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Crime de bigamia

Escrito por Januária Oliveira | Publicado: Terça, 04 de Julho de 2023, 16h35 | Última atualização em Terça, 04 de Julho de 2023, 16h55

Carta de Matheus Bispo em favor do réu Manoel Joaquim da Conceição, acusado e preso pelo crime de bigamia perante o tesoureiro mor da catedral e comissário do Santo Ofício.

Conjunto Documental: Ministério da Justiça
Notação: Caixa 774, pct 03
Datas limite: 1808 - 1817
Código do fundo: 4T
Título do fundo: Ministério da Justiça
Argumento de pesquisa: Feitiçaria e Inquisição
Data do documento: 08 de março de 1811
Local: São Paulo

Veja o documento na íntegra

Logo que recebi a carta de Vossa Excelência desejando condescender com a sua vontade e a anuir ao injusto pedido a favor de Manoel Joaquim da Conceição preso na cadeia desta cidade à ordem do Santo Ofício[1] pelo crime de bigamia[2], atentar as circunstâncias ponderadas na referida carta que bem justificam do mencionado crime, fiz vir à minha presença o processo que se lhe fez sobre o mesmo crime e achei que sendo denunciado o réu Manoel Joaquim da Conceição por bígamo perante o tesoureiro mor da catedral desta cidade como comissário do Santo Ofício, e procedeu a sumário de testemunhas no arraial[3] de Jacuí deste bispado, aonde ele foi preso e donde veio a denúncia contra ele, se fez outro sumário acerca da sobrevivência da primeira mulher do bígamo, e da identidade deste no lugar da residência da mesma na forma das ordens gerais do Santo Ofício, existindo além destes dois sumários uma certidão do primeiro casamento, e uma atestação jurada do pároco da freguesia das Lavras do Funil, bispado de Mariana[4], em que certifica ter o réu contraído matrimônio naquela freguesia com Ana Joaquina de Siqueira, e que se não fizera assento no livro competente, por que antes de se fazer o dito assento lhe constara ser o réu casado em uma das freguesias deste bispado. Eis aqui o que por ora contém o dito processo, no qual suposto haja exuberante prova para a pronúncia do réu contudo a não houve nem podia haver no juízo comissário delegado, visto que na conformidade das ordens do Santo Ofício e do aviso do secretário de Estado que veio ao dito tesoureiro mor (que remeto a V. Excia. por cópia) devem semelhantes processos ser remetidos ao Tribunal de Lisboa[5] para serem sentenciados [a mesma] Mesa.

À vista disto, e ser este caso afeto ao Santo Ofício, eu não me posso intrometer nele sem especial ordem de S.A. Real, mandando-me que eu, ou o comissário tesoureiro mor julgue e dê a sentença ao réu, pondo-o fora da cadeia, como eu desejo pois está padecendo há tanto tempo com grandes necessidades já está bastante castigado, e digno de comiseração.

Estimo goze V. Excia saúde justíssima e que Deus guarde a V. Excia muitos anos. S. Paulo 8 de março de 1811

De Va. Exa.
Exmo. e Rmo. Sr.
Bispo Capelão mor
Amigo muito fiel e colega amantíssimo
Mattheus Bispo

 

 

[1] SANTO OFÍCIO: órgão de investigação e repressão da Igreja Católica, o Santo Ofício foi fundado pelo Papa Paulo III, em 21 de julho de 1542, com a justificativa de "combater a heresia". Além de Portugal, o Santo Ofício estendeu sua ação a várias regiões no Ultramar, quer no Atlântico, quer no Índico, pois esteve também presente em algumas possessões lusitanas no Oriente. A extensão geográfica da ação inquisitorial ensejou grande circulação de pessoas pelo Império português, fossem réus, fossem seus próprios agentes que, investidos pelo poder do Santo Ofício, vasculharam regiões na busca de hereges e no cumprimento de ordens dos inquisidores. (Ver também TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO DA INQUISIÇÃO, CONSELHO GERAL DO SANTO OFÍCIO)

