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Comentário

Escrito por Januária Oliveira | Publicado: Terça, 04 de Julho de 2023, 15h26 | Última atualização em Quinta, 06 de Julho de 2023, 13h56

A Inquisição e suas fontes no acervo do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro

 

Angelo Adriano Faria de Assis
Universidade Federal de Viçosa

Dentre os mais importantes conjuntos documentais referentes à Modernidade portuguesa encontram-se as fontes referentes ao Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, instituição implementada em 1536 e que manteve suas atividades por duzentos e oitenta e cinco anos, até 1821, quando acabou extinta pelas Cortes Constituintes portuguesas nos desdobramentos da Revolução Liberal de 1820, que, do outro lado do Atlântico, teria a independência política do Brasil como um de seus desdobramentos.

Em grande medida, os documentos sobre a Inquisição portuguesa fazem parte do imenso acervo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, localizado em Lisboa, que reúne conjuntos documentais variados concernentes ao Santo Ofício. O esforço de digitalização e de disponibilização de uma parcela destes documentos nas últimas décadas (com destaque para as fontes do Tribunal de Lisboa, que compreende a ação inquisitorial no Brasil) permitiu que pudessem ser consultados on-line por pesquisadores interessados no tema espalhados pelo mundo, democratizando o acesso à informação e possibilitando o aparecimento constante de novos estudos baseados nestas fontes.

Sua composição e diversidade expressam a complexidade da estrutura inquisitorial e das diversas formas de coleta e produção de informações pelo Santo Ofício: confissões, denúncias e processos; requerimentos e apelações; visitações e devassas; correspondências internas e externas do tribunal; documentos avulsos; cadernos do promotor; sermões e listas de prisioneiros dos autos da fé; regimentos e estruturas de funcionamento; documentação de funcionários e representantes inquisitoriais; modos de proceder, estilo e burocracia do tribunal; requerimentos de réus, processados e parentes, entre outros.

Mas parte da documentação produzida pelo, por conta, contra, a favor ou em nome do Santo Ofício, devido a contingências múltiplas, também ganhou diferentes destinos e encontra-se diluída por arquivos tanto portugueses quanto de locais espalhados pelo antigo Império Lusitano, a exemplo da Biblioteca Nacional e do Arquivo Nacional, ambos localizados no Rio de Janeiro – este último, caso da documentação aqui analisada.

Em Portugal, o Santo Ofício foi criado em tempos de d. João III, com o intuito de zelar pela pureza da fé católica no reino e seus domínios, exatos quarenta anos após os dramáticos episódios que levaram à implementação do monopólio católico – a exemplo do que ocorrera em 1492 na vizinha Espanha –, por meio do decreto de expulsão de judeus e mouros, assinado em dezembro de 1496 por d. Manuel, que acabou, em outubro de 1497, consciente do papel que estes grupos representavam para os interesses lusitanos, por transformar a expulsão em processo de conversão forçada, batizando-os à força ao cristianismo e extinguindo oficialmente a liberdade de crença. Agora denominados batizados em pé, neoconversos ou cristãos-novos para serem diferenciados dos cristãos de origem – estes, chamados de cristãos-velhos, livres da mácula sanguínea –, tornavam-se a principal ameaça ao catolicismo dominante, suspeitos, de forma generalizada, de manter em segredo, ocultamente, de forma limitada e dentro do possível, os comportamentos e crenças das religiões agora proibidas – o criptoislamismo ou criptojudaísmo, nomenclatura que recebiam de acordo com a sua origem religiosa.

Herdeiros dos preconceitos outrora destinados aos judeus, foram os cristãos-novos de origem judaica alçados à condição de principais suspeitos de ameaça à pureza cristã, pela própria pujança da comunidade judaica existente em Portugal havia séculos: à época da conversão forçada, estima-se que os judeus portugueses contabilizassem por volta de cem a cento e cinquenta mil indivíduos, num total de habitantes calculado em um milhão de almas, ou seja, representavam cerca de dez a quinze por cento do conjunto da população portuguesa, o que fornece indícios da intensidade de sua presença e da influência de sua tradição na sociedade, na cultura e nos hábitos da sociedade lusa. Eram, porém, para muitos, um verdadeiro mar de gente indesejada... Não à toa, os casos de suspeita de continuidade judaica figuram, com sobras, como os mais numerosos dentre os processos movidos pelo Santo Ofício.

