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Proibição de esmolar

Escrito por Januária Oliveira | Publicado: Quinta, 28 de Outubro de 2021, 21h02 | Última atualização em Quinta, 28 de Outubro de 2021, 21h02

Ofício expedido para o ministro de Negócios Estrangeiros e da Guerra, Antônio de Araújo e Azevedo, conde da Barca, relatando que o réu Inácio José Camelo havia solicitado uma licença para esmolar por três dias fora da prisão. Inácio havia matado a “mulata sua amásia” degolada na cama de sua prostituição e segundo o oficial que encaminha o pedido, este deveria ser ignorado, uma vez que seu crime era de morte e a liberação de um criminoso como aquele poderia resultar em motins, pedradas e murmuração contra a Justiça. O oficial que assina o documento, teria conhecido o réu na época em que este era oficial de justiça em Pernambuco, e já havia cometido uma série de delitos menores. Portanto ele provavelmente estaria planejando fugir. Pelo atrevimento de ter requerido essa saída, e por tê-la dirigido diretamente ao Trono, em vez de ao juiz, deveria ser castigado com 15 dias de tronco na prisão. Conclui dizendo que “será um dia de satisfação pública o em que este suplicante for ao patíbulo”.

 

Conjunto documental: Ministério dos Negócios do Brasil, Ministério dos Negócios do Reino, Ministério dos Negócios do Reino e Estrangeiros, Ministério dos Negócios do Império e Estrangeiros. Instituições policiais
Notação: 6J-83
Datas-limite: 1816-1817
Título do fundo: Diversos GIFI
Código do fundo: OI
Argumento de pesquisa: criminalidade
Data do documento: 26 de agosto de 1816
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): -

 

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor

O requerimento de Ignácio José Camelo deve ser sem dúvida escusado: este preso é réu de morte, que fez nesta cidade a uma mulata[1] sua amásia, que a degolou no leito de sua prostituição[2] aleivosamente, e saiu para os subúrbios, onde foi achado com o fato ensanguentado. Desde então se fez o seu processo, que me consta estar por tal maneira provado, que o mesmo será chegar o dia da sua proposição, que o da sua condenação a pena última; nem eu sei porque razão não se tem este réu proposto, quando aliás o ódio público está desde então clamando sobre ele. Se fosse deferido agora na pretensão, que tem de sair [acorrentado] a pedir por três dias esmolas, era bem de recuar uma universal murmuração[3], e até um motim de moleques com pedradas, e assobios, que fazia envergonhar a quem lhe desse tal licença. É muito preciso notar aqui que, sendo costume pedir ao Trono muito descaradamente, quando se tivesse pejo do seu delito, que a Sua Majestade[4] mesmo foi patente, nem se faria lembrado por mais esta circunstância.

Eu tenho tais informações do atrevimento deste réu desde o tempo, em que ele foi oficial de justiça, e réu por outros menores delitos em Pernambuco[5], que entendo que ele tinha neste projeto algum plano formado, ou de fugir, ou de amotinar para tirar sobre si algum partido.

É portanto seguro que se ele negue a graça, que pede, e que, só pela pedir, seja castigado dentro da prisão com 15 dias de [tronco[6]]; até porque claramente hoje se sabe que tais urgentes necessidades não há na cadeia[7], que hoje, além das esmolas de jantares da Misericórdia[8], e das religiões[9], é socorrida pela Casa Real[10] em dias certos da semana, e o suplicante, que blasona de ser rábula, se tem erigido em Letrado da cadeia[11], de modo que ganha suficientemente em maus registros, que ali faz, passado para seu poder o pouco dinheiro de todos os mais.

Será um dia de satisfação pública o em que este suplicante for ao patíbulo[12], e a justiça de Sua Majestade resplandecerá nesse dia.

Deus Guarde a Vossa Excelência. Rio 26 de agosto de 1816. Ilustríssimo e excelentíssimo Senhor Conde da Barca[13].

Paulo José [...]

