges e perturbadores da ordem social adquiriu funções variadas além da simples punição. Expulsá-los para as “terras de além-mar” mantinha o controle social em Portugal e, em alguns casos também, em suas colônias mais prósperas, contribuindo para o povoamento das fronteiras portuguesas e das possessões coloniais, além de aliviar a administração real com a manutenção prisional. Constituindo-se uma das formas encontradas pelas autoridades para livrar o reino de súditos indesejáveis, entre os degredados figuraram marginais, vadios, prostitutas e aqueles que se rebelassem contra a Coroa. Considerada uma das mais severas penas, o degredo só estava abaixo da pena de morte, servindo como pena alternativa designada pelo termo “morra por ello” (morra por isso). Porém o degredo também assumia este caráter de “morte civil” já que a única forma de assumir novamente alguma visibilidade social, ou voltar ao seu país, era obtendo o perdão do rei.

[17] O núcleo de povoamento original chamou-se Nossa Senhora do Desterro, fundado na década de 1670, com a chegada do bandeirante Francisco Dias Velho, acompanhado de outras famílias e mais de 500 nativos. A capitania de Santa Catarina foi pela Provisão Régia em 1738, com base na desvinculação da ilha de Santa Catarina – originalmente chamada de ilha dos Patos –, e sua fronteira continental, até então sob jurisdição de São Paulo. No ano seguinte, José da Silva Paes é nomeado governador da nova capitania, com a incumbência de fortificar a ilha e organizar a ocupação sistemática da região. Batizada pelo navegante veneziano Sebastião Caboto, que chegou à ilha em 1526 à frente de uma expedição espanhola, foi um dos pontos mais utilizados para desembarque de contrabandistas, corsários e estrangeiros na costa do Brasil devido a sua proximidade com continente, às boas baías para atracar embarcações e aos ventos brandos. Seu povoamento estaria relacionado à importância desse litoral para as navegações que se dirigiam à região do rio da Prata, que ficava em um ponto geográfico estratégico a meio caminho entre a cidade do Rio de Janeiro e o sul do continente. Era, assim, parada quase obrigatória dos navios que passavam pelo litoral. A ilha oferecia madeira abundante e de qualidade para reparos de embarcações, além de gêneros alimentícios e água para abastecimento das tripulações em viagem. Essa privilegiada posição geográfica despertou o interesse, principalmente, de espanhóis, que chegaram a ocupar a ilha em alguns momentos, mas também de ingleses e franceses. Em 1777, a ilha foi ocupada por espanhóis, liderados por d. Pedro de Cevallos, governador de Buenos Aires. A invasão foi resultado dos conflitos entre as nações ibéricas, decorrentes da anulação do Tratado de Madri e da Guerra dos Sete Anos, travada na Europa entre diversos reinos, entre eles França e Inglaterra, nos anos 1756-1763. O domínio português na região só foi reestabelecido com a assinatura do Tratado de Santo Ildefonso, face ao pequeno interesse demonstrado pelos portugueses de ocupar o território no início da colonização, quando ocorreram algumas tentativas de tomar a ilha, levando a Coroa portuguesa a iniciar a ocupação efetiva de Santa Catarina por imigrantes açorianos ainda no século XVII. Nesse mesmo período, os povoados de São Francisco, Desterro e Laguna foram fundados. As atividades produtivas estavam em torno do cultivo de subsistência e da tradição pesqueira. Em meados do século XVIII Portugal autorizou a pesca de baleias no litoral catarinense. A produção de óleo ("azeite", como então chamado) encontrava uso local ou era enviada a Portugal. Não demorou muito e os animais passaram e evitar a costa o que, junto à substituição de óleo por querosene, no início do século XIX, ocasionou o declínio da atividade. No início do século XIX, os tratados da Coroa portuguesa com a Inglaterra incluíram a entrega de portos catarinenses para facilitar a rota de comércio inglês na região do Prata.