Assim, o Tribunal da Inquisição português teve como um dos principais motivos para a sua implementação o suposto (e em muitos casos verdadeiro) criptojudaísmo dos cristãos-novos e estruturou-se, por fim, em quatro sedes: Évora, Coimbra e Lisboa, no reino, além de Goa, nos descontínuos domínios da Índia – único dos tribunais localizados no ultramar, responsável por averiguar os casos ocorridos na imensidão geográfica entre o sul da África e o Extremo Oriente. Embora não tenha existido um tribunal inquisitorial estabelecido na luso-América, a região não ficou livre da atmosfera de medo criada pela presença e ação do Santo Ofício, posto que se inseria na alçada do Tribunal de Lisboa, responsável pelos domínios Atlânticos, como Madeira, Açores, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola, Guiné e Brasil. Não tardaria para que os representantes da Misericórdia e Justiça, lema do tribunal, estendessem seu olhar vigilante e ameaçador ao Novo Mundo...

Na América portuguesa, a ação inquisitorial deu-se seja pelo envio esporádico de visitações, seja a partir, a longo prazo, da estruturação de uma capilarizada rede de representantes, como os familiares e comissários do Santo Oficio, responsáveis, grosso modo, por recolher depoimentos e acusações para manter os inquisidores de Lisboa informados acerca dos desvios na colônia, fazer diligências, devassas e sumários e, quando necessário, prender suspeitos e culpados, sequestrar-lhes os bens e providenciar o envio destes para serem julgados no reino. Também no espaço colonial, atuar como representante do poderoso tribunal significava não apenas uma chancela de integridade moral e um destaque social cobiçado por muitos, como se pode perceber nas inúmeras solicitações de indivíduos que pagavam os altos custos de processos de habilitação para integrarem o rol de representantes oficiais da estrutura inquisitorial, ou ainda, por outro lado, nos descaminhos daqueles que burlavam as regras e fingiam pertencer ao staff do Santo Ofício para obter diferentes vantagens, arriscando-se a ser descobertos e severamente punidos...

A riqueza desta documentação tem sido explorada pelos historiadores brasileiros há gerações. Já no século XIX, Francisco Adolfo de Varnhagen foi pioneiro, ao publicar em 1845, no tomo sétimo da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, os “Excertos de várias listas de condenados pela Inquisição de Lisboa, desde o ano de 1711 ao de 1767, compreendendo só os brasileiros, ou colonos estabelecidos no Brasil (Oferecido ao Instituto pelo sócio o sr. F. A. de Varnhagen)”.[1] Nas primeiras décadas do século XX, coube a Capistrano de Abreu a publicação de parte da documentação da visitação inquisitorial de 1551-1595 à Bahia, Pernambuco, Itamacará e Paraíba.[2] Nos anos 1960, Eduardo de Oliveira França e Sonia Siqueira publicaram as confissões da visitação de 1618-1620 à cidade de Salvador e seu recôncavo,[3] em complemento ao trabalho realizado por Rodolfo Garcia, que trouxe à tona, em 1927, as denúncias desta mesma visitação nos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.[4] Em 1979, José Roberto do Amaral Lapa foi responsável pela edição das fontes referentes à última das visitações, a única enviada aos confins da Amazônia, ocorrida no Grão-Pará entre 1763-1769.[5] Outras edições foram produzidas nas últimas décadas, complementando estas publicações originais, seja de material das visitações ou de fontes sobre a ação inquisitorial na América portuguesa.[6]