 

[1] No Brasil colônia, o termo mulato começou a aparecer em escritos de fins do século XVI, referindo-se à ascendência, designando o filho de homem branco com mulher negra ou de negro com branca. De acordo com os estatutos de pureza de sangue portugueses, os mulatos eram considerados uma "raça infecta", sendo-lhes vetado o acesso a determinados cargos públicos e títulos de nobreza. A despeito disto, muitos conseguiram assumir postos de proeminência no Brasil colonial e conquistaram títulos nobiliárquicos. Com o tempo, o termo mulato passou a ser associado à cor, identificando aqueles cujo tom de pele estaria entre o negro e o branco. Enquanto o termo pardo, por sua vez, era privilegiado na documentação oficial, a categoria “mulato” assumia frequentemente uma conotação pejorativa, sendo associada a características negativas, como indolência, arrogância e desonestidade. As mulatas eram relacionadas à lascívia, ou seja, com considerada propensão a luxúria sendo, por isso, tidas como um risco à fidelidade conjugal da família branca. Não podiam, também, alcançar a estima social garantida às mulheres ditas honradas através do casamento legítimo, já que esse lhes era vetado. Elo entre as duas posições mais antagônicas da sociedade colonial, muitas vezes, resultante de relações extraconjugais entre senhores e escravas, o mulato era visto como uma ameaça à ordem senhorial escravista da qual era produto. Mesmo quando livres ou forros, os mulatos carregavam o estigma da escravidão. Não tinham direitos filiais, embora estivessem mais aptos que os negros de dispor de favores pelo seu parentesco com o senhor branco, daí a expressão utilizada no período colonial de que alguns senhores se deixavam “governar por mulatos”. A visão desabonadora a respeito dos mulatos, provavelmente deita raízes nessas “facilidades” provindas de sua origem paterna, por exemplo, na compra e concessão de alforrias colocando em questão o princípio do partus sequitur ventrem, que previa a hereditariedade do cativeiro, embora existissem exceções e, alguns conseguissem, inclusive, tomar parte nas heranças familiares.

[2] Nas sociedades primitivas, a ausência de obstáculos à sexualidade tornava desnecessária a configuração de qualquer forma de prostituição. Esta seria, portanto, constitutiva do processo de socialização das civilizações antigas, com o surgimento da propriedade privada e o estabelecimento da monogamia e da sociedade patriarcal, fundada na subordinação das mulheres, públicas ou privadas, pela família, respaldada na figura do homem. Foi nas civilizações avançadas da Antiguidade que a prostituição se desenvolveu sob a forma tipicamente comercializada. No Brasil, a prática foi uma constante no período colonial. As primeiras prostitutas desembarcaram na América portuguesa ainda no primeiro século da colonização, estimuladas pelo Coroa portuguesa, que buscava, com a vinda de mulheres brancas, barrar a crescente mestiçagem entre homens brancos e indígenas. Prática tolerada na sociedade colonial, foram úteis para a valorização e consolidação do seu oposto: as mulheres “puras” ditas moças de família. Tornou-se uma forma de trabalho tanto para as mulheres que procuravam garantir sua sobrevivência, quanto para os senhores de escravos que exploravam sexualmente as cativas. O ato de prostituir-se não era considerado uma atividade criminosa no Brasil colonial, no entanto, alguns preceitos básicos deveriam ser respeitados, como não manter relações com outras mulheres ou parentes, não induzir que uma filha também se prostituísse e, ainda, não abandonar o caráter esporádico das relações, evitando gerar uma acusação de concubinato. As prostitutas, circulando livremente pelos logradouros e recebendo homens em suas casas, viviam uma realidade diretamente oposta à das mulheres ditas honradas, que aguardavam pelo casamento.

[3] Neste contexto, murmuração era como uma boataria sem comprovação, comentários entre a população, um disse me disse, falatório, intrigas sem confirmação.