[18] O Estado das Índias, ou Índia portuguesa compreende um conjunto de possessões, cidades, fortalezas, portos e entrepostos conquistados pelos portugueses ao longo de sua expansão marítima e comercial, desde pelo menos finais do século XV até meados do XIX, na África e Ásia. Referem-se mais especificamente às cidades e portos que ficavam no que atualmente se chama Índia e constituíram um estado colonial em 1505, do ponto de vista administrativo como forma de facilitar a burocracia governamental ultramarina, controlando as novas áreas conquistadas. Foi primeiro administrado por d. Francisco de Almeida, e a sede do governo foi em Cochim até 1510, quando transferiu-se definitivamente para a cidade de Goa. Até a metade do século XVII, Portugal reinou soberano no oceano Índico, controlando as valiosas rotas comerciais de especiarias, sedas e outros produtos de luxo provenientes do Oriente, desde a costa leste do continente africano, até Macau, na China, passando por Malaca, Molucas, Timor Leste e outras regiões. Entre as cidades do território indiano propriamente destacavam-se: Diu, Surate, Damão, Bombain, Goa, Cananore, Calicute, Cochim, Ceilão e Maldivas, entre muitas outras. Portugal somente saiu da Índia em 1947, quando as cidades de Goa, Diu e Damão, as últimas e principais colônias, tornaram-se independentes ao se juntarem ao território Hindu. Não se pode esquecer que o comércio não foi o único impulsionador da conquista da Ásia e África, e a expansão portuguesa pelo ultramar foi resultante de uma associação poderosa e bem-sucedida entre Estado e religião Católica – as conquistas resultavam em produtos e lucrativas rotas comerciais para o reino e em almas para a Cristandade, que expandiu seus domínios até a China e o Japão com seus missionários. O declínio da hegemonia do comércio português se inicia quando os holandeses e outros navegantes também começaram a chegar ao Oriente, principalmente os primeiros com a poderosa esquadra da Companhia das Índias Orientais, tomaram conta das feitorias e portos portugueses, reduzindo muito sua área de atuação. Diu, Goa e Damão foram as maiores cidades do Estado português da Índia, grandes centros comerciais e polos receptores de gêneros e matéria-prima das outras regiões, a serem redistribuídos pelo Império luso. Embora os portugueses tenham se espalhado pela costa da Índia, foram essas as três regiões que permaneceram pontos ativos do império atlântico até o século XX (reconquistadas em 1961). Goa, a maior dessas cidades, situada na costa do Malabar, foi desde o século XVI, a sede das possessões no sudeste asiático. Conquistada em 1510 por Afonso de Albuquerque, era uma região estratégica, cercada de áreas de produção agrícola, recebia a maior quantidade de navios e cargas de outros pontos da península e que proporcionava aos portugueses o controle de comércio do oceano índico. Goa foi um dos vértices do comércio luso no atlântico – assim como Luanda, Lisboa, Salvador e Rio de Janeiro – e, embora o comércio com as possessões lusas na Índia tivesse entrado em decadência a partir do século XVIII (devido aos grandes gastos com guerras para mantê-las e ao contrabando, que diminuía consideravelmente os lucros da Coroa), a cidade permaneceu o ponto forte de Portugal na região. Ao longo do período colonial, os navios carregados de tecidos e outros produtos “finos” (como porcelanas e especiarias) da Índia deixavam os portos de Goa em direção a Luanda e, depois de uma escala em Salvador, iam para Lisboa, aonde chegavam praticamente descarregados. A maior parte desses tecidos era vendida diretamente para os comerciantes destas cidades (o que levou a aumento de impostos e a proibição da escala no Brasil). Depois da abertura dos portos do Brasil em 1808, o comércio com Lisboa enfraqueceu mais ainda, já que os navios eram diretamente direcionados para a África e depois para o Rio de Janeiro, de onde seriam redistribuídos para o restante do Império. Diu e Damão, localizadas respectivamente na costa de Guzerate e no golfo de Cambaia (ambos parte da região do Guzerate), mais ao norte da costa ocidental, foram peças-chave, desde o século XVI, no fornecimento de gêneros para o comércio metropolitano, sobretudo de tecidos de algodão, os mais finos reservados a serem mandados a Lisboa por Goa, e os mais grosseiros a serem exportados para Moçambique, em troca de marfim, âmbar, ouro, escravos, entre outros.