Para além das publicações sobre as visitas, cada vez mais pesquisadores debruçam-se sobre esta documentação para análises e estudos de caso envolvendo personagens alcançados pela gana do Santo Ofício em buscar desviantes da boa norma católica, descortinando casos emblemáticos de indivíduos denunciados e/ou processados por questões de fé e comportamentos considerados, em graus distintos, indevidos, heréticos, abomináveis. Mas não só: as fontes inquisitoriais são material que vai muito além da abordagem religiosa. Nelas, é possível adentrar nas frestas e silêncios do cotidiano da colônia e avistar as dificuldades e carências do dia a dia; as especificidades das formas de vida; as possibilidades de inserção e ascensão social; os costumes alimentares; as festas sagradas e profanas; os conflitos e disputas econômicas, políticas e familiares; os problemas de saúde e as tentativas de cura; as ameaças de indígenas, piratas e animais selvagens; hábitos e comportamentos sociais; inimizades e alianças; tratativas de comércio e de negócio; a circulação de livros, impressos e ideias; os descaminhos, negociatas e corrupções em âmbito administrativo, eclesiástico ou particular; envolvimentos amorosos e comportamentos sexuais diversos. Tudo, enfim, que diz respeito aos indivíduos em suas tentativas de sobrevivência.

No que diz respeito à luso-América, Anita Novinsky, em Prisioneiros do Brasil,[7] identificou 1.076 processos de indivíduos nascidos, moradores ou de passagem pelo espaço brasílico, sendo 298 mulheres e 778 homens dos mais diversos estratos sociais e origens (cristãos-velhos, neoconversos, indígenas, negros, mestiços de toda sorte), processados por culpas de judaísmo, protestantismo, proposições heréticas, bigamia, sodomia, blasfêmia, feitiçaria, solicitação, gentilidades, sacrilégios, apostasia, libertinagens, leituras proibidas... Vinte e nove deles acabariam, no limite, condenados ao Braço Secular, ou seja, à pena capital, queimados em carne ou estátua. Os demais 1.047, independentemente da gravidade das sentenças, todos eram condenados, além das penas variadas, a um olhar de reprovação social, à humilhação de serem processados por suas crenças e atos entendidos como contrários à fé, espécie de morte social a que estavam submetidos os que passaram pelo Santo Ofício e que se estendia a familiares, conhecidos e às gerações vindouras. Estes números, cabe lembrar, podem variar conforme o avançar das pesquisas e a cada nova descoberta perante as fontes inquisitoriais, visto que nem todas são ainda conhecidas ou estão devidamente catalogadas. Fora uma infinidade de outras pessoas que confessaram ou foram denunciadas sem que se tenha dado continuidade à averiguação de suas culpas. Aos olhos da Inquisição, um verdadeiro Trópico dos pecados, como bem nomeia Ronaldo Vainfas em obra clássica.[8]

As fontes aqui apresentadas fazem parte do acervo do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e são compostas, conforme veremos, por documentação envolvendo questões variadas. O fato deste material estar depositado em acervos brasileiros deve-se a múltiplos fatores. Dentre eles, podemos citar o processo de capilarização das estruturas de poder portuguesas e a transferência da corte para o Rio de Janeiro em 1808, trazendo parte de sua documentação, necessária para o funcionamento administrativo, além de protegê-la das guerras napoleônicas que então varriam a Europa.

No acervo da Biblioteca Nacional encontram-se obras e documentos que atravessaram o Atlântico juntamente com o acervo da Real Biblioteca que desembarca no Rio de Janeiro com a chegada da corte, como manuscritos originais e cópias, bem como impressos dos séculos XVI ao XVIII, contendo autos de processos, livros de visitações, documentação legal, listas de autos da fé, além de alguns dos raros códices documentais sobreviventes da Inquisição de Goa.