[4] Segundo filho de d. Maria I e d. Pedro III, se tornou herdeiro da Coroa com a morte do seu irmão primogênito, d. José, em 1788. Em 1785, casou-se com a infanta Dona Carlota Joaquina, filha do herdeiro do trono espanhol, Carlos IV que, na época, tinha apenas dez anos de idade. Tiveram nove filhos, entre eles d. Pedro, futuro imperador do Brasil. Assumiu a regência do Reino em 1792, no impedimento da mãe que foi considerada incapaz. Um dos últimos representantes do absolutismo, d. João VI viveu num período tumultuado. Foi sob o governo do então príncipe regente que Portugal enfrentou sérios problemas com a França de Napoleão Bonaparte, sendo invadido pelos exércitos franceses em 1807. Como decorrência dessa invasão, a família real e a Corte lisboeta partiram para o Brasil em novembro daquele ano, aportando em Salvador em janeiro de 1808. Dentre as medidas tomadas por d. João em relação ao Brasil estão a abertura dos portos às nações amigas; liberação para criação de manufaturas; criação do Banco do Brasil; fundação da Real Biblioteca; criação de escolas e academias e uma série de outros estabelecimentos dedicados ao ensino e à pesquisa, representando um importante fomento para o cenário cultural e social brasileiro. Em 1816, com a morte de d. Maria I, tornou-se d. João VI, rei de Portugal, Brasil e Algarves. Em 1821, retornou com a Corte para Portugal, deixando seu filho d. Pedro como regente.

[5] A capitania de Pernambuco foi uma das subdivisões do território brasileiro no período colonial. Em 9 de março de 1534, essas terras foram doadas ao fidalgo português Duarte Coelho Pereira, que fundou Recife e Olinda (primeira capital do estado) e iniciou a cultura da cana-de-açúcar e do algodão, que teriam importante papel na história econômica do país. A capitania, originalmente, estendia-se por 60 léguas entre os rios Igaraçu e São Francisco, e era chamada de Nova Lusitânia. Nos primeiros anos da colonização, junto com São Vicente, a capitania teve grande destaque, pois sua exploração foi bem-sucedida, principalmente devido ao cultivo e produção do açúcar, responsável por mais da metade das exportações brasileiras. O sucesso da lavoura açucareira atraiu investimentos de outros colonos portugueses. O povoado de Olinda prosperou, tanto que, em 1537, o povoado foi elevado à categoria de vila, tornando-se um dos mais importantes centros comerciais da colônia. Em 1630, no entanto, os holandeses invadem Olinda e conquistam Pernambuco. A vila foi incendiada em 1631, como resultado dos contra-ataques portugueses, e Recife torna-se, então, o centro administrativo da capitania, crescendo sob a administração dos holandeses. O domínio holandês, sob a administração do conde Maurício de Nassau, provocou mudanças econômicas, sociais e culturais: tolerância religiosa; melhoramento urbano em Recife; incentivo a atividades artísticas e estudos científicos, além de acordos com os senhores de engenho no sentido de minorar suas dívidas e incentivar a produção de açúcar. Os holandeses foram expulsos em 1654 e foi iniciada a lenta reconstrução da vila de Olinda. Os anos de guerra e os conflitos internos abalaram a economia da capitania e, com o crescimento de outras regiões da colônia, Pernambuco perdeu sua supremacia econômica. Foi, também, no século XVII, que se formou o quilombo dos Palmares, o maior centro de resistência negra à escravidão do período colonial. Parte dele localizava-se em terras da capitania de Pernambuco e era formado por escravos fugitivos. Foi destruído em 1690, por Domingos Jorge Velho, após quase um século de existência. Pernambuco foi palco de diversos conflitos e revoltas. A guerra dos mascates, em 1710 e 1711, apresentou-se como um embate entre interesses imediatos de comerciantes portugueses – concentrados em Recife, pejorativamente chamados de mascates – e senhores de engenho, assentes em Olinda. A já existente rivalidade entre as duas cidades, que expressava uma disputa de poder político entre os dois grupos mencionados, acentuou-se em 1710, com a elevação do povoado de Recife à categoria de vila, independente de Olinda que, a partir de então, entraria em declínio, perdendo o status de capital para a rival logo em 1711. Em 1817, outro conflito eclodiria na capitania, a Revolução Pernambucana, que marcou o período de governo de d. João VI como um dos principais movimentos de contestação ao domínio português. Em meio a esse clima, a dissolução da Assembleia Constituinte, em 1823, e a outorga da Constituição de 1824 por d. Pedro I geraram violenta reação de Pernambuco. Após a tentativa de destituição de Manuel Paes de Andrade da presidência da província, para a nomeação de Francisco Pais Barreto pelo Imperador, acirraram-se as tensões, abrindo caminho para um movimento contestador: a Confederação do Equador – grande movimento revolucionário de caráter separatista e republicano que se estendeu por grande parte do nordeste brasileiro e teve Pernambuco como centro irradiador.