[2] BIGAMIA: A partir do Concílio de Trento (1545-1563), em resposta às disposições reformistas, a Igreja Católica investiu na sacralização do casamento, definindo-o como um vínculo que deveria remediar a lascívia humana, um ato capaz de conferir a graça divina. O matrimônio passaria a seguir uma liturgia que incluía o consentimento mútuo, a celebração da união por meio de um clérigo, a presença de testemunhas, o anúncio da intenção de casamento dos noivos durante três domingos na paróquia local, a verificação quanto aos impeditivos referentes ao parentesco de até quarto grau e uma extensa e detalhada regulamentação sobre as relações sexuais que tinham como único e exclusivo fim a procriação. Decidir sobre a legitimidade de uma união, entre homens e mulheres, passou a ser do âmbito da Igreja, com o apoio dos soberanos que, interessados em concentrar o poder monárquico, percebiam na disciplina moral implícita ao casamento uma possibilidade de assegurar a disciplina política dos súditos. Qualquer união adversa à estabelecida pela instituição passou a ser condenada social e religiosamente. A admissão de um relacionamento concomitante a outro contrato matrimonial podia ser enquadrado como adultério, concubinato ou bigamia. O direito canônico classificava e distinguia o delito de bigamia a partir das seguintes categorias: bigamia simultânea, quando o segundo casamento era realizado por um leigo enquanto o primeiro cônjuge ainda era vivo; bigamia similitudinária, quando um clérigo contraía o sacramento do matrimônio após ter recebido o grau da ordem; e bigamia sucessiva, quando se contraía um segundo matrimônio após a morte do primeiro cônjuge. (ALVES, Mariana Rocha Ramos de Oliveira. Inquisição e bigamia: disciplinamento e transgressões de cristãos velhos portugueses julgados pelo Tribunal do Santo Ofício (Lisboa, século XVII). Dissertação em História, UFRRJ, 2017. p. 75). Considerada, assim, um delito grave, sua punição consistia em pena de morte aos bígamos, que podia, eventualmente e de acordo com a posição social dos infratores, em degredo de cinco a oito anos em alguma das possessões na África ou na América portuguesa, punição com açoites pelas ruas públicas, perda de cargos e ofícios. A jurisdição para julgamento dos casos de bigamia competia tanto à Coroa como à Igreja, o que colocava as relações entre crime e pecado em um terreno difuso. Em Portugal, a bigamia foi intensamente perseguida, seja pelos tribunais civis ou eclesiásticos – sendo punida com severidade principalmente a partir do século XVI, quando passou a ser julgado pelo Santo Ofício. De acordo com Johnatas dos Santos Costa, os bígamos, além de burlar as determinações régias e canônicas, ludibriavam padres e vizinhos e, muitas vezes, os conjugues e seus familiares, fraudando o próprio sacramento do matrimônio. Dessa maneira, esses indivíduos estariam revelando, segundo a percepção inquisitorial, um total desprezo pelo matrimônio, enquanto a Igreja se empenhava na sua propagação e na defesa da sua indissolubilidade diante das críticas realizadas pelos reformadores protestantes (Costa, Johnatas dos Santos. O matrimônio ameaçado: inquisição e bigamia no brasil colonial. Universidade Federal de Sergipe. São Cristovão, 2018. p. 66). Constata-se uma maior incidência de bigamia masculina que pode ser atribuída à alta mobilidade espacial desses homens, vindo, por exemplo, para o Brasil. Mayara Amanda Januario, com base em documentação analisada, registra que os indivíduos processados por bigamia na colônia entre os séculos XVI e XVIII contabilizam quase uma centena (Januario, Mayara Amanda. A bigamia em apropriações da normatividade: o caso da América portuguesa em fins do século XVIII. Temporalidades – Revista de História, Edição 35, v. 13, n. 1 (jan./jun. 2021.). A perseguição á bigamia permaneceu viva até o século XVIII como mecanismo importante de controle social. Ver também CASAMENTO, CONCÍLIO DE TRENTO e CERTIDÃO DE BANHOS.

[3] ARRAIAL: o termo era empregado, em Portugal, para alojamentos ou acampamentos do exército, corporificando um sentido de transitoriedade, de algo temporário. Nos territórios coloniais, como o Brasil, arraial adquiriu um significado um pouco diverso referindo-se aos pousos e roças feitas pelos bandeirantes ao longo de suas trilhas e em função de certas atividades extrativas como a mineração. Alguns dos pousos existentes transformaram-se em pontos de encontro de agricultores e comerciantes, ensejando o surgimento de povoados, também chamados arraiais. Subordinados ao poder administrativo das vilas ou cidades, os arraiais, em muitos casos, nasciam a partir de uma capela em torno da qual as pessoas se reuniam para rezar e realizar festas em louvor aos santos e padroeiros.