No que tange à situação física dos documentos aqui analisados, é possível salientar características e especificidades de algumas peças, que indicam estados diversificados de conservação ou degradação: em linhas gerais, as fontes possuem origens e épocas distintas de produção, que variam entre a segunda metade do século XVII e a primeira do XIX, atingindo pelo menos duzentos anos desde a sua produção. A ação implacável do tempo e de agentes externos que deterioram o papel, somada a caligrafias diferentes e por vezes pouco caprichadas, com a grafia da época, algumas ilegíveis ou de leitura e compreensão difíceis, a ponto de determinadas palavras ficarem sem a devida identificação, acabam por exigir um maior cuidado no processo de transcrição. Sobre o seu estado de conservação, de forma geral, os documentos manifestam múltiplos tipos de desgaste, como o processo de amarelecimento e deterioração do papel, apresentando perda de cor, esmaecimento parcial de algumas áreas, migração da tinta para o verso e pontos com formação de manchas marrons, indicando o início da corrosão do suporte, a quebra do papel e o início do aparecimento de buracos nas folhas. Em alguns casos, encontram-se rasgos na parte inferior, marcas de dobras, vincos e áreas de perda de suporte devido à ação de insetos xilófagos. Os documentos possuem as informações manuscritas gravadas com tinta metaloácida, provavelmente ferrogálica, em degradação. Observa-se certa deterioração e mesmo perda de texto, indicando esmaecimento da tinta e sua migração parcial para o verso da folha, como dissemos, prejudicando a leitura em ambos os lados. É possível observar, ainda, partes do papel com presença de carimbo e resíduos na cor verde – estes últimos, provavelmente resquícios de selo utilizado como lacre para a proteção e confidencialidade das informações, que fazia parte do documento.

Com relação ao conteúdo, percebe-se uma variedade de temas abordados e que demonstram a articulação e azeitamento da máquina inquisitorial em diversificados âmbitos, abordando desde questões sobre a estruturação e funcionamento burocráticos quanto relativas ao tratamento dos casos concernentes à alçada do Santo Ofício. Ratificam, no conjunto, o peso e o papel que a Inquisição desempenhou no cotidiano e no imaginário durante seus quase três séculos de funcionamento.

Na documentação, encontramos fundos ainda pouco explorados e dispersos, em que uma garimpagem mais atenta permite revelar surpresas, com a descoberta de fontes ainda não trabalhadas ou desconhecidas. O fato desta documentação fazer parte do acervo do Arquivo Nacional encontra explicação, dentre outros fatores, no papel central que o Rio de Janeiro passa a ocupar no império com a vinda da corte joanina e de suas instituições e representações, num processo de interiorização e enraizamento da metrópole na colônia, como define Maria Odila Dias,[9] fazendo com que documentos das mais diversas finalidades e partes geográficas e provenientes de regiões geográficas dispersas do Império Ultramarino – Europa, África, Ásia, América – passassem a circular nas dinâmicas da esfera administrativa transferida para a nova sede do poder, acabando por serem arquivados em instituições voltadas para este fim.

Prova desta circulação de informações é a sentença da apelação cível requerida em 1744 por Felipe Camelo de Brito, que posteriormente se tornaria comissário do Santo Ofício, a favor do irmão, Teodoro Camelo de Brito, natural do Maranhão, a fim de adquirir uma ordem para obter benefícios e dignidade eclesiástica com a limpeza de sangue, comprovação necessária para ingressar nos quadros do Santo Ofício. Como Teodoro não teve a comprovação de sua pureza sanguínea, solicitava a revisão da sentença, posto que impedia sua promoção às ordens pretendidas, informando que já havia sido comprovada pelo padre Manuel da Silva, da companhia examinadora no bispado de Maranhão, habilitando-o a possuir qualquer benefício e dignidade eclesiástica que necessitasse provar a “puridade”.[10] Outro indício é a existência de uma cópia da atestação dos inquisidores apostólicos feita no palácio de Goa, na Índia, datado de 14 de março de 1806, referente aos serviços da Congregação do Oratório naquela cidade, ao Tribunal do Santo Ofício, de instrução dos presos e direção e sustentação dos que “para suas casas se mandam recolhidos por algum tempo”.[11] Ou ainda, o memorial dos serviços prestados pelo reverendo padre mestre frei Mateus Evangelista, leitor jubilado na sagrada teologia, examinador sinodal e qualificador do Santo Ofício, ministro provincial na província de São João Evangelista, localizada na ilha Terceira, bispado de Angra, no arquipélago dos Açores.[12]