[6] Na Idade Média, esse instrumento de tortura era extremamente comum nas praças das vilas e cidades, deixando o condenado ao suplício exposto às intempéries, aos ratos e insetos e aos insultos públicos. No Brasil, era comum, no período de escravidão, que cada fazenda possuísse um tronco no terreiro, usado pelos senhores e seus feitores para punir o escravo por “desobediência” ou tentativa de fuga. Formado por duas peças de madeira retangular, presas em uma das extremidades por dobradiças de ferro e na outra um cadeado, com orifícios onde eram encaixados o pescoço, pulsos e tornozelos do escravo, que ficava ali cativo por dias e noites.

[7] O sistema prisional, baseado no encarceramento diferenciado e delimitado por penas variáveis, aparece no mundo contemporâneo (ou, pelo menos, na maior parte dele) como concretização de sanções impostas a indivíduos que quebram as regras estabelecidas. Na realidade, a privação da liberdade e o isolamento como punição em si – e também reeducação – surgiu na Europa. Não há registros na Antiguidade, por exemplo, do uso punitivo do encarceramento, utilizado na época como detenção temporária do suspeito até que a punição final fosse imposta, após julgamento. O banimento, a infâmia, a mutilação, a morte e a expropriação eram as penas mais recorrentes. Na Idade Média, o cenário era semelhante. O crescimento populacional, a urbanização e as graves crises de fome que marcaram a Idade Moderna resultaram em aumento de criminalidade e em revolta social, movimentos estes que, às vezes, se sobrepunham. Diante dessa situação, as penas cruéis e a própria pena de morte, aplicadas em público, utilizadas na Idade Média em resposta a crimes frívolos (roubar um pão, ofender o senhorio, blasfemar), deixaram de ser adequadas, posto que poderiam facilmente causar um levante popular. Além disso, cada vez mais se considerava o espetáculo bizarro das punições públicas uma afronta ao racionalismo e ao humanismo que marcaram o século XVIII. Se no Antigo Regime o sistema penal se baseava mais na ideia de castigo do que na recuperação do preso, no século XVIII se intensificam as tentativas, esboçadas no século anterior, de transformar as velhas masmorras, cárceres e enxovias infectas e desordenadas, onde se amontoavam criminosos, em centros de correção de delinquentes. Em boa parte do mundo, entretanto, tais ideias demorariam a sair do papel. No Brasil, no início do século XIX, muitas fortalezas funcionaram como prisões para corsários, amotinados e, algumas vezes, para criminosos comuns. Na maior parte do vasto território da colônia, as cadeias eram administradas pelas câmaras municipais e, geralmente, localizavam-se ao rés do chão das mesmas, ou nos palácios de governo. A tortura, meio de obtenção de informações conforme previsto pelas Ordenações Filipinas, era utilizada tanto em casos de prisão por motivos religiosos, quanto em prisioneiros comuns. As cadeias não passavam de infectos depósitos de pessoas do todo o tipo: desde pessoas livres, já condenadas ou sofrendo processo, até suspeitos de serem escravos fugidos, prostitutas, indígenas, loucos, vagabundos. Proprietários, homens ricos e influentes e funcionários da Coroa permaneciam em um ambiente separado. Para os escravos, havia uma cadeia denominada Calabouço, embora também fossem encerrados em outros estabelecimentos.