[4] BISPADO DE MARIANA: nascida a partir do arraial Ribeirão do Carmo, instalado pelo coronel Salvador Furtado de Mendonça, a vila de Mariana foi elevada à categoria de cidade em 23 de abril de 1745. Mariana foi a primeira vila, a primeira cidade, a primeira capital e a primeira diocese de Minas Gerais. Em 1745, o Papa Bento XIV criou a diocese de Mariana, pela bula Candor lucis aeternae, desmembrada do Rio de Janeiro, juntamente com a diocese de São Paulo e as prelazias de Goiás e Cuiabá. A criação dessa diocese atendeu às necessidades dos moradores da cidade de Mariana e adjacências do pasto espiritual e marcou um momento na geopolítica de colonização do sertão mineiro. Com sua instalação, modificam-se as relações entre as diversas esferas do poder. Torna-se mais complexo o quadro de forças políticas configurado pela atuação das irmandades, câmaras locais, clero e autoridades. Sucedendo a criação das dioceses de Salvador, Rio de Janeiro, Olinda, São Luís do Maranhão e Belém do Pará, Mariana se insere no âmbito do expansionismo português apoiado por um projeto eclesiástico de constituir um clero nativo nas colônias ultramarinas. Em sua dissertação de mestrado Pacto Festivo em Minas Colonial, a historiadora Iris Kantor identifica os principais motivos para a escolha de Mariana como sede do novo bispado. Primeiramente Nossa Senhora do Ribeirão do Carmo era a vila mais antiga da região mineradora, onde foi erguida a primeira capela, situada no coração do território da nova diocese. A segunda razão, de ordem política, refere-se à sedição de Vila Rica, em 1720, contra o Conde de Assumar, governador da capitania de Minas Gerais, quando os moradores de Ribeirão do Carmo ofereceram apoio ao governador, sendo essa fidelidade para com a Coroa portuguesa recompensada com o trono episcopal. A jurisdição do bispado de Mariana não correspondia exatamente à capitania de Minas Gerais. Seu território foi delimitado pelos rios: Jequitinhonha, ao norte; São Francisco, a oeste; Rio Doce, a leste; Rio Paraíba, ao sul. Assim, parte do território do norte de Minas pertencia ao arcebispado da Bahia; a parte que se encontrava além do Rio São Francisco era do bispado de Pernambuco; o Triângulo mineiro estava ligado à prelazia de Goiás, e parte do Sul de Minas ficava no bispado de São Paulo. O 1º bispo nomeado foi dom frei Manoel da Cruz, nascido no norte de Portugal, que exerceu suas atividades entre 1748 e 1764.

[5] Ver TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO DA INQUISIÇÃO: órgão de investigação e repressão, criado pela Igreja Católica no período medieval, que encontrou êxito depois da Contra Reforma ou reforma católica. Foi instituído, em 1231, pelo Papa Gregório IX, através da bula Excommunicamus e confirmado por um decreto dois anos depois. O Santo Ofício sistematizou as leis e jurisprudências acerca dos crimes relativos à feitiçaria, blasfêmia, usura e heresias. Os processos eram constituídos a partir de denúncias e confissões feitas, muitas vezes, por aqueles temerosos de serem acusados de acobertar ou fomentar as heresias. Se, na Idade Média, esteve ligado diretamente ao Vaticano e direcionado para investigação de práticas contrárias aos dogmas da Igreja, no período moderno se submeteu mais à monarquia, servindo de apoio para o estabelecimento e o fortalecimento dos Estados Nacionais na península Ibérica. As monarquias católicas promoveram a instalação do Santo Ofício buscando afastar possíveis percalços sociais que acarretassem conflitos, frustrando assim a estabilidade política e social de seus reinos (Juarlyson Jhones S. de Souza e Jeannie da Silva Menezes. O poder na inquisição: as redes de cooperação política com o Santo Ofício no império português. II Simpósio Internacional de Estudos Inquisitoriais. Salvador, 2013).  De acordo com os seus estatutos, as penas mais leves poderiam ser do jejum, multas, pequenas penitências e até a prisão. Quando os acusados se negavam a pedir perdão ou a retratar-se, eram entregues ao braço secular (autoridade civil), o qual geralmente aplicava a pena máxima da morte na fogueira, em um ato público chamado “auto de fé”, onde todo poder da Inquisição era exposto em toda sua amplitude. Instalado em Portugal entre 1536 e 1821, durante seu funcionamento atuou também nas colônias lusitanas. A Inquisição portuguesa demonstrou, desde cedo, o compromisso principal de perseguir a heresia judaizante, associada aos cristãos-novos. Aspecto preservado nos braços inquisitoriais do ultramar. O caráter antissemita do Santo Ofício pode ser evidenciado nas sentenças proferidas pelo tribunal, as penas mais graves eram aplicadas aos acusados de judaísmo. “A sistemática perseguição dos chamados cristãos-novos - judeus convertidos ao cristianismo e suspeitos de ‘judaizar’ em segredo - foi, sem dúvida, o traço distintivo e peculiar das inquisições ibéricas, respondendo pela grande maioria dos réus processados e executados” (Ronaldo Vainfas. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997). No Brasil, o bispo da Bahia preenchia a função inquisitorial, por delegação do Santo Ofício de Lisboa, com todo o aparato burocrático da Inquisição, tendo havido quatro visitações do tribunal português na Bahia (1591/1593 e 1618), em Pernambuco (1594-1595) e no Pará (1763-1769). Após quase 300 anos de atividade, o Tribunal do Santo Ofício foi extinto em 1821, por decisão da assembleia constituinte portuguesa – criada após revolução liberal do Porto. A extinção do tribunal foi uma adequação inevitável da sociedade portuguesa às “luzes do século” [Ver ILUMINISMO].

 

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