A própria forma como esses conjuntos documentais se encontram organizados comprova suas origens temporal e geográfica, diversas e dispersas, tendo sido classificados em categorias como Ministério do Reino, Secretaria de Estado do Ministério do Reino, Ministério da Justiça, muitos deles inseridos no fundo Negócios de Portugal. Mas também encontramos documentos referentes a períodos anteriores, catalogados em conjuntos como Registros da Câmara do Maranhão, atos do governador da província, concernente ao fundo da Câmara de São Luís; Provisões e alvarás do fundo Junta da Fazenda da província de São Paulo; Registro e índice de ordens régias da Junta da Fazenda da Bahia, localizado no fundo Relação da Bahia, dentre outros.

As carências variadas do viver em colônias apontadas pelos cronistas do período em diversos aspectos do cotidiano, marcados pelo estigma do provisório nos séculos iniciais da presença lusa na América, também refletiam a precariedade das estruturas de vigilância existentes para atender as necessidades de controle: é do que trata uma provisão do príncipe regente e governador dos reinos de Portugal e Algarves datada de 1671, depois de alertado pelo bispo do Brasil, d. Estevão dos Santos, sobre a situação de ausência de aljubes nas capitanias, dificultando o recolhimento dos presos de jurisdição eclesiástica. A solução encontrada exemplificava a materialização da falta de separação entre as alçadas dos poderes civil e eclesiástico tão comum em diferentes situações do mundo colonial. Ordenava o príncipe:

Hei por bem de que enquanto das despesas e condenações eclesiásticas se não fizer aljube dentro do tempo, que lhes mandarei limitar ou ordenar o contrário, os presos que o merecerem ser pelas culpas da Jurisdição Eclesiástica sejam recolhidos nas cadeias públicas e os carcereiros obrigados a dar conta deles na forma enquanto o fazem dos que lhe são entregues pelas Justiças Seculares.[13]

Alguns exemplos presentes na documentação descortinam, para além das presumíveis culpas que pesavam sobre os réus, as misérias e desventuras pessoais dos envolvidos. Foi assim que um certo Manuel Joaquim da Conceição fora acusado e preso em São Paulo por ordem do Santo Ofício pelo crime de bigamia, procedendo-se a sumário de testemunhas em que se reuniu “exuberante prova” de ser casado duas vezes, indicando que o caso deveria ser remetido ao Tribunal de Lisboa para as devidas providências. Tendo recebido demandas a favor do réu, o responsável pelo preso responde em carta, explicando os motivos pelos quais não poderia atender à solicitação, dando ainda detalhes das dificuldades por que passava o acusado:

À vista disto, e ser este caso afeto ao Santo Ofício, eu não me posso intrometer nele sem especial ordem de S.A. Real, mandando-me que eu, ou o comissário tesoureiro-mor julgue e dê a sentença ao réu, pondo-o fora da cadeia, como eu desejo, pois está padecendo há tanto tempo com grandes necessidades, já está bastante castigado, e digno de comiseração.[14]

Prevalecia o juízo do responsável pelo réu, consciente de que, por mais que lamentasse e se compadecesse do sofrimento do acusado, acabaria ele próprio fortemente punido caso tomasse quaisquer medidas que desobedecessem às regras do tribunal.