[8] Irmandade religiosa portuguesa criada em 1498, em Lisboa, pela rainha Leonor de Lencastre. Era composta, inicialmente, por cem irmãos, sendo metade nobres e os demais plebeus. Dedicada à Virgem Maria da Piedade, a irmandade adotou como símbolo a virgem com o manto aberto, representando proteção aos poderes temporal e secular e aos necessitados. Funcionava como uma organização de caridade prestando auxílio aos doentes e desamparados, como órfãos, viúvas, presos, escravos e mendigos. Entre as suas realizações, destaca-se a fundação de hospitais. Segundo o historiador Charles Boxer, eram sete os deveres da Irmandade: “dar de comer a quem tem fome; dar de beber a quem tem sede; vestir os nus; visitar os doentes e presos; dar abrigo a todos os viajantes; resgatar os cativos e enterrar os mortos” (O império marítimo português. 2ª ed., Lisboa: Edições 70, 1996, p. 280). A instituição contou com a proteção da Coroa portuguesa que, além do auxílio financeiro, lhe conferiu privilégios, como o direito de sepultar os mortos. Enfrentando dificuldades financeiras, a Mesa da Misericórdia e os Hospitais Reais de Enfermos e Expostos conseguiram que a rainha d. Maria I lhes concedesse a mercê de instituir uma loteria anual, através do decreto de 18 de novembro de 1783. Cabe destacar que os lucros das loterias se destinavam, também, as outras instituições pias e científicas. Inúmeras filiais da Santa Casa de Misericórdia foram criadas nas colônias do Império português, todas com a mesma estrutura administrativa e os mesmos regulamentos. A primeira Santa Casa do Brasil foi fundada na Bahia, ainda no século XVI. No Rio de Janeiro, atribui-se a criação da Santa Casa ao padre jesuíta José de Anchieta, por volta de 1582, para socorrer a frota espanhola de Diogo Flores de Valdez atacada por enfermidades. A irmandade esteve presente, também, em Santos, Espírito Santo, Vitória, Olinda, Ilhéus, São Paulo, Porto Seguro, Sergipe, Paraíba, Itamaracá, Belém, Igarassu e São Luís do Maranhão. A Santa Casa constituiu a mais prestigiada irmandade branca dedicada à ajuda dos doentes e necessitados no Império luso-brasileiro, desempenhando serviços socais como a concessão de dotes, o abrandamento das prisões e a organização de sepultamentos. Os principais hospitais foram construídos e administrados por essa irmandade, sendo esta iniciativa gerada pelas precárias condições em que viviam os colonos durante o período inicial da ocupação territorial brasileira. A reunião do corpo diretivo da irmandade da Santa Casa da Misericórdia, responsável pela administração desta associação, era chamada Mesa da Misericórdia.