[19] Segundo filho de d. Maria I e d. Pedro III, se tornou herdeiro da Coroa com a morte do seu irmão primogênito, d. José, em 1788. Em 1785, casou-se com a infanta Dona Carlota Joaquina, filha do herdeiro do trono espanhol, Carlos IV que, na época, tinha apenas dez anos de idade. Tiveram nove filhos, entre eles d. Pedro, futuro imperador do Brasil. Assumiu a regência do Reino em 1792, no impedimento da mãe que foi considerada incapaz. Um dos últimos representantes do absolutismo, d. João VI viveu num período tumultuado. Foi sob o governo do então príncipe regente que Portugal enfrentou sérios problemas com a França de Napoleão Bonaparte, sendo invadido pelos exércitos franceses em 1807. Como decorrência dessa invasão, a família real e a Corte lisboeta partiram para o Brasil em novembro daquele ano, aportando em Salvador em janeiro de 1808. Dentre as medidas tomadas por d. João em relação ao Brasil estão a abertura dos portos às nações amigas; liberação para criação de manufaturas; criação do Banco do Brasil; fundação da Real Biblioteca; criação de escolas e academias e uma série de outros estabelecimentos dedicados ao ensino e à pesquisa, representando um importante fomento para o cenário cultural e social brasileiro. Em 1816, com a morte de d. Maria I, tornou-se d. João VI, rei de Portugal, Brasil e Algarves. Em 1821, retornou com a Corte para Portugal, deixando seu filho d. Pedro como regente.

[20] O mesmo que mercê, benefício, tença e donativos. Na sociedade do Antigo Regime, a concessão de mercês era um direito exclusivo do soberano, decorrente do seu ofício de reinar. Cabia ao monarca premiar o serviço de seus súditos, de forma a incentivar os feitos em benefício da Coroa. Desse modo, receber uma mercê significava ser agraciado com algum favor (concessão de terras, ofícios na administração real, recompensas monetárias), condecoração ou título pelo rei, os quais eram concedidos sob os mais variados pretextos. Em 1808, após a chegada da Corte portuguesa ao Brasil, foi criada a Secretaria do Registro Geral das Mercês, subordinada à Secretaria de Estado dos Negócios do Brasil, quando da recriação, no Rio de Janeiro, dos órgãos da administração do Império português. Tinha por competência o registro dos títulos de nobreza e de fidalguia concedidos como graça, benefício e recompensa pelo monarca. As formas mais frequentes de mercês eram os títulos de nobreza e fidalguia, com as terras e tenças correspondentes, os hábitos das Ordens Honoríficas, cargos e posições hereditários. A concessão de mercês era também uma forma do monarca balancear os privilégios entre seus súditos, mantendo os bons serviços prestados por quem já havia conquistado alguma graça e incentivando o bom trabalho dos que almejavam obtê-las. Com a transferência da Corte da Europa para a América, poder-se-ia crer que os súditos da terra passariam a obter mais mercês, mas a hierarquia que havia entre a metrópole e a colônia, reproduzida na concessão de benefícios acabaria por se manter na colônia, mesmo depois da elevação a Reino Unido. Poucos títulos de nobreza foram concedidos, uma vez que na América não havia a nobreza de sangue, de linhagem, mas somente a concedida por grandes favores prestados ao reino, políticos ou militares. Entre as ordens honoríficas observa-se que houve a concessão de mais títulos, mas a maioria de baixa patente ou menor importância, os mais altos graus ainda eram reservados para a nobreza metropolitana. Mesmo concedendo hábitos, títulos de cavaleiros, posições e cargos, as mercês reservadas aos principais da colônia eram inferiores àquelas reservadas aos grandes da metrópole.

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