Em algumas fontes, encontramos referências a documentos de nomeação de representantes da Inquisição emitidos pelo Conselho Geral do Santo Ofício em Lisboa. No ano de 1785, os membros do Conselho, depois de examinados documentos e informações que comprovavam a boa origem do candidato, expediam Carta de Nomeação de familiar do Santo Ofício da Inquisição a um morador de Pernambuco: “Fazemos saber a quantos a presente virem que pela boa informação que temos da geração, vida e costumes de José Ferreira de Melo, filho de [Manuel] Ferreira de Melo, natural da sé de Olinda e morador na vila de Recife de Pernambuco”. À época, a Inquisição já sofria duras críticas e questionamentos na Europa, mas parecia manter sua força e distinção na América, despertando o interesse de muitos indivíduos em conseguir integrar as fileiras inquisitoriais e com isso conseguir algum tipo de destaque social e vantagens. A nomeação ao cargo, para além de atestar a moral ilibada, bons costumes e origem imaculada do familiar, significava a aptidão a usufruir os direitos concernentes à função destacada para qual fora aceito:

Haverá por bem de o criar e fazer familiar do Santo Ofício da Inquisição da cidade de Lisboa, para que daqui em diante sirva o tal cargo assim como o servem os mais familiares da dita Inquisição e com ele goze de todos os privilégios, isenções e liberdades por direito, provisões e alvarás dos senhores reis destes reinos são concedidos aos familiares do Santo Ofício.[15]

Sinal de que representar o Santo Ofício em Pernambuco no fim do Setecentos ainda era sinônimo de prestígio.

É o caso, ainda, da correspondência endereçada por d. José da Cunha de Azeredo Coutinho, presidente da Junta da Fazenda Real da capitania de Pernambuco e bispo de Elvas, em fins de janeiro de 1818, ao ministro e secretário de Estado dos Negócios dos Reino, Tomás Antônio de Vilanova Portugal, denunciando ser vítima de intrigas e declinando da nomeação para assumir como bispo de Beja, ao mesmo tempo em que suplicava para que tivesse o nome lembrado para ocupar o cargo de inquisidor-geral, em vacância por conta do falecimento do bispo que o ocupava. O cargo de inquisidor-geral, sem dúvida, o colocava num outro patamar da escala eclesiástica. Além de exortar a proteção de vossa Majestade, implorava ser o escolhido para a função, e apresentava motivo inesperado para alguém disposto a assumir tamanha responsabilidade: alegava não poder mais com tanto trabalho e precisar de descanso no fim da vida, por estar já à espera da morte.[16] Ao que parece, teve sucesso na mercê solicitada, como pode ser visto na correspondência enviada por José Joaquim Carneiro de Campos em meados de maio do mesmo ano, ou seja, passados menos de quatro meses da missiva com o pedido, destinada ao já citado ministro e secretário de Estado dos Negócios dos Reino, agradecendo ao rei e também ao próprio ministro pela nomeação de d. José da Cunha de Azeredo Coutinho para o cargo de inquisidor-geral e presidente da Junta do Estado Atual e Melhoramento Temporal das Ordens Religiosas, bem como ter aceitado benignamente a renúncia do mesmo d. José ao Bispado de Elvas.[17] Em pouco tempo, o novo inquisidor-geral perceberia os problemas imanentes ao cargo e a necessidade de medidas para o bom funcionamento da estrutura inquisitorial. Assim, em setembro de 1818, enviaria carta ao ministro Tomás Antônio de Vilanova Portugal solicitando que, “assim como foi feito no tempo do governo da rainha dona Maria, fossem colocadas todas as despesas de consertos e reparos necessários no palácio da Inquisição às custas das obras públicas, já que não possuía recursos para tais reparos”, completando, em tom de lamúria, “pois tanto ele, como inquisidor-geral, e o Tribunal do Santo Ofício não dispunham de outras rendas além de seus ordenados, ao contrário de seus antecessores que, além de rendas e pensões, tinham cama e mesa da Casa Real.” Dava conta dos problemas estruturais no palácio dos Estaus, sede do tribunal lisboeta localizado no Rossio, afirmando que “era necessário contrair algumas despesas com reparos no palácio, principalmente nos telhados do edifício e nos cárceres do Santo Ofício, que ameaçavam grande ruína.” Por fim, como era praxe do funcionamento inquisitorial, que impunha o sigilo das informações, mostrava preocupação com a circulação de dados que poderiam comprometer os trabalhos:

todos os negócios em que houvesse necessidade de recorrer aos excelentíssimos governadores do reino, quer de seu interesse particular, ou relativos ao seu ofício de inquisidor, fossem enviados em carta fechada por mão de qualquer dos secretários do governo e que a solução também deveria ser participada em carta fechada sem ser registrada no livro da porta, para evitar que o público soubesse dos negócios que se passavam entre ele e os excelentíssimos governadores do reino.[18]