[9] Todas as culturas têm manifestações que se podem chamar religiosas, são um fator comum na experiência humana ao longo do tempo e de tradições e sociedades diferentes. As religiões e práticas religiosas incluem um conjunto de regras, observâncias, advertências e interdições, que se expressam na linguagem e em formas simbólicas, canônicas ou populares, que permeiam a vida cotidiana e auxiliam na construção de identidades, memórias coletivas e experiências místicas que não se resumem ao praticado em templos e igrejas. Elas modelam os padrões sociais, influindo em identidades de gênero, sexualidade, na participação política, em conflitos em nome da fé, nas liturgias etc. As religiões ajudam os homens a lidarem com o medo da morte, e com a incerteza sobre haver ou não uma ordem no mundo, por meio da formulação de ritos e símbolos que representem essa ordem ideal, estabelecendo modelos de comportamento a serem imitados. Pressupõem a aceitação prévia de uma autoridade – sobretudo nas religiões monoteístas, que se tornariam hegemônicas – que auxiliem a explicar ou dar sentido à falibilidade das coisas, aos problemas do mundo. No Brasil colonial, a religião católica foi um dos pilares que sustentou a conquista e colonização do novo mundo, ante a possibilidade de conquistar novas almas para o cristianismo, e ocupou, ao longo dos séculos, espaço importante nas instituições, na política e em quase todas as esferas daquela sociedade. As religiões, sobretudo as cristãs, ajudaram a ordenar o mundo laico, através da Cristandade, diretamente ligado aos soberanos, vistos como a voz do Deus único na Terra, endossados pelo Papa, o representante “oficial” de Deus. Foi somente com o Iluminismo, nos séculos XVII e XVIII, que o papel dominante da religião na vida dos homens começou a ser questionado, movimento que, por fim, levou à separação entre Estado e religião, e à redução das práticas religiosas à esfera privada e pessoal da vida dos homens. Entretanto, a secularização da política pode ser vista como um fenômeno recente. Durante todo o período colonial e imperial, não havia, em Portugal ou no Brasil, um estado laico; mesmo durante a República, quando Estado e religião foram oficialmente separados, havia uma tendência à confusão entre esses setores, com excessiva participação de religiosos na política.

[10] Expressão utilizada para se referir tanto ao local físico onde viviam o rei e sua família, quanto à própria instituição monárquica em si. Compreende além da família real, as famílias fidalgas e a nobreza de Portugal. Instituição absolutista, foi responsável pela jurisdição e manutenção da hierarquia da numerosa criadagem subordinada diretamente ao rei, nos moldes da sociedade de corte do Antigo Regime. Sua organização encontrava-se dividida em áreas como o serviço nas câmaras e casas, cozinha, atividades relacionadas à caça, guarda, serviço religioso, entre outros. Os ofícios ligados à real câmara – neste caso, câmara é alusivo ao espaço de intimidade do monarca, a casa em que se dorme – compreendiam funções que envolviam um contato mais direto com o rei. O titular do ofício atuava no núcleo da corte, conferindo grande influência política àquele que a Coroa concedia autoridade para executar um determinado tipo de tarefa. Via de regra, as atividades estavam divididas entre ofícios maiores – que tinham vastas competências, era o caso do mordomo-mor e camareiro-mor – e os menores – que englobava trabalhos ligados a profissões “mecânicas”, como pintor, barbeiro, boticário, cirurgião e físico. Os cargos do serviço real eram muito disputados pelos fidalgos – ser criado da Casa Real não significava ser inferior, muito pelo contrário, além de ser um canal direto com o Rei, proporcionava honra, status e a possibilidade de obtenção de uma mercê. A Casa Real era organizada em seis setores administrativos, as “repartições”: a Mantearia Real, que tratava de assuntos relativos à mesa do Rei, sua família e dos fidalgos de sua casa, como toalhas, talheres, guardanapos, etc; a Cavalariça Real, que responde pelos equinos, muares, pelas seges e carruagens reais; Ucharia e Cozinhas Reais, que cuidavam da despensa – alimentação e bebidas – de toda a família real e de todas as famílias nobres e fidalgas do reino; a Real Coutada, responsável pelos terrenos reais, florestas e bosques; Guarda-Roupa Real, ocupado das vestimentas do rei e parentes; e a Mordomia mor, cuja principal atribuição era a organização e fiscalização dos outros setores. Houve grande dificuldade na reorganização da Casa Real no Brasil, principalmente pelos recursos escassos do Real Erário – e enormes gastos –, pelas intrigas e conflitos entre portugueses do reino e os colonos, pela precária utensilagem e falta de pessoal preparado para o serviço real, e pela própria dificuldade de adaptar costumes absolutistas antigos ao Brasil colonial. Ficaram conhecidas da população do Rio de Janeiro as frequentes contendas entre Joaquim José de Azevedo, tesoureiro da Casa Real, e d. Fernando José de Portugal e Castro, mordomo mor da Casa Real, presidente do Real Erário e secretário de Estado de d. João VI, em torno de recursos para manter o luxo da família real, que era considerada uma das mais simples da Europa. O excesso de gastos gerava problemas de fornecimento e abastecimento em toda a cidade, e frequentemente resultava em carestia de gêneros, principalmente para os mais pobres, que sentiam mais o peso de gerar divisas para sustentar a onerosa Casa Real de Portugal.