Como se pode perceber através destes breves exemplos, a documentação referente ao Tribunal do Santo Ofício da Inquisição português presente no acervo do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro permite descortinar uma série de questões referentes não apenas à ação inquisitorial no Brasil, mas a suas interlocuções com outros espaços e esferas em que a instituição se fez atuante. A onipresença do Santo Ofício ajuda a compreender as dimensões centrais e periféricas de regiões, estruturas e problemas dentro do império a partir de fontes privilegiadas de uma das mais importantes e poderosas instituições da Modernidade portuguesa, em suas variadas estratégias de normatização e controle de comportamentos e crenças. Material riquíssimo para os pesquisadores interessados no assunto, mostram que, mesmo sem um tribunal efetivamente estabelecido no Brasil, a Inquisição esteve presente de muitas formas.

[1] Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 7, p. 54-86, 1845.

[2] ABREU, Capistrano de. Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça. Confissões da Bahia, 1591-1592. São Paulo: Paulo Prado, 1922.

[3] FRANÇA, Eduardo d’Oliveira; SIQUEIRA, Sônia. Segunda visitação do Santo Ofício às partes do Brasil. Livro das confissões e ratificações da Bahia, 1618-1620. Anais do Museu Paulista, São Paulo, t. 17, 1963.

[4] GARCIA, Rodolpho. Livro das denunciações que se fizeram na visitação do Santo Ofício à cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos do Estado do Brasil, no ano de 1618. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, v. XLIX, p. 74-198, 1927.

[5] LAPA, José Roberto do Amaral. Livro da visitação do Santo Ofício da Inquisição ao estado do Grão-Pará 1763-1769. Petrópolis: Vozes, 1978.

[6] Exemplo destes esforços de edição é a recente coleção em quatro volumes A Santa Inquisição em Portugal, organizada por mim, Angelo Adriano Faria de Assis, e Ronaldo Vainfas, publicada em Portugal (Leiria: Editora Proprietas, 2022), dedicada a documentos sobre a criação e extinção do Santo Ofício, processos inquisitoriais, livros críticos ao tribunal e denunciações coletadas durante a segunda visitação ao Brasil.

[7] NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil (séculos XVI-XIX). 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2009.

[8] VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

[9] DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da metrópole e outros estudos. 2. ed. São Paulo: Alameda, 2005.

[10] Registros da Câmara do Maranhão, atos do governador da província. Arquivo Nacional, Fundo Câmara de São Luís, códice 96, fls. 156-162.

[11] Secretaria de Estado do Ministério do Reino. Arquivo Nacional, Fundo Negócios de Portugal, caixa 645, pacote 5, fl. 22-22v.

[12] Secretaria de Estado do Ministério do Reino. Arquivo Nacional, Fundo Negócios de Portugal, caixa 627, pacote 1.

[13]Registro e índice de ordens régias da Junta da Fazenda da Bahia. Arquivo Nacional, Fundo Relação da Bahia, códice 539, v. 1, fl. 57-57v.

[14] Ministério da Justiça. Arquivo Nacional, Fundo Ministério da Justiça, caixa 774, pacote 3, 8 de março de 1811.

[15] Carta de nomeação de José Ferreira como familiar do Santo Ofício. Arquivo Nacional, Fundo Itens documentais, BR RJANRIO QN.0.TXT.184.

[16] Ministério do Reino. Arquivo Nacional, Fundo Negócios de Portugal, caixa 625, pacote 1.

[17] Idem.

[18] Ministério do Reino. Arquivo Nacional, Fundo Negócios de Portugal, caixa 625, pacote 2.

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