[11] Neste documento, Inácio José Camelo era chamado de o “Letrado da Cadeia” porque provavelmente era o único capaz de ler e escrever e por isso mesmo tinha certo poder e status superior aos companheiros, sendo também ele quem escrevia as petições e súplicas dos outros sentenciados, para isso cobrando e como sugere o autor do parecer, extorquindo o dinheiro dos outros condenados.

[12] Tablado, andaime, estrado erguido do chão a uma altura suficiente para que se observe a ação pública realizada. Empregado, sobretudo, nas execuções de réus condenados à pena capital, o patíbulo ou cadafalso foi bastante utilizado durante o rigorismo da justiça penal absolutista dos tribunais régios que aplicavam as ordenações. Durante a execução, a sentença era lida em público para que todos tomassem ciência dos malefícios praticados pelos sentenciados e a pena então aplicada, normalmente, através de meios eliminatórios os mais terríveis e cruéis. A atrocidade, todo aparato montado e a publicidade dos castigos sentenciados foram utilizados como forma de intimidação social, buscando evitar assim, novas infrações. A atmosfera política da época, profundamente influenciadas pelo absolutismo e glorificação da figura do rei, imprimia um cunho gravíssimo ao crime de lesa-majestade, vale dizer, crime político, daí a aplicação da pena capital sobre o cadafalso, diante dos olhos de toda população, com o propósito de produzir efeitos repressivos e dissuasórios.

[13] Antônio de Araújo e Azevedo, (1754-1817), Conde da Barca, iniciou os estudos superiores em filosofia na Universidade de Coimbra, mas acabou dedicando-se ao estudo da história e da matemática. Ingressou na diplomacia a partir de 1787 e, tanto neste campo como na política palaciana, opõe-se seguidas vezes a um dos homens fortes de d. João VId. Rodrigo de Sousa Coutinho. Considerado de tendências “francófilas” (em oposição a este último, “anglófilo”), Araújo e Azevedo esteve no centro das delicadas negociações de paz entre Portugal e a França do Diretório, tentando negociar um acordo em 1797. O acordo não foi bem-sucedido e Araújo e Azevedo foi abertamente censurado por seus pares, acusado de não defender os interesses da nação. A situação deteriorou-se ainda mais quando os franceses o acusaram de conspiração e o mantiveram detido por cerca de três meses na Torre do Templo. Entre 1804 e 1808, ocupou os cargos de ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra e ministro do Reino. Defendeu a vinda da família real para o Brasil, em 1808, ano em que acaba sendo substituído por d. Rodrigo. Instala-se no Rio de Janeiro, acompanhado de toda a sua biblioteca particular, que viria a compor o acervo bibliográfico inicial da Biblioteca Nacional; uma tipografia completa (que se tornou a base da Imprensa Régia); além de uma coleção de minerais e de instrumentos científicos, que passam a ocupar a maior parte do seu tempo após sua substituição no conselho do Reino. A dedicação às ciências o leva a instalar um laboratório em sua residência, onde produzia licores e aguardentes. Também teria, para alguns autores, participado da vinda da Missão Artística Francesa, em 1816. Seu retorno à política ocorre em 1814, quando é nomeado ministro da Marinha e Ultramar. O título de conde da Barca foi criado especificamente para ele em 1815, pouco depois da concretização do Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarve, há tempos defendida por Araújo e Azevedo, e do seu envolvimento nas discussões do Congresso de Viena. Sua ascensão continuou com a nomeação para o cargo de ministro da Fazenda (1816), da Guerra (1816), primeiro-ministro do Reino Unido (1817) e secretário de Estado dos Negócios do Reino (1817). O triunfo político de Araújo e Azevedo foi interrompido por sua morte aos 63 anos